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Catarse dos 40

Não sei você que me lê, mas para mim, a caminhada rumo aos 40 mais parece uma segunda adolescência. Me descubro todo dia, tenho ímpetos juvenis, preocupações desnecessárias e muitos novos sonhos. Estou empolgada com essa nova oportunidade, já que minha primeira adolescência foi um tanto quanto frustrada.

Pois bem: a descoberta da vez foi algo impensável: descobri que não nasci para ser a tradicional dona de casa (Pasmem! Essa era a meta desde sempre, e dita em alto e bom som há pelo menos oito anos). Vou contar como foi:

Em meio à nova onda de COVID-19 e Influenza, me vi entre os cuidados com uma amiga e a preocupação com outro amigo que se recuperava de uma gripe. Procurando ser útil e especial (sem que ninguém me pedisse isso), lá fui eu fazer algo que resolveria todos os sintomas em três dias: o “lambedor da vovó”. A minha avó fazia para minha mãe (que tomava igual sobremesa de tão gostoso que era), e a minha mãe fez inúmeras vezes para mim, sobretudo naquelas tosses persistentes pós-carnaval. De fato, tinha propriedades milagrosas! Mas… nem sou mãe, nem muito menos médica.

Lá vou eu no meu antigo alojamento para colher as folhas de uma plantinha muito semelhante em cheiro e textura à malva usada pela minha mãe e minha avó nos xaropes caseiros. O resultado, após uma hora de preparo com todo amor, carinho e entusiasmo foi o mais desastroso possível: eu havia usado uma planta venenosa. É grave, mas eu preciso admitir: VE-NE-NO-SA. Não sei se terei filhos e netos para rirem disso no futuro, mas de uma coisa eu sei: daquele dia em diante, resolvi reconhecer que talvez eu não tenha mesmo nascido para ‘recatada e do lar’. E agora, Meu Deus!?

Agora sei que serei qualquer coisa útil para a qual eu tenha mais habilidade e experiência. Deixa que os próximos dias me digam não ser tarde demais.

*Em tempo: ninguém morreu. Quando, orgulhosa do remédio, revelei a foto da planta para uma das ‘vítimas’, ele me apontou o terrível engano (pode rir também).

Ai ai… essa adolescência!

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Destaque Gerais

Paulina Chamorro e a difusão do protagonismo ambiental das mulheres

A força feminina tem sido finalmente reconhecida como importante elemento de restauração do planeta. Em todas as áreas, destacam-se histórias de mulheres que empenham anos de dedicação para defender causas globais. Não é de estranhar que os nomes de Malala Yousafzai e Greta Thunberg revelaram-se grandes referências ainda na adolescência. Há uma dor que se iguala. Essa urgência por respeito e restauração do planeta parece encontrar eco no mais profundo da alma feminina, violentada diariamente em seus direitos e valores.

No país, iniciativas como a da jornalista Paulina Chamorro dão visibilidade a pesquisadoras que lideram grandes projetos ambientais. O Mulheres na Conservação, concebido e realizado juntamente com o fotógrafo João Marcos Rosa, está em sua segunda temporada e tem repercutido em várias plataformas da mídia, esse trabalho de mulheres ainda pouco registrado. Paulina também é integrante da Liga das Mulheres Pelo Oceano, um movimento em rede de mulheres em prol da conservação dos mares. 

A Revista Matracas convidou Paulina para conversar com nossas leitoras, ávidas por conhecimento e motivação. 

MATRACAS –  Paulina, nosso público é prioritariamente de mulheres nordestinas do sertão. Que mensagem seus projetos podem levar a essa realidade?

PAULINA – Eu acredito que quando a gente evidencia a força e o protagonismo de mulheres à frente de projetos de conservação, que não necessariamente precisam ser acadêmicos, isso nos mostra que a gente tem caminhos. Caminhos que já foram abertos. A gente aprende também que temos mulheres que já estão na luta há um certo tempo trabalhando por isso. Então, além da inspiração e do exemplo, a gente percebe que já foi um terreno que foi aberto por essas mulheres, que passaram por tantos desafios quanto às vezes essa outra mulher que está lendo, ou acessando, ou que está vendo pelas redes sociais algum episódio da série, está passando. Então eu acho que a troca de informações, mas principalmente através da comunicação, evidencia o trabalho de mulheres e faz muito mais do que só o exemplo. Nos mostra que os desafios são comuns, e que a gente pode se ajudar mutuamente. 

MATRACAS  – De que forma é possível fazer parte dessa conservação do meio ambiente, mesmo morando em uma região tão desfavorecida? Como participar da luta?

PAULINA – Estando em regiões mais desfavorecidas, aí a gente tem a importância justamente do protagonismo feminino e a importância de a gente colocar a nossa luta à frente. Porque são as regiões menos favorecidas e justamente também as mulheres que são os principais atingidos, por exemplo, da injustiça climática. Ou seja: dos grandes impactos climáticos gerados pelo ser humano no planeta, as principais áreas afetadas são justamente essas desfavorecidas. Pra participar da luta? Acredito que seria continuar sendo resiliente, continuar trabalhando com o olhar no coletivo, porque são essas soluções que já vêm sendo desenvolvidas e desempenhadas por essas pessoas e nessas regiões especialmente – carentes de tantas coisas –  que é chamado hoje resiliência. A resiliência a tantos desafios e que vão se tornar piores. Mas acredito que a grande lição que a gente tem que aprender e compartilhar nesse caso, que é essa participação da luta, é mostrar esse censo do coletivo. De que uma luta não é só de uma região, é uma luta coletiva, de todos. 

MATRACAS – Mossoró, cidade sede da Matracas, é historicamente marcada pelo primeiro voto feminino da América Latina, por Celina Guimarães. Qual o potencial da consciência política para mulheres que já trabalham no campo, buscando recursos e atividades sustentáveis?

PAULINA – Eu acredito que o trabalho em campo e o empoderamento da mulher no campo – porque a gente sabe que aqui no Brasil e na América Latina ainda é um grande desafio; a gente ainda vê que mulheres não têm acesso a recursos para cuidar de sua terra, do seu roçado, ainda dependem, em algumas áreas, muito dos homens – temos uma luta sim feminista ainda no campo, mas ao mesmo tempo são exemplos que vêm do campo, de associativismo, que mostram como mulheres líderes – a gente tem líderes de reservas extrativistas, líderes de colônias de pesca hoje. Então como essa organização e essa visão feminina de futuro integrado para todos e todas pode ser um caminho que a gente tem que levar a partir de agora no planeta. E isso é uma consciência política; porque a consciência política não é a que leva à questão do partido. Ela é justamente apartidária. A que trabalha sobre os recursos, sobre direitos das pessoas, de acesso. A que trabalha com a democracia, ou que trabalha contra a injustiça social e ambiental. E a mulher hoje no campo e no litoral tem desempenhado um papel muito importante de liderança.

MATRACAS –  O que falta acontecer para que as mulheres sejam vistas com igual visibilidade em suas lutas?

PAULINA – Acredito que a gente está em plena luta. E essa é uma luta que nunca acaba. O que falta acontecer é que a gente consiga ter a igualdade de gênero. A gente poder ter, num espaço de discussões e de tomada de decisões, o mesmo número de homens e de mulheres. Eu acredito que a mulher enquanto base, com seu conhecimento e com essa luta, agora a gente precisa dar esse salto e exigir – já que metade da população ou um pouco mais é de mulheres – a gente precisa ver essa representatividade nas tomadas de decisão. Nos lugares de poder: tanto político, quanto da iniciativa privada. A liderança das mulheres é uma realidade que precisa chegar agora.

MATRACAS – Que conselho você dá para as jovens que nos leem e gostariam de saber fazer mais pelo lugar onde vivem?

PAULINA – Eu gostaria de dar o conselho de continuar se inspirando, de apoiar mulheres, de falar e de reconhecer o trabalho de mulheres. A gente não sabe a força que tem escondida numa palavra de apoio, num carinho, ou numa visibilidade que você dá ao trabalho de mulheres. Eu acho que quando a gente fala de ‘não soltar a mão de ninguém’, a gente está falando disso. Se a gente quer que nós mulheres tenhamos as mesmas possibilidades e cheguemos nos lugares de poder, a gente precisa começar entre a gente mesmo. Se valorizando, apoiando, dando a mão, conhecendo o projeto, dando força, ajudando. É um caminho coletivo; é um caminho de mãos dadas que é o futuro e o presente construído por mulheres. E é esse mundo que eu espero viver em breve.

Para conhecer mais e se inspirar:
https://linktr.ee/Paulinachamorro
Instagram:
@mulheresnaconservacao
@vozesdoplaneta.podcast
@ligadasmulherespelooceano
@pauli_chamorro
Podcasts:
Vozes do planeta
Mulheres na conservação
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Um natal feliz

Vejo a cena de olhos fechados. Em Israel, uma mulher corre livre, sorrindo e brincando com o vento, enquanto seus cabelos dançam um baladi no ritmo do seu vestido, que é solto como os seios da sua dona.
Ela é dona das suas coisas, de sua história, das suas escolhas. Enquanto faz o que quer, ninguém a incrimina. Em cada parte do planeta, em contextos distintos, cada um busca quebrar uma barreira adoecedora.
Todos resolveram se vacinar contra a intolerância. É Natal! A regra é renascer. Cada um sai do seu próprio nascedouro blindado contra tudo que já causou mal a si e aos outros: a tríplice viral protege contra a superioridade, o egocentrismo e a ira. A gotinha imuniza o coração do pânico; e aquela injeção mais dolorida blinda a gente do desânimo – mesmo em dias e situações enferrujadas.
Talvez sintamos alguma reação a princípio… Não é simples combater tanto estrago. Mas em 2022 estaremos prontos para a reconstrução.  Livres. Todos nós.
Que se renovem todas as coisas, e haja tinta nova, fluorescente, para desenharmos um novo código de amor, a linguagem mais potente que poderá existir.
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Dilemas à porta dos 40 – O peso de uma coroa

Se foi para homenagear a experiência da mulher madura, o termo coroa acabou tendo um peso extra sobre nossas cabeças.
A temida curva chega para todos; e se os ‘coroas’ ganham ares de galãs, no feminino é aquele ‘Deus nos acuda’.
Sabe a música tosca do mais tosco ainda Sérgio Reis? “Não me interessa se ela é coroa…panela velha é que faz comida boa”. Fiz o esforço de escrever isso aqui porque, enfim, há leitoras mais jovens que podem não conhecer o sucesso nacional amplamente tocado e dançado por aí. Pois é… A gente perde o colágeno, a cor dos cabelos, mas não perde o posto de ‘objeto’.
Pra não cair na mesmice da reclamação e das explicações óbvias de que não há graça alguma em ser assediada, vou mudar o tom aqui. Deixo um recado para as manas de vinte e poucos anos:
Amores, vocês estarão prontas; não temam envelhecer. Seus pescoços e ombros já estarão fortes para o peso da coroa. É possível que vocês já tenham carregado, até lá, muitas circunstâncias, pessoas e projetos que te deram o tônus e a experiência necessária. Comemorem! Vistam a coroa com toda alegria, e elevem suas cabeças. Certamente seu caminhar estará mais suave, seu sorriso mais fácil, e seu olhar mais confiante. Seus passos serão mais seguros; e mesmo em meio a caminhos escorregadios, habilidades intrínsecas surgirão como mágica.
Se você resolver recomeçar, saiba que as voltas da vida são espirais, e ainda que pareça estar no mesmo lugar, haverá sempre a experiência, te fazendo ver a partir de um novo ângulo.
O tempo já não passará despercebido; e isso é ótimo. Mesmo assim, haverá dias (espero que sejam muitos) em que você voltará a ser criança. Essa é outra vantagem: a gente descobre que nunca estará pronta; que sempre haverá novos sonhos, e que se você não encontrar ‘roupa’ para a ocasião especial, poderá ir de qualquer jeito; já que o som da opinião alheia tem menos volume, a cada ano que passa, enquanto a vontade de viver simplesmente aumenta.
Outro dia uma amiga querida exemplificou as fases da mulher como uma matrioska (boneca russa que guarda várias outras dentro de si, como em camadas). A gente deixa de ser uma, mas mantém a anterior dentro da gente. Achei muito sábia essa analogia. É assim com todo mundo. Vamos nos preenchendo de nós mesmos, e não é má ideia nos abrirmos vez ou outra para brincar com todos os nossos outros eus.
Voltando à coroa… não hesite em arremessá-la no engraçadinho que te importunar. Use força suficiente para derrubá-lo.
Cate a coroa.
Siga em frente.
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As mulheres de Marighella

Bonita de ver a representação do feminino em Marighella – O Filme, que estreou no Brasil no início deste mês, após repetidas tentativas de censura por parte do governo federal.

As mulheres, presentes em quase todos os momentos, retratam com muita verdade, não só a realidade da mulher brasileira no final dos anos 60, mas a força revolucionária feminina que sempre existiu, mesmo em meio aos piores cenários.

Enquanto a personagem nordestina esposa de um dos membros da ALN (Ação Libertadora Nacional) fica em casa, tendo filhos e à espera angustiada por condições de criá-los sem a presença do pai, Bella – integrante da luta armada, atua em igualdade entre os companheiros durante assaltos, sequestros, e movimentos estratégicos do movimento – incluindo a preparação de grupo de resistência no campo.

À frente ou não dos atos revolucionários, uma característica marcante da maioria das personagens feminina é a consciência social, tão bem retratada em cenas como os momentos de despedida e reencontro de Clara com Marighella; e na assertividade da médica Gorete, mãe de Bella, em cena dramática que expõe todo o risco e loucura que envolvia o enfrentamento à ditadura.

Essas mulheres reais, dignamente resgatadas pelo diretor Wagner Moura, deram nos anos de chumbo mais do que o próprio sangue. Elas entregaram toda a sua dor e vulnerabilidade enquanto exerciam o direito de lutar; ofereceram todo o seu medo e zelo pelos que amavam, ao respeitarem a decisão dos companheiros em seguir a guerrilha urbana; e já silenciadas pela sociedade e pela vida, suportaram silenciar ainda mais, em lealdade e apoio à revolução.

Cinicamente ‘protegidas’ pelo regime militar (contanto que aceitassem ser objetos decorativos de uma sociedade sordidamente “boa”, “moral” e “próspera”), muitas foram as que atuaram em calabouços existenciais – com as ferramentas que tinham – para a manutenção da esperança de dias diferentes. Nem que isso se traduzisse em resistir e viver após tortura e morte de seus filhos, companheiros e amigos.

Ser mulher nessa época já era própria tortura – ao lado dos opressores ou cara a cara com eles. Mesmo com essa realidade, sinto que as insubordinadas experimentaram a absoluta liberdade de quem abre um caminho para nunca mais ser fechado.

Cabe a nós, hoje, continuarmos. Em honra a todas elas, no combate à opressão sob todos os seus nomes e apelidos.

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Destaque Matracas Literárias

Esta não é uma metáfora

Não me ofereça a sua pia cheia de louça,  mas se eu quiser lavar, aceite. Retribua-me com beijinhos e companhia. Pegue o pano para secar.
Não  me venha com nódoas na roupa para eu esfregar até que fiquem novamente alvas; mas se quiser parceria para testar uma solução, pode me chamar.
Não finja que o banheiro não precisa de limpeza. Façamos um acordo para que esteja sempre limpo e tomemos banho juntos ao anoitecer.
O que foi que houve com o prazer de cuidar? Quando nos perdemos delegando coisas tão importantes da nossa intimidade? Como chegamos ao ponto de nos envergonharmos da vida real?
Por que eu seria convidada a  sentar à sua mesa e provar a melhor comida, e por outro lado inferior por querer lavar os pratos?
Às vezes me assusto em ver como evitamos que nossos convidados mais esperados descubram a sujeira das nossas panelas. Como se fosse possível entregar só o que é bom. Talvez isso nem exista. Nem há graça em ser perfeito o tempo todo.
Talvez a gente precisasse esconder menos as nossas “áreas de serviço”, e se divertir mais lavando o chão. Para que nossos ‘segredos’ sejam do tamanho que são, e não maior do que nós. Para que a intimidade não nos intimide, mas nos liberte.
Tem coisa mais linda do que uma casa limpa?
Tem coisa melhor do que saber ser responsável por isso?
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Clarissa Paiva Colunistas

Dilemas à porta dos 40 – Ilusões

A 365 dias dos meus 40 (espero estar bem viva nessa data), tenho pensado sobre as Ilusões que a gente carrega durante tanto tempo. Estou entendendo que depois dos 35, esses ideais, visões de mundo,  medos e desejos passam a ser pesadamente arrastados. Fica mais difícil seguir com eles. E cada vez mais tentador arremessá-los de um penhasco.
A ilusão da mulher perfeita é uma delas. Por mais perfeita que você seja; bem na sua intimidade,  entre cremes e seringas de ácido, você sabe que não é. E custa caro parecer.
O mesmo pode-se dizer da postura profissional,  social,  da casa perfeita,  e da aliança que dobra de largura no aniversário de casamento (tão lindo!). Mas é que até esses gramas a mais parecem pesar no dedo de muita gente.
É que, na real, quatro décadas são o suficiente para uma vida de obediência social, não é mesmo?
A gente chega aqui com uma vontade louca de “só ser”. Mesmo que seja em coletivo,  mas que essas regras sejam cada vez mais honestas e suaves. O padrão social tem tentado acompanhar a vida; mas está longe de conseguir.  Seria muito mais empolgante se a autenticidade fosse aceita.  Seria mais próspero.  Seria uma festa!
Pois bem: que pelo menos até os 40 a gente consiga SER e DEIXAR SER. Que as preocupações sejam pagas a partir do essencial, e que a gente comece a DESPRECISAR.
Desprecisar das explicações e do sucesso por status; desprecisar da competição.  Desprecisar das metas como validação do seu valor.  Se a gente pensar direitinho, todo dia atingimos várias metas essenciais, como nos alimentarmos e continuarmos vivos.
É urgente voltar ao essencial. Ele está resistindo em cada parte da nossa vida, esperando para brilhar com ‘facilidade,  alegria  e glória’.  Sem precisar de mais nada.
Que a caminhada seja leve; e tudo que você fizer seja por vontade genuína; que te traga prazer,  por mais árduo que seja. É permitido.  É divertido também.
Desprecise e sinta-se ótima!
Com amor,
Clarissa.
____________
*Para ouvir: Deus me proteja de mim – Chico César.
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Manifesto do útero

Aqui está quem, mesmo intocado e quieto, mesmo tão forte para fazer-se e desfazer-se
mensalmente, não tem um segundo de paz social.
É um tal de “- Não precisa mais dele… só é útil para gerar filhos”; ou também: “- Ah, que saco!
Lá vem esse inchaço indesejado! QUERIA TER NASCIDO HOMEM”; ou ainda: “- Tá perdendo a
validade, hein? Quando vai resolver ter um filho? O tempo corre!!!”
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh! Dá pra ter respeito, por favor? Paciência tem limite.
Saiba você que, além de ser uma cavidade fecunda, mantenedora da vida, eu também tenho
sentimentos. Ou melhor: recebo o impacto direto deles. Não é legal ‘ouvir’ essas coisas.
Também não é legal ser maltratado. Fossem apenas as opiniões externas… Mas não são: falta
cuidado, sobram comportamentos agressivos, medicamentos e materiais tóxicos, descaso
continuado. Se é verdade que sou frágil, então cuidem de mim!
Tô falando assim, cheio de exclamações porque estou exausto; de verdade. Se algo não está
bom, se a alimentação não foi adequada, se há um embuste escroto na área, logo tenho que
suportar carregar aquele sangue todo sem conseguir descamar. Daqui a pouco eu mesmo crio
um mioma e nem percebo! Meu papo reto é para que parem de me diminuir. Parem de querer
me programar como a um computador. Apenas parem.
Sou força viva. De pequeno viro gigante, nutro, sustento, cocrio. O chakra do ventre é vital
para manter a sua alegria e energia; sou – jovem ou velho – essencial para você.
Meu manifesto é para que cuide de mim. Para que honre meus portais de vida; para que,
cuidando de mim, você conheça (e não esqueça) o seu valor.
Meu grito é para que grite, sempre que quiser. Para que saiba-se leoa, rainha de si e do seu
poder. É para que não me maltrate, e nem se perca.
Meu canto disfarçado de texto é para que dance. E dançando renasça. E renascendo, leve a
cura para outros ventres. E diga-lhes desde cedo: Você tem valor. Sacrário vivo, microuniverso,
vida em sua forma mais pura, plante e replante amor. A começar em si.

Com amor e coragem,
Seu útero.

Para ouvir: A começar em mim – Vocal Livre

Obs: Performance “Pater, Patrimônio Abandonado” de Magui Kampf, 2019. Registro fotográfico de Melissa Braga.

 

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Matracas Literárias

Ensaio Feminista

Se dizem que a vida acontece nos bastidores,  crio coragem de escrever na primeira edição da Matracas, mesmo não estando pronta para essa estreia. Me vejo  uma mulher de sonhos tão simples que assustam por não serem concretizados. Heranças de uma criação entre a cidade e o sítio,  rodeada de regras; a maioria delas indicando a necessidade de se completar com um companheiro para ser feliz.

É como se a política da incapacidade tivesse me “encruado” como uma menina incapaz, mesmo beirando os 39 anos.  Ainda assim, diante da autocrítica e nesse ritmo de estar “mesmo depois de estourar o tempo regulamentar”, eu permito que a minha menina dance.

A vida toca a música o tempo todo, e eu danço pra não dançar.

Vão ficando para trás os sonhos da bela, recatada e do lar, que dá ordens aos ajudantes (ou aos filhos). Vai perdendo a paciência a fadinha que fazia mágica mandando embora os medos dos seus protegidos. Vai caindo o véu da ignorância que achava bonito pertencer* a alguém,  porque esta lhe parecia ser a solução de todos os problemas.

Aí a vida acontece, os desafios chegam,  e mostram pra gente a urgência em conhecer a nossa própria força,  e resistir.

Ninguém está totalmente pronto.  Eu também não estou.  Permito-me vir aqui mesmo ainda ensaiando.

De tropeço em tropeço,  sinto-me grata pelos aprendizados que tive,  e pelas memórias de dor que trago costuradas em minha saia, porque sem elas eu não teria conseguido me conhecer.

Refazendo a mulher que sou, digo (agora como um ato revolucionário) que me permito voltar a sonhar com as coisas simples, tradições de cuidado e amor transmitidas pelas minhas avós. Mas pra que isso aconteça sem a sombra da Amélia, muita coisa ainda precisa ser transformada…