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Ela não queria voltar para casa

Essa garota, facilmente, poderia ser confundida com outra garota, ou com a história de uma outra garota. Era meu último ano de Ensino Médio e eu tinha algumas amigas, umas mais próximas e outras mais distantes. Estudava em uma escola pública, administrada pelo Estado. Eu amava aquela escola, tinha tantas salas, uma área enorme e um palco onde realizávamos as apresentações. 

E a biblioteca, meu lugar favorito quando não havia aula. Quando tinha aula de ensino religioso me escondia em um bloco de onde era possível visualizar as pessoas passando, saindo e entrando da escola. Ficava por lá, horas e horas, observando as pessoas. Tinha a menina do espelho, era a famosinha da escola. Ela passava o dia contemplando o rosto naquele mini espelho.  Quase uma parente distante do Narciso. Eu amava ficar ali, vendo a vida passar. Nunca ousei perder uma aula de matemática, eu tinha paixão pelos números e pela história. 

Numa dessas aulas vagas, uma das minhas colegas quis permanecer na escola. Assim como eu, ela não queria voltar para casa. Eu muito provavelmente encontraria obrigações a minha espera, então, o quanto eu pudesse adiar a volta para casa e permanecer na escola, eu adiava. Mas, o que a minha amiga alegava para não voltar era muito mais grave que as minhas obrigações. Era algo muito cruel e vivenciado por muitas meninas. Nessa época eu já havia lido Cacau, uma das obras do Jorge Amado. Foi à primeira obra que li e entre tantos personagens, entre as múltiplas histórias que se entrelaçavam em Ilhéus, nas fazendas de Cacau, uma personagem que era prometida em casamento a um rapaz foi vítima de estupro. Quando os pais descobriram, e o então noivo, todos a culparam e ela foi viver em uma casa de prostituição. A nossa sociedade ainda não entender, mas a vida da mulher é mais cruel do que se pensa. Nesse dia, perguntei a minha colega o porquê d’ela não querer voltar para casa e ela respondeu:

– Aqui estou melhor, aqui não tem meu padrasto me espionando. 

Ela era a filha mais velha, de um grupo de três irmãs. E as outras, também, haviam sido vítimas de situação de abuso por parte da mesma pessoa.  

– Minha irmã acordou com ele passando a mão no corpo dela. 

Essa menina não era a minha melhor amiga de sala, quem exercia esse papel era outra. Mas naquela manhã ela confiou a mim relatar os horrores que passava em casa.

Naquele dia, mesmo muito cedo, comecei a entender a importância de falar e, principalmente, de ser escuta.  

Éramos colegas de sala e naquela manhã não queríamos voltar para casa. 

Crônicas para mulheres

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Pequena crônica

Certa vez ouvi alguém dizer: “todos os homens são iguais, só mudam o endereço e CPF”.

Um fato sobre a vida: reúna 10 mulheres e você irá perceber que a retórica é verdadeira. Todos são iguais.  Ao conversar hoje com uma amiga próxima revivi meu passado recente. Há duas semanas, conversando com a amiga de uma amiga, revivi meu passado recente. E mais uma vez percebi que a retórica é verdadeira: todos os homens são iguais. Mas também percebi algo diferente. A diferença é marcada pelo tempo. Na semana passada doeu muito, hoje ainda doeu, porém, a intensidade da dor é menor. Será menor amanhã, na semana que vem, no mês que vem. Até que chegará o dia em que alguém vai dizer: você se lembra de fulano? E você, eu ou nós responderemos: nunca mais ouvi falar.

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A revolução feminina de cuidar de si mesma

Ia começar falando que estou atrasada para escrever sobre o dia da mulher, mas como muito se gosta de dizer que “dia da mulher é todo dia”, estou dentro do prazo. Passei o dia 8 de março inteiro irritada. Na verdade, é quase impossível ser mulher, ter consciência do que isso significa, e não ficar de saco cheio de ter um dia de “glória” e outros 364 de porradas.

Eu não odeio o fato de ser mulher, mas sei que existe um peso nisso que eu vou carregar até o último dia da minha vida. Na verdade, pesos, no plural. Recentemente, por exemplo, eu estava dividindo uma tarefa doméstica com um homem. Ele me observou esfregar o chão com uma vassoura por uns dois minutos até se sentir confortável para falar que fazia melhor que eu.

“É assim que você limpa a sua casa? Eu faço melhor que você. Minha casa quem arruma sou eu”. E em seguida, aos risos, foi me mostrar como esfregar o chão. Acho que na cabeça dele deve ter passado algo do tipo “Não sabe fazer coisa de homem e nem coisa de mulher”. Nascidas com útero, ensinadas a servir e cuidar, aos outros, nunca a si mesmas. Deve ser realmente chocante para a lógica masculina descobrir que mulheres não são domésticas natas. Se tornam pela obrigação que é imposta.

Assistindo a cena patética de mais um ego masculino querendo provar ser melhor que eu em algo, dei uma revirada de olhos, bati palma e parabenizei ele. Disse que ficava feliz em perder essa competição, afinal o grande objetivo da minha vida não é ser dona de casa. Eu prefiro dedicar meus dias a aperfeiçoar meu trabalho profissional, do que minha habilidade com a vassoura.

Eu venho de um lar matriarcal, e apesar da minha avó e da minha mãe não saberem o que é feminismo, elas foram grandes professoras no que diz respeito a independência feminina. Claro, reproduziram muitos atos e discursos machistas, e alguns perduram até hoje. Mas quando elas me deram uma vassoura a primeira vez para varrer, elas fizeram por mim, não por eles.

Me ensinaram de tudo: limpar casa, lavar roupa, cozinhar, trocar lâmpada, gás, botijão de água. Me ensinaram o que todo ser humano, independentemente de gênero, precisa saber: cuidar de si, cuidar do seu lar, gerir e manter sua vida. Não lembro de ouvir a clássica “já pode casar” dentro de casa (só fora). Mas sempre ouvi que precisava aprender essas coisas porque não teria elas para cuidarem de mim para sempre e também para quando eu fosse morar fora.

Hoje, tenho orgulho de dizer que não sou a melhor dona de casa. Faço o básico e sou satisfeita com isso. Claro que vez ou outra ligo para mainha para perguntar como cozinhar uma batata doce. Mas desde que me livrei do peso de ter que ser boa em afazeres domésticos, eles se tornaram mais fáceis, e eu passei a fazê-los por gosto, e não por obrigação.

E depois de um dia como ontem, que eu trabalhei, dediquei tempo ao meu lazer, fiz minhas marmitas e limpei minha casa para começar a semana bem, eu disse o que repito para mim mesma todos os dias: obrigada eu, por cuidar tão bem de mim, de um jeito que só eu sei! A cada dia que se passa confirmo a certeza que tenho: apenas mulheres cuidam de mulheres. E a tão sonhada revolução feminista mora ai.

Thífanny Alves

Jornalista

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Ato do 8 de Março em Mossoró será na Praça do Pax às 16h30

Neste 08 de Março, Dia Internacional da Mulher, mulheres em todo o país ocuparão as ruas com o mote “Pela Vida das Mulheres: Bolsonaro Nunca Mais! Por um Brasil sem Machismo, Racismo e Fome”. Em Mossoró, a principal atividade será na Praça do Pax, às 16h30, onde acontecerá o ato unificado, reunindo representações de diferentes movimentos sociais, sindicais e partidos políticos. 

“Esse ano de 2022 será decisivo pro Brasil. Com as eleições presidenciais chegando, nós mulheres, que sempre estivemos nas trincheiras, temos a chance de derrotar Bolsonaro, e com isso, dizermos não ao machismo, ao neoliberalismo, ao negacionismo, e de construirmos o país que queremos, que coloque a sustentabilidade da vida como prioridade”, destaca Pluvia Oliveira, da Marcha Mundial das Mulheres.  

Para ocupar as ruas, as mulheres se dividiram em dois blocos que sairão de pontos específicos e seguirão em passeata até a Praça do Pax para o grande ato. Um bloco sairá da praça do Shopping Boulevard e outro que sairá do Centro Feminista 8 de Março, localizado na rua Desembargador Dionísio Filgueira, 519, Centro.

De acordo com Telma Gurgel, da Coletiva Motim Feminista, o 08 de Março vai ser um dia todo dedicado às mulheres nas ruas contra Bolsonaro. “Vamos ter às 6h a Alvorada Feminista e à tarde um ato com todas as organizações feministas. Durante o ato teremos o artivismo, que é o conjunto de atividades artísticas de várias expressões. Além de ter, mais uma vez, a presença das mulheres em defesa da sua vida, contra Bolsonaro e pelo fim do feminicídio. É importante a presença de todos e todas que apoiam e, principalmente, das mulheres”, disse.  

Michela Calaça, do Movimento de Mulheres Camponesas, afirma que é fundamental que as mulheres ocupem as ruas no dia 08 de março: “na Via Campesina haverá uma jornada de luta das mulheres que vai do dia 07 à 14 de março com ações de solidariedade, com lutas de rua e também espaços de formação política, mas no dia 08 é todas nas ruas. Em um ano tão importante, as mulheres darão seu recado de que vão derrubar Bolsonaro. Iremos pautar isso durante o ano todo, e agora em março vamos dar uma amostra da nossa força”.

 Os movimentos que estão à frente do ato fazem um chamado a todas para se juntarem aos blocos e somar na luta pela vida das mulheres, contra o machismo, o racismo, o feminicídio, as desigualdades, o aumento do gás, do preço dos alimentos, da fome, do desemprego e toda essa crise econômica que só se agravou no governo Bolsonaro e que tem afetado de forma mais violenta a classe trabalhadora.  

Fazem parte do processo de articulação o Movimento de Mulheres Camponesas, várias organizações da via campesina, a Marcha Mundial de Mulheres (MMM), a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), a Liga Brasileira de Lésbicas, secretarias de mulheres dos vários partidos de esquerda, a União Brasileira de Mulheres e demais organizações de nível local e nacional como o Núcleo de Estudos da Uern (NEM), Associação dos Professores da Ufersa (Adufersa), a Coletiva Motim Feminista, entre outras.

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Esta não é uma metáfora

Não me ofereça a sua pia cheia de louça,  mas se eu quiser lavar, aceite. Retribua-me com beijinhos e companhia. Pegue o pano para secar.
Não  me venha com nódoas na roupa para eu esfregar até que fiquem novamente alvas; mas se quiser parceria para testar uma solução, pode me chamar.
Não finja que o banheiro não precisa de limpeza. Façamos um acordo para que esteja sempre limpo e tomemos banho juntos ao anoitecer.
O que foi que houve com o prazer de cuidar? Quando nos perdemos delegando coisas tão importantes da nossa intimidade? Como chegamos ao ponto de nos envergonharmos da vida real?
Por que eu seria convidada a  sentar à sua mesa e provar a melhor comida, e por outro lado inferior por querer lavar os pratos?
Às vezes me assusto em ver como evitamos que nossos convidados mais esperados descubram a sujeira das nossas panelas. Como se fosse possível entregar só o que é bom. Talvez isso nem exista. Nem há graça em ser perfeito o tempo todo.
Talvez a gente precisasse esconder menos as nossas “áreas de serviço”, e se divertir mais lavando o chão. Para que nossos ‘segredos’ sejam do tamanho que são, e não maior do que nós. Para que a intimidade não nos intimide, mas nos liberte.
Tem coisa mais linda do que uma casa limpa?
Tem coisa melhor do que saber ser responsável por isso?
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O FILHO DE MIL HOMENS E A DOR DA INCOMPLETUDE

Como diria Alceu Valença, “A solidão é fera, a solidão devora”, e foi em meio ao isolamento pandêmico, que me vi acolhida na escrita simples e lírica de Valter Hugo Mãe, premiado escritor português e declaradamente apaixonado pelo Brasil. O filho de mil homens é o quinto romance do escritor, e nele somos devorados pelo vazio e angústia de seus personagens que, cada um a seu modo, buscam uma forma de preencher o que lhes falta. 

Crisóstomo é um humilde pescador que, aos 40 anos, sentia-se pela metade – faltava-lhe um filho. E, reconhecendo-se infeliz, partiu em buscar de encontrar uma criança que pudesse adotar. Crisóstomo “acreditou que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família”. A sua busca chegou ao fim quando, em seu trabalho, apareceu Camilo, um jovem órfão de 14 anos, “um rapaz carregado de ausências e silêncios”. Imediatamente o pescador percebeu que era ele. Camilo é o filho que tanto esperou e não hesitou em pedir ao rapaz que o aceitasse como seu pai. Camilo, emocionado, logo correspondeu às expectativas do pescador e aceitou ser seu filho. Agora, Crisóstomo sentia-se inteiro. 

Isaura é filha única, que muito cedo foi arranjada para o filho dos vizinhos. O que seus pais não esperavam era que a moça fosse se entregar ao rapaz antes do casamento, ainda menor de idade. Desvirtuada, Isaura passou a ser enjeitada; “envergonhava-se de ter um dia oferecido tudo ao amor”. Com a decepção de ver-se abandonada, Isaura não comia e passou os anos a definhar. Ela “não queria ser ninguém. Queria diminuir até ser nada”.Chegou aos trinta anos muito magra e por dentro era  como estava por fora: a definhar.

Antonino é “um homem dos que não gostavam de raparigas e precisavam de fazer de conta”. Educado pela mãe, cresceu confuso com seus próprios sentimentos. E, entre seguir sua orientação sexual e corresponder às expectativas de sua mãe que não aceitava o filho como era, viu-se perdido.
O livro nos apresenta personagens que, inicialmente, nos parecem histórias avulsas, mas que ao longo do enredo vão se encontrando e se complementando. O homem pela metade, o órfão, a mulher enjeitada, o maricas, assim como os demais personagens que são demasiadamente humanos. O filho de mil homens é um verdadeiro mergulho em nós mesmos: é um livro que nos atravessa, não saímos ilesos dele, pois nos mostra que o acolhimento salva, estreita relações e, a partir delas, nos sentimos pertencentes no mundo.

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A cada dia

“Disseram que um dia
Você seria grande garota,
O mundo despertaria para você
Como o sol toda manhã.
Ao abrir os olhos,
Surgiria em sua face
O sorriso alegre
Como a brisa do mar sereno.
E assim, a cada dia,
Sem observar fielmente
A contagem dos ponteiros
Apenas seguindo-se
No espaço abstrato,
Observa a realidade
Enche o peito engrandecendo
O coração, que já é enorme,
Segue para mais um dia,
Para viver como se não houvesse
Amanhã..”

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Tiraram a fofoca de nós

Texto de Juliana Marinho Pires – jornalista e terapeuta holística.
Hoje eu queria falar sobre um assunto que a maioria de nós não percebe. Nascemos em uma Era em que não entendemos mais o mundo a partir da nossa perspectiva como mulheres, mas sob um olhar mastigado com dente podre, massacrado, hiperventilado de julgamentos, de andanças por caminhos tortos, de servilismo e ofuscamento. Estamos vendidas, ou melhor, compradas, por um patriarcado aliado ao capitalismo (os dois andam de mãos dadas desde sempre); dueto vil, hipócrita, mesquinho.
Era uma vez mulheres que se encontram em tabernas na antiga Bretanha, lá por volta de 1200. Falavam sobre diversos assuntos domésticos e públicos: umas davam conselhos as outras e emitiam opiniões sobre as diversas situações do cotidiano que suas amigas viviam.  Mais do que isso, elas se inteiravam do que as outras mulheres viviam, situações distintas das delas, e assim entendiam a diversidade do mundo, as nuances das relações, de cada família, dos povoados onde moravam, da essência humana.
Corta a cena: vamos para as escravizadas no Nordeste brasileiro nos idos do século XVII lavando roupa na beira do rio. Lá era, quiçá, o único lugar e momento em que elas estavam sem vigilância e sozinhas, uma certa pseudo liberdade controlada . À beira desse rio, surrando as mãos de tanto esfregar tecido, elas fofocavam, riam, conversavam, choravam; partilhavam o que viviam e contavam também o que acontecia a sua volta: uma conhecida do mercado, a sinhá que passou algum aperto, a vida dura da extração de cana-de-açúcar…enfim, mazelas e anedotas da vida daquela também pseudo sociedade que as cercava.
Vamos cortar para mais uma cena: senhoras da elite francesa moram no Vietnã, que, não tão antigamente assim, no séculos XIX e XX era Indochina, parte do império francês na Ásia. Elas se reuniam para tomar o chá da tarde em uma confeitaria francesa em Saigon. Nessa época, o patriarcado e o protagonismo masculino forjado pelos homens brancos de regiões ditas poderosas do mundo já vigorava com força – mal saberíamos naquela altura que a situação ia piorar, e muito -, mas ainda assim essas mulheres se encontravam, proseavam sobre seus casamentos, sobre o calor da região, sobre maternidade, sobre suas criadas malcriadas. Trocavam receitas, riam, choravam e desabafavam, ainda que frivolidades do próprio cotidiano.
Fofoca, até algum momento, era um ato libertador quando as mulheres se expressavam livremente sobre seus afetos e seus desafetos, sobre seus sentimentos, e também sobre a sociedade em que viviam; traçavam paralelos com a vida dos outros para entender a sua própria. Assim também, elas podiam se ajudar, se empoderar juntas, criar discursos de poder e expandir suas ideias. Uma dava segurança para outra e não se percebia mais só. Essa é a origem da fofoca.
Segundo a autora italiana Silvia Federici, em seu livro “A história oculta da fofoca”, o termo “gossip”, fofoca em inglês, originalmente significava “God parent”, uma espécie de madrinha ou padrinho, alguém com quem você poderia estar e contar. Quando olho agora no dicionário de português a palavra fofoca, lá diz: dito cheio de maldade, mexerico; aquilo que se comenta com o intuito de causar intrigas; conversa sem fundamento, e por aí vai.
Traduzido recentemente por fofoca, gossip é mais um dos conceitos distorcidos ao longo de séculos de patriarcado, que como a própria Silvia diz, narrar a história de palavras como essa que “são frequentemente usadas para definir e degradar as mulheres é um passo necessário para compreender como a opressão de gênero funciona e se reproduz”. Afinal, as mulheres são aquelas, nas piadinhas cínicas machistas, que fofocam, que tramam, que falam da vida dos outros, que se metem em tudo, que conspiram. Os homens, ó pobres seres, são objetivos, éticos, frios, concisos, sintéticos, desinteressados, eficientes. E de que esses rótulos  disfarçados de realidade nos serviu? Para criar separação e guerra entre nós, mulheres, e diminuir nossos grandes atributos.
Já ouvi de algumas pessoas que sou fofoqueira, já até vesti essa carapuça algumas vezes, de maneira inconsciente, entendendo que não fazia sentido, mas sem saber exatamente o porquê. Precisei desconstruir muita coisa dentro de mim para entender que adoro saber das histórias alheias e contar as minhas, bem diferente da fofoca aplicada para enfraquecer os encontros inspiradores e de ajuda mútua de mulheres e suas trocas profundas.
Não tenho nada a ver com a vida das pessoas, mas me interesso genuinamente por elas, até por quem eu não conheço. Perceber isso como uma virtude em mim foi libertador e me liberou de muitos julgamentos internos e autopunição. Isso a partir de muito autoconhecimento, do olhar para dentro, do me permitir ser quem eu sou de verdade e assumir minha identidade real. Quero resgatar o conceito primitivo de fofoca sem culpa. A época de ser reprimida e distorcida passou.
Um salve a todas as mulheres taberneiras, lavadeiras, madames e suas criadas! Vocês abriram os caminhos pra mim.
*Legenda da ilustração: *Ilustração publicada em 1894 em uma revista britânica da época. A arte retrata um tenebroso objeto de tortura colocado em mulheres consideradas “inoportunas”, “rebeldes”, suspeitas de bruxaria. O objeto de ferro travava a língua das mulheres e as impedia de falar. Muitas eram conduzidas em praça pública  para “servir de exemplo” à sociedade (arcaica e misógina).
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Ensaio Feminista

Se dizem que a vida acontece nos bastidores,  crio coragem de escrever na primeira edição da Matracas, mesmo não estando pronta para essa estreia. Me vejo  uma mulher de sonhos tão simples que assustam por não serem concretizados. Heranças de uma criação entre a cidade e o sítio,  rodeada de regras; a maioria delas indicando a necessidade de se completar com um companheiro para ser feliz.

É como se a política da incapacidade tivesse me “encruado” como uma menina incapaz, mesmo beirando os 39 anos.  Ainda assim, diante da autocrítica e nesse ritmo de estar “mesmo depois de estourar o tempo regulamentar”, eu permito que a minha menina dance.

A vida toca a música o tempo todo, e eu danço pra não dançar.

Vão ficando para trás os sonhos da bela, recatada e do lar, que dá ordens aos ajudantes (ou aos filhos). Vai perdendo a paciência a fadinha que fazia mágica mandando embora os medos dos seus protegidos. Vai caindo o véu da ignorância que achava bonito pertencer* a alguém,  porque esta lhe parecia ser a solução de todos os problemas.

Aí a vida acontece, os desafios chegam,  e mostram pra gente a urgência em conhecer a nossa própria força,  e resistir.

Ninguém está totalmente pronto.  Eu também não estou.  Permito-me vir aqui mesmo ainda ensaiando.

De tropeço em tropeço,  sinto-me grata pelos aprendizados que tive,  e pelas memórias de dor que trago costuradas em minha saia, porque sem elas eu não teria conseguido me conhecer.

Refazendo a mulher que sou, digo (agora como um ato revolucionário) que me permito voltar a sonhar com as coisas simples, tradições de cuidado e amor transmitidas pelas minhas avós. Mas pra que isso aconteça sem a sombra da Amélia, muita coisa ainda precisa ser transformada…

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Inteiramente minha… e sua

Mulher é só dela
E sendo dela
Ela é de quem
Ela quiser
E sendo sua
Sou muito mais
De mim mesma.
Sou todas, sou inteira
Sou inteiramente minha
E sua.