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Colunistas Destaque Natalia Santos Sem categoria

Swallow: Um retrato da opressão feminina

Swallow1 (2019) é um thriller psicológico de Carlo Mirabella-Davis cuja trama gira em torno da vida de Hunter, uma dona de casa grávida, que, pressionada para satisfazer as expectativas do marido e dos sogros, desenvolve um hábito perigoso de engolir objetos não comestíveis.

Hunter é a figura da “esposa perfeita” dedicada ao lar e ao marido, mas que tem sua personalidade completamente tolhida em função de atender às expectativas impostas por uma sociedade patriarcal. Quando descobre sua gravidez, passa a desafiar o seu corpo engolindo objetos nocivos como forma de retomar o controle sobre sua própria vida.

O filme é recheado de elementos que enfatizam a solidão e o silenciamento da figura da mulher, sendo reforçado, inclusive, com a presença de outras personagens femininas que reproduzem padrões de comportamentos machistas, o que nos faz experimentar ainda mais a sensação de clausura no próprio corpo enfrentada pela protagonista.

Embora tenha uma resolução demasiado simplista para o problema que se propõe a discutir, Swallow é um filme que merece ser visto, discutido e compartilhado, justamente por abordar questões tão frágeis e presentes na vida das mulheres. A atuação de Haley Bennett (Hunter) é um dos pontos altos do longa, juntamente com uma estética e fotografia primorosas. O suspense aqui se constrói de maneira gradativa, mas é impossível não ansiar pelo desfecho da trama.

Engana-se quem pensa que é somente mais uma história de cinema, isto porque muitas mães, avós e tias nossas vivenciaram formas de silenciamento e aniquilamento das próprias escolhas. Nesse ponto, a representatividade no cinema revela-se, mais uma vez, de extrema importância ao dar voz às inúmeras mulheres que sofreram ou sofrem qualquer forma de violência psicológica e opressão, trazendo um pontinho de esperança para nossa luta, que, embora não esteja perto do fim, vem ganhando cada dia mais força.

1. Swallow, palavra do inglês, em português significa engolir, deglutir.

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Colunistas Destaque Rafaela Gurgel

Vida além do autismo sim!

Passado o baque do diagnóstico vem um turbilhão de emoções e perguntas inquietantes, como algumas destas: “E agora, como vai ser?”, “Por onde começar?”, “Será que meu filho (a) irá se desenvolver, falar…? Dentre tantas, a mais recorrente: “E quando eu não estiver mais aqui?”. Esta é a mais doída e inconsistente pois a morte é nossa única certeza neste plano. É quase inevitável que em algum momento da vida não passe essa questão em nossa cabeça, mas, quando há um filho com limitações, essa é a mais latente preocupação.
Essas perguntas mostram uma evidente realidade, isso acaba
refletindo na vida de muitas famílias, surgindo conflitos conjugais, financeiros, falta de vida social e libido… O choque da descoberta, divergência entre um dos genitores para aceitação, passando pelas dificuldades financeiras em manter terapias e as rotinas que elas nos impõem. A vida após o autismo é dura, mas não é uma sentença de morte ou incapacidade para quem tem e para quem convive.
Esses gatilhos acabam nos levando à exaustão física e mental, pois
somos instigadas a fazer o que estiver ao nosso alcance para o bem-estar da cria. É instintivo. Porém, o que precisamos entender é que nós somos o piloto da aeronave e para estarmos bem para conduzir o voo, em caso de turbulência, é necessário pôr a máscara de oxigênio em você primeiro para em seguida colocá-la em seu filho (a). É o cuidado com quem cuida. Até chegar esse entendimento é difícil e desgastante, pois infelizmente muitos casais não se sustentam à pressão e acabam se divorciando.
Certa vez li um artigo de opinião que citava uma pesquisa feita nos
EUA, no Journal of Autism and Developmental Disorders, que comparava o cansaço e nível de estresse de mães de pessoas com autismo comparado a soldados em guerra. Segundo os responsáveis pelo estudo, o efeito a longo prazo sobre a saúde das mães poderia afetar níveis de glicose, funcionamento do sistema imunológico e atividade mental.
Até nisso temos que filtrar muito bem as informações que nos chegam.
Este é um dado relevante, mas não dá para fazer tudo e nem pensar muito, os “se” ficam suspensos, pela nossa saúde mental. Muito tempo e água passaram embaixo da ponte até que pude chegar a pensar em mim, enquanto mãe e mulher, mas até lá ouvi verdadeiros absurdos que todos os dias tentaram me arrastar como âncora; o pior é quando ouvimos das próprias mulheres: “Ah, tá reclamando de quê?, “Você não quis ser mãe, agora aguente!”, “Tá cansada de quê?”, “Muitas queriam estar no seu lugar”, “Hum, saiu, e quem ficou com as crianças?”. Estes comentários são só a ponta do iceberg que enfrentamos por sermos mães e mulheres, uma recomendação: FAÇAM TERAPIA, se puder, claro! Pois, como já dizia Belchior, “a minha alucinação e suportar o dia a dia…”
Tem dias difíceis, chuvosos, cinzentos, mas também tem dias
ensolarados e de arco-íris para continuar. A terapia tem me ajudado muito a me reconhecer, me aceitar e aceitar o outro, conviver com as circunstâncias que não me compete intervir e mudar e tudo bem. Vivo todas as minhas emoções sem culpa e continua tudo bem. Não sou modo mãe/profissional o tempo todo e continuo vivendo, pois “amar e mudar as coisas me interessam mais…”

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Destaque Gerais

Márcia Eurico, autora do “Racismo na Infância” receberá o prêmio Benedicto Galvão da OAB

Na próxima terça-feira (16/11) a professora Dra. Márcia Campos Eurico receberá o prêmio Benedicto Galvão, da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB-SP), que chega a sua décima edição.

Márcia é professora, mestre e doutora em Serviço Social pela PUC-SP e pós doutoranda pela PUC-RJ, no programa de Direito. Além de pesquisadora em Racismo Social na Infância e autora do livro “Racismo Social na Infância”, publicado pela Editora Cortez, ela vem produzindo há mais de 15 anos bibliografias sobre as relações étnicos-raciais e o racismo.

Segundo a organização da premiação a “condecoração foi instituída pela Comissão de Igualdade Racial no ano de 2012, sob a chancela do Conselho Secional, homenageando o primeiro presidente negro da Entidade (1940-1941) e enaltecendo o trabalho daqueles que, como ele, perseveram na luta em favor da equidade e da cidadania, seja com ações afirmativas, seja com políticas públicas ou privadas de inclusão social, e pela manutenção das liberdades, restaurações e preservação dos valores democráticos”.

Neste sentido, Márcia Eurico, mulher preta e periférica, entrou na universidade tardiamente, já tinha dois filhos e dividia o tempo entre os estudos e as demais jornadas tão conhecidas pelas mulheres negras, a partir do destaque que obteve. Já na graduação iniciou a docência e atualmente é professora efetiva na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus da Baixada Santista.

O prêmio Benedicto Galvão dá destaque à brilhante obra o Racismo na Infância, de Márcia. Se não bastasse sua vasta produção, a professora participa ativamente das instituições destinadas a pesquisa e estudos relativos à infância/adolescência e à luta antirracista. Sua atuação junto aos movimentos sociais é destaque em sua trajetória. Além disso, seu afeto e forma de ensinar a torna uma verdadeira educadora.

Em sua conta no Instagram (@marciaeurico) ela externa a alegria pela premiação e sua importância. “Muitas são as vozes que ecoam nesse momento e somadas a minha, traduzem em forma de palavras, a alegria desse encontro. Gostaria de compartilhar com vocês e convidar-lhes para acompanhar virtualmente, a cerimônia de premiação do X Prêmio Benedicto Galvão dá OAB. Serei premiada pelo ativismo e pela minha produção intelectuais antirracista, com destaque para o livro “Racismo na Infância”. Dedico esse prêmio a todas as mulheres negras que vieram antes de mim e aquelas com as quais compartilho a jornada hoje”.

Em 2018 a PUC-SP ficou ocupada pelos alunos (as/es) por quase uma semana, no movimento intitulado #MarciaFica! As alunas (os/es) reivindicavam a permanência da professora no Curso de Graduação em Serviço Social, ao denunciar como o racismo institucional está impregnado nas universidades. O movimento trazia à tona a dura realidade e que o Curso de Serviço Social nunca

teve em seu corpo docente uma professora (o/e) efetiva (o/e) negra (o/e) em seus mais de 70 anos de existência. Márcia Ficou, não como professora efetiva da universidade em questão, mas na história da luta contra o racismo e provando a tão famosa afirmação que quando uma mulher negra se movimenta ela movimenta o mundo (Ângela Davis). O prêmio é considerado um reconhecimento que se estende também à uma das maiores escritoras do Brasil, Carolina Maria de Jesus (in memoriam).

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Destaque Violência contra mulher

Registro de violência doméstica cresce 51% em 2021, comparado com o mesmo período de 2020

A violência contra mulher não sai de pauta. O que já era preocupante vem se agravando desde a pandemia do Covid 19. Notícias de feminicídio estão sempre ocupando as páginas dos jornais, em um país que mata mulheres só por serem mulheres. No Rio Grande do Norte, um dos estados mais violentos para as mulheres, os episódios de violência doméstica continuam em alta.   

Dados referentes ao somatório dos registros de Lei Maria da Penha para os crimes de ameaça, calúnia, descumprimentos de medidas protetivas de urgência, injúria, lesão corporal, vias de fato, estupro, estupro de vulnerável e violência doméstica no ambiente familiar contra a mulher mostram um aumento de 51,1%, num comparativo entre 2020 e 2021. Nesses números estão incluídos casos de violência doméstica praticados contra mulher, não só pelo parceiro, mas, também, pelos familiares.

Os números foram repassados pela Secretaria de Comunicação Social da Polícia Civil (Secoms). Conforme os registros de janeiro a setembro de 2020, foram 2.945 casos de violência doméstica. Nesse mesmo período de 2021 (janeiro a setembro), foram 4.421.

Variação Mensal 2020 2021 Variação
Janeiro 346 495 43,10%
Fevereiro 343 455 32,70%
Março 314 384 22,30%
Abril 296 391 32,10%
Maio 306 419 36,90%
Junho 234 422 80,30%
Julho 330 568 72,10%
Agosto 403 596 47,90%
Setembro 373 691 85,30%
Total Geral 2945 4421 50,10%

Quando afirmamos que o machismo mata, reconhecemos que machismo e feminicídio estão intimamente relacionados. Nos últimos quinze dias, dois feminicídios foram registrados no Rio Grande do Norte. Um em Pedro Velho, interior do RN, no último dia 28 de outubro; e outro mais recente em Parelhas, também no RN, na segunda-feira (07/11). Em ambos, os ex-companheiros não aceitavam o fim do relacionamento. Um fato que já se tornou comum no Brasil: mulheres sendo assassinadas simplesmente porque terminam um relacionamento com um homem que se acha dono dela e não aceita o fim.     

Érica Canuto, promotora de Justiça do RN, em live sobre “A violência contra mulher e os desafios para efetivação da Lei Maria da Penha”, realizada pelo Núcleo de Estudo da Mulher – NEM/UERN (evento disponibilizado no canal do YouTube do NEM), destaca a medida protetiva como o centro da Lei Maria da Penha e uma das principais formas de interromper o feminicídio.

A Lei Maria da Penha veio para evitar o feminicídio. A ordem judicial que determina o afastamento tem uma força grande. Com base na experiência da promotoria em que eu trabalho, 95% dessas medidas protetivas, quando são recebidas pelos homens, elas são voluntariamente cumpridas. Essa medida protetiva tem força, ela funciona. A gente tem que repetir isso. É uma conquista, é uma Lei boa, é uma Lei que funciona, que tem salvado vida de mulheres”, destaca.

Érica explica ainda que para os 5% que não cumprem voluntariamente a ordem judicial, existem outras alternativas como a Patrulha Maria da Penha, a Casa Abrigo Estadual, que fica em Mossoró, a de Natal que atende também Parnamirim. Além disso, tem o botão do pânico, que atua em binário com a tornozeleira eletrônica, e por último tem a prisão, caso o agressor descumpra o afastamento e já tenha sido advertido.

Esse ano a Lei Maria da Penha fez quinze anos. A promotora destaca, nessa mesma live, alguns desafios a serem enfrentados mesmo depois desses quinze anos de aplicação da Lei Maria da Penha. “A gente precisa investir mais na prevenção primária, mais em educação de gênero, a gente precisa falar isso nas escolas, nas fábricas, nos bairros, em todos os recantos. A gente precisa falar sobre gênero, sobre essa desigualdade, sobre todas as facetas da violência que atinge a mulher”, elenca.

A interiorização da Lei também foi uma necessidade apontada pela promotora. Já que os serviços em sua maioria ficam concentrados na capital e em Mossoró, que é a segunda maior cidade do Estado, enquanto as mulheres de cidades do interior ficam desprotegidas. “Eu aposto nos serviços regionalizados. Estamos vivendo um momento em que devemos pensar que nossa aposta não pode ser só em delegacia e justiça, sistema de segurança pública e de justiça. Mas também incluir o sistema de assistência. A mulher precisa ser ouvida, precisa resolver o divórcio, a pensão alimentícia, ela não vai conseguir resolver tudo isso se não tiver assistência. A gente tem que investir nesses serviços como nos centros de referências regionalizados. Essa mulher precisa de apoio para sustentar a denúncia que ela fez.” Érica ressalta ainda que a distância de uma mulher para um serviço de acolhimento é grande, além dos sentimentos de insegurança que acometem essas mulheres nessas situações. A importância de fazê-la confiar nos serviços vai além de só fazer um relatório e encaminhar a denúncia.   

 

Sobre as formas de violência doméstica e familiar contra mulher  

 A Maria da Penha reconhece cinco tipos de violência contra mulher: física, psicológica, sexual, moral e patrimonial. Segundo o texto da Lei, a violência física  é entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; a violência psicológica, como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; a violência sexual está relacionada a qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; a violência moral é qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

 

Delegacia Virtual como um dos canais de denúncia

A Delegacia virtual (Devir) da Polícia Civil, disponibilizada desde 2020, permite a realização de boletins de ocorrência pela internet 24h, inclusive é um canal pelo qual pode ser feita a solicitação da Medida Protetiva de Urgência. 

O acesso à Delegacia para registro de Boletim de Ocorrência pela internet é feito pelo site da Polícia Civil. Na Devir, as mulheres fazem o registro inicial e depois são chamadas à delegacia para os esclarecimentos necessários e para serem ouvidas. Apesar de já ter sido trabalhada a divulgação, a Secoms reconhece que ainda é um canal pouco utilizado.

Falta de investimento no momento em que a violência se agrava

O governo Bolsonaro tem sido marcado por sucessivos retrocessos no que diz respeito às políticas públicas voltadas para as mulheres. A falta de investimento em programas e ações, num período em que os casos de violência doméstica e feminicídio mais cresceram, num período em que houve um aumento das dificuldades financeiras, principalmente nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres, só tem agravado a situação de violência.

Pesquisas divulgadas recentemente mostram que o governo federal registra o menor investimento em programas voltados para as mulheres desde 2015.  

Com os retrocessos, foram as políticas públicas voltadas para as mulheres as mais impactadas. A redução dos repasses orçamentários afetaram diretamente a segurança, saúde e assistência social. Investimentos que chegariam além das Casas Abrigo, aos Centro de Referência a Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) que, também, atuam no enfrentamento de combate à violência contra mulher.

Para mais informações sobre os impactos sofridos diretamente pelos equipamentos que atuam na violência contra mulher em Mossoró, procuramos informações da Secretaria de Desenvolvimento Social, através da assessoria de comunicação, mas não conseguimos o levantamento que precisávamos.

A reportagem solicitou, via whatsapp da assessoria de comunicação, informações do tipo: se esses cortes que vinham do Governo Federal afetaram as casas abrigo, os CRAS, CREAS e toda a rede de proteção. Se comprometeram o trabalho desses equipamentos e de que forma, mas até o momento não obtivemos respostas. Encaminhamos a demanda dia 21/10, o assessor disse que havia enviado a demanda para o secretário; dia 27 buscamos uma previsão, fomos informados de que não tinha previsão. Novamente buscamos informação dia 29, e não mais responderam.

 

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Destaque Matracas Literárias

A cada dia

“Disseram que um dia
Você seria grande garota,
O mundo despertaria para você
Como o sol toda manhã.
Ao abrir os olhos,
Surgiria em sua face
O sorriso alegre
Como a brisa do mar sereno.
E assim, a cada dia,
Sem observar fielmente
A contagem dos ponteiros
Apenas seguindo-se
No espaço abstrato,
Observa a realidade
Enche o peito engrandecendo
O coração, que já é enorme,
Segue para mais um dia,
Para viver como se não houvesse
Amanhã..”

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Destaque Matracas Literárias

Tiraram a fofoca de nós

Texto de Juliana Marinho Pires – jornalista e terapeuta holística.
Hoje eu queria falar sobre um assunto que a maioria de nós não percebe. Nascemos em uma Era em que não entendemos mais o mundo a partir da nossa perspectiva como mulheres, mas sob um olhar mastigado com dente podre, massacrado, hiperventilado de julgamentos, de andanças por caminhos tortos, de servilismo e ofuscamento. Estamos vendidas, ou melhor, compradas, por um patriarcado aliado ao capitalismo (os dois andam de mãos dadas desde sempre); dueto vil, hipócrita, mesquinho.
Era uma vez mulheres que se encontram em tabernas na antiga Bretanha, lá por volta de 1200. Falavam sobre diversos assuntos domésticos e públicos: umas davam conselhos as outras e emitiam opiniões sobre as diversas situações do cotidiano que suas amigas viviam.  Mais do que isso, elas se inteiravam do que as outras mulheres viviam, situações distintas das delas, e assim entendiam a diversidade do mundo, as nuances das relações, de cada família, dos povoados onde moravam, da essência humana.
Corta a cena: vamos para as escravizadas no Nordeste brasileiro nos idos do século XVII lavando roupa na beira do rio. Lá era, quiçá, o único lugar e momento em que elas estavam sem vigilância e sozinhas, uma certa pseudo liberdade controlada . À beira desse rio, surrando as mãos de tanto esfregar tecido, elas fofocavam, riam, conversavam, choravam; partilhavam o que viviam e contavam também o que acontecia a sua volta: uma conhecida do mercado, a sinhá que passou algum aperto, a vida dura da extração de cana-de-açúcar…enfim, mazelas e anedotas da vida daquela também pseudo sociedade que as cercava.
Vamos cortar para mais uma cena: senhoras da elite francesa moram no Vietnã, que, não tão antigamente assim, no séculos XIX e XX era Indochina, parte do império francês na Ásia. Elas se reuniam para tomar o chá da tarde em uma confeitaria francesa em Saigon. Nessa época, o patriarcado e o protagonismo masculino forjado pelos homens brancos de regiões ditas poderosas do mundo já vigorava com força – mal saberíamos naquela altura que a situação ia piorar, e muito -, mas ainda assim essas mulheres se encontravam, proseavam sobre seus casamentos, sobre o calor da região, sobre maternidade, sobre suas criadas malcriadas. Trocavam receitas, riam, choravam e desabafavam, ainda que frivolidades do próprio cotidiano.
Fofoca, até algum momento, era um ato libertador quando as mulheres se expressavam livremente sobre seus afetos e seus desafetos, sobre seus sentimentos, e também sobre a sociedade em que viviam; traçavam paralelos com a vida dos outros para entender a sua própria. Assim também, elas podiam se ajudar, se empoderar juntas, criar discursos de poder e expandir suas ideias. Uma dava segurança para outra e não se percebia mais só. Essa é a origem da fofoca.
Segundo a autora italiana Silvia Federici, em seu livro “A história oculta da fofoca”, o termo “gossip”, fofoca em inglês, originalmente significava “God parent”, uma espécie de madrinha ou padrinho, alguém com quem você poderia estar e contar. Quando olho agora no dicionário de português a palavra fofoca, lá diz: dito cheio de maldade, mexerico; aquilo que se comenta com o intuito de causar intrigas; conversa sem fundamento, e por aí vai.
Traduzido recentemente por fofoca, gossip é mais um dos conceitos distorcidos ao longo de séculos de patriarcado, que como a própria Silvia diz, narrar a história de palavras como essa que “são frequentemente usadas para definir e degradar as mulheres é um passo necessário para compreender como a opressão de gênero funciona e se reproduz”. Afinal, as mulheres são aquelas, nas piadinhas cínicas machistas, que fofocam, que tramam, que falam da vida dos outros, que se metem em tudo, que conspiram. Os homens, ó pobres seres, são objetivos, éticos, frios, concisos, sintéticos, desinteressados, eficientes. E de que esses rótulos  disfarçados de realidade nos serviu? Para criar separação e guerra entre nós, mulheres, e diminuir nossos grandes atributos.
Já ouvi de algumas pessoas que sou fofoqueira, já até vesti essa carapuça algumas vezes, de maneira inconsciente, entendendo que não fazia sentido, mas sem saber exatamente o porquê. Precisei desconstruir muita coisa dentro de mim para entender que adoro saber das histórias alheias e contar as minhas, bem diferente da fofoca aplicada para enfraquecer os encontros inspiradores e de ajuda mútua de mulheres e suas trocas profundas.
Não tenho nada a ver com a vida das pessoas, mas me interesso genuinamente por elas, até por quem eu não conheço. Perceber isso como uma virtude em mim foi libertador e me liberou de muitos julgamentos internos e autopunição. Isso a partir de muito autoconhecimento, do olhar para dentro, do me permitir ser quem eu sou de verdade e assumir minha identidade real. Quero resgatar o conceito primitivo de fofoca sem culpa. A época de ser reprimida e distorcida passou.
Um salve a todas as mulheres taberneiras, lavadeiras, madames e suas criadas! Vocês abriram os caminhos pra mim.
*Legenda da ilustração: *Ilustração publicada em 1894 em uma revista britânica da época. A arte retrata um tenebroso objeto de tortura colocado em mulheres consideradas “inoportunas”, “rebeldes”, suspeitas de bruxaria. O objeto de ferro travava a língua das mulheres e as impedia de falar. Muitas eram conduzidas em praça pública  para “servir de exemplo” à sociedade (arcaica e misógina).
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Destaque Gerais

Ekarinny, cientista mossoroense, ministrará palestra em evento nacional

A estudante de biomedicina, Ekarinny Myrela de Medeiros, 21 anos, mostra que ciência é coisa de menina. Uma inspiração para outras jovens cientistas, ela se prepara para, nesta sexta-feira (5), participar do VI Congresso Nacional de Pesquisa e Ensino em Ciências (CONAPESC) como palestrante. “Eu vou participar do Webinário 02 que acontecerá no primeiro dia do Conapesc com o tema: Jovens na ciência: o futuro é hoje”, explica.

As desigualdades de gênero na ciência brasileira ainda são evidentes. Embora sejam perceptíveis as transformações em relação à posição das mulheres na ciência, com avanços significativos no que diz respeito à inserção e à participação das mulheres no campo científico, é evidente a necessidade de superar as desigualdades.

Graduanda de biomedicina pela FACENE-RN, Ekarinny desenvolve projetos na Iniciação Científica Júnior desde 2016 na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA). Ela conta que entre 2016 e 2019 participou de diversas feiras de ciências nacionais e internacionais, sendo contemplada com o quarto lugar em medicina translacional na Intel ISEF no ano de 2019. Além disso, possui experiência na produção de polímeros biodegradáveis, atualmente com atividade antimicrobiana frente a patógenos humanos e é voluntária do programa Ciência para Todos.

Desenvolvi três projetos científicos, a Embacaju: embalagem biodegradável produzida a partir do reaproveitamento da folha do caju (Anacardium occidentale); Cashew Bottle: garrafa biodegradável produzida a partir do reaproveitamento de resíduos do cajueiro (Anacardium occidentale L.) e o Desenvolvimento de cateter bioativo, proveniente do aproveitamento do líquido da castanha do caju (Anacardium Occidentale) como alternativa na prevenção de infecção sistêmica”, detalha.

Os desafios enfrentados pela geração de jovens cientistas no Brasil são muitos. Em tempos de retrocessos e da falta de investimentos voltados para ciência e tecnologia, não tem sido fácil para os jovens que optam por essa carreira. Para além dessas dificuldades, quando falamos de mulheres nestes espaços, ampliamos esses desafios. O preconceito e os estereótipos ainda acompanham a trajetória das mulheres no campo científico, lugar que culturalmente é visto como sendo dos homens.

Acredito que estou apenas no começo da minha vida acadêmica e como uma jovem cientista e mulher ainda terei que enfrentar muitos desafios, não somente por falta de recursos financeiros, mas também lutar por respeito na academia. Minha história com a ciência começou desde 2016, quando ainda estava no ensino médio. Descobri que poderia ser uma cientista, mesmo estudando em uma escola pública, sem laboratório e que poderia mudar o mundo com uma boa ideia. Foi com esse querer mudar o mundo que consegui participar da maior feira de ciências do mundo e de diversos eventos científicos nacionais e internacionais”, destaca.

Sobre ser cientista no Brasil, Ekarinny considera que “a principal dificuldade que eu posso destacar é a de existir enquanto cientista no Brasil. Os desmontes na ciência e na educação, que vêm se tornado frequente no nosso país nos últimos cinco anos, estão tornando a produção científica um desafio para além do processo laborioso que normalmente se é pesquisar. Entrei no ensino médio sonhando em me tornar uma cientista numa realidade que hoje praticamente não existe mais.

Conforme explicou, a falta de estrutura para os estudantes de todos os níveis da educação, a falta de investimento em produção científica e hoje, mais do que nunca, a descredibilização da Ciência são as principais dificuldades enfrentadas. “Não que essas dificuldades vão me parar de ser a cientista que venho trabalhando pra ser, as dificuldades não me impedem de construir os sonhos que eu tenho, mas crescer enquanto cientista, num momento como esse, talvez tivesse me impedido de sonhar. Talvez tivesse me privado de existir enquanto cientista”.

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Destaque Espaços Matracas Sugere

Mad Men: uma obra-prima que mostra as revoluções individuais e coletivas nos anos 50/60

Texto de Nathalia Rebouças

Parece uma série sobre publicidade nos anos 50 e 60. Apesar do tema ocupar de forma primorosa o pano de fundo dessa série, não é esse o foco principal de Mad Men. É uma história sobre pessoas. E como cada uma delas reage às transformações políticas e sociais, dessas duas décadas tão significativas para a história mundial.

Mad Men utiliza a publicidade para falar da história de Don Draper. O diretor de criação de uma agência publicitária. Admirado, invejado, criativo, cheio de conflitos. É um personagem contraditório, forte, fraco, impetuoso, resiliente. Com defeitos e qualidades que o aproximam de perfis comuns, que fazem parte da nossa rotina.

Mas o protagonismo da série é dividido com outra personagem marcante. Peggy Olson é a típica menina tímida que chega na agência para ser secretária, única função ocupada por mulheres naquela época. Aos poucos ela vai sendo descoberta. Em uma sessão de prova para um cliente ela faz um comentário que chama a atenção. Don te dá a grande chance: se tornar redatora da agência.

Em uma frase marcante, um dos clientes diz:” – uma mulher redigindo?! É como ver um cachorro tocando piano”

Peggy cresce. Ocupa o seu espaço. E vivencia diversas transformações na agência.
Na verdade, há quem diga que ela é a grande protagonista da história. Feminista nata. Sem precisar se dizer feminista. Uma mulher altiva, autônoma, corajosa e cheia de si. “Eu não preciso que um homem diga o que é melhor pra mim.”

Peggy vive a ascensão da mulher, a conquista dos direitos civis, a discussão sobre liberdade sexual e política. Um furacão de mudanças naquele momento, todas retratados na série.

A publicidade aparece em peças famosas. Slogans que até hoje não saem da cabeça da população.

Nesse processo, briga com Don, vira chefe dele e se reconcilia, ao som de Frank Sinatra, com o clássico “My Way”, a cena mais linda que já pude presenciar em se tratando de produção para as telas.

Mad Men aborda o feminismo, o machismo, o American Way of Life, os conflitos humanos, o existencialismo, a homossexualidade. Tudo isso em uma perspectiva que parece que você está assistindo uma série sobre publicidade. Ou que está assistindo uma ode ao machismo. Retratar a opressão masculina é apenas óbvio diante daquele contexto social e histórico. É a melhor série sobre pessoas e transformações que existe. Ou sobre as nossas contradições. Uma verdadeira obra-prima. A melhor de todos os tempos.

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Ady Canário Colunistas Destaque

Mulheres negras nas cidades e a esperança de uma política afirmativa

Feliz por participar desse projeto da revista Matracas voltada para abordagem jornalística com foco nos direitos humanos das mulheres! Inicialmente, destacamos as mulheres negras nas cidades e os desafios de uma política para construção das ações afirmativas no contexto da violência do racismo no Brasil. O que fazer para promover a igualdade racial das mulheres negras no contexto de desigualdades estruturais?

Ressaltamos as políticas afirmativas interseccionais que são voltadas para grupos sociais vulneráveis e estão historicamente em situações desfavoráveis na sociedade por diferentes fatores, sejam históricos, culturais e econômicos. Negros, indígenas, populações ribeirinhas, de periferias, entre outras formas de existência são alvo dessa política como imperativa de justiça e equidade social. Essas ações são medidas reparatórias focais em prol de grupos discriminados vítimas de racismo e preconceito visando à valorização e reconhecimento de suas histórias no passado, no presente e construção de seu futuro.

Evidentemente, dada sua importância no combate às desigualdades sociais e raciais, as políticas de ações afirmativas, como exemplo, a política de cotas para negros (autodeclarados pretos e pardos) na universidade e concursos públicos, provocam diversas demandas no enfrentamento às problemáticas em relação às condições humanas nas dimensões de classe, raça e gênero, especialmente para as mulheres negras, feministas, com deficiências e LGBTTQIA+ numa sociedade racista e sexista, dentre outros tipos de práticas. Nesse sentido, as ações afirmativas são oportunidades de refletirmos sobre o racismo, seu fenômeno e metodologias relacionais que perpetuam nas instituições para com as mulheres negras e sua baixa representatividade.

As estruturas sociais do racismo, sexismo e outras formas de discriminações estão presentes e produzem efeitos negativos sobre a vida. Afetam sobremaneira os grupos étnico-raciais que sofrem violências por conta do preconceito racial. Produzem a baixa remuneração, os postos de trabalho de menor prestígio e a baixa autoestima das mulheres negras. Assim, indagamos: por que mulheres negras? Porque sempre estivemos nas lutas e ainda somos parte de uma comunidade negra que sofre a falta de acesso à representação em razão do racismo institucional e no cotidiano.

Nesse contexto, nós mulheres negras temos vozes e coragem nos caminhos abertos, apesar de silenciadas pelo sistema opressor, que nos desqualifica, tornando nossos conhecimentos inválidos na cultura. Temos um papel fundamental por compreendermos as nossas opressões e a de outros grupos, sem hierarquização. É nas cidades que há de se reconhecer a importância das mulheres negras como “sujeitos” de direitos humanos. São relações desiguais de classe, gênero e raça no processo legado pela escravidão, até os dias atuais, e a suposta abolição da escravatura, bem como a ausência de políticas de inclusão e emancipação social.

Contudo, mulheres negras (re)existem contra os dispositivos de exclusão e dominação. A implementação de ações afirmativas são necessárias e dizem respeito a variados temas, principalmente no acesso ao trabalho e educação, como estratégias urgentes visando à inclusão social, o combate à discriminação racial e práticas descolonizadoras da atual ordem eurocêntrica do bem viver nas cidades. É no âmbito da (re)existência que as vidas das mulheres negras importam. (Re)existiremos!

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Manifesto do útero

Aqui está quem, mesmo intocado e quieto, mesmo tão forte para fazer-se e desfazer-se
mensalmente, não tem um segundo de paz social.
É um tal de “- Não precisa mais dele… só é útil para gerar filhos”; ou também: “- Ah, que saco!
Lá vem esse inchaço indesejado! QUERIA TER NASCIDO HOMEM”; ou ainda: “- Tá perdendo a
validade, hein? Quando vai resolver ter um filho? O tempo corre!!!”
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh! Dá pra ter respeito, por favor? Paciência tem limite.
Saiba você que, além de ser uma cavidade fecunda, mantenedora da vida, eu também tenho
sentimentos. Ou melhor: recebo o impacto direto deles. Não é legal ‘ouvir’ essas coisas.
Também não é legal ser maltratado. Fossem apenas as opiniões externas… Mas não são: falta
cuidado, sobram comportamentos agressivos, medicamentos e materiais tóxicos, descaso
continuado. Se é verdade que sou frágil, então cuidem de mim!
Tô falando assim, cheio de exclamações porque estou exausto; de verdade. Se algo não está
bom, se a alimentação não foi adequada, se há um embuste escroto na área, logo tenho que
suportar carregar aquele sangue todo sem conseguir descamar. Daqui a pouco eu mesmo crio
um mioma e nem percebo! Meu papo reto é para que parem de me diminuir. Parem de querer
me programar como a um computador. Apenas parem.
Sou força viva. De pequeno viro gigante, nutro, sustento, cocrio. O chakra do ventre é vital
para manter a sua alegria e energia; sou – jovem ou velho – essencial para você.
Meu manifesto é para que cuide de mim. Para que honre meus portais de vida; para que,
cuidando de mim, você conheça (e não esqueça) o seu valor.
Meu grito é para que grite, sempre que quiser. Para que saiba-se leoa, rainha de si e do seu
poder. É para que não me maltrate, e nem se perca.
Meu canto disfarçado de texto é para que dance. E dançando renasça. E renascendo, leve a
cura para outros ventres. E diga-lhes desde cedo: Você tem valor. Sacrário vivo, microuniverso,
vida em sua forma mais pura, plante e replante amor. A começar em si.

Com amor e coragem,
Seu útero.

Para ouvir: A começar em mim – Vocal Livre

Obs: Performance “Pater, Patrimônio Abandonado” de Magui Kampf, 2019. Registro fotográfico de Melissa Braga.