Foto: CNN Brasil

Ela não queria voltar para casa

Essa garota, facilmente, poderia ser confundida com outra garota, ou com a história de uma outra garota. Era meu último ano de Ensino Médio e eu tinha algumas amigas, umas mais próximas e outras mais distantes. Estudava em uma escola pública, administrada pelo Estado. Eu amava aquela escola, tinha tantas salas, uma área enorme e um palco onde realizávamos as apresentações. 

E a biblioteca, meu lugar favorito quando não havia aula. Quando tinha aula de ensino religioso me escondia em um bloco de onde era possível visualizar as pessoas passando, saindo e entrando da escola. Ficava por lá, horas e horas, observando as pessoas. Tinha a menina do espelho, era a famosinha da escola. Ela passava o dia contemplando o rosto naquele mini espelho.  Quase uma parente distante do Narciso. Eu amava ficar ali, vendo a vida passar. Nunca ousei perder uma aula de matemática, eu tinha paixão pelos números e pela história. 

Numa dessas aulas vagas, uma das minhas colegas quis permanecer na escola. Assim como eu, ela não queria voltar para casa. Eu muito provavelmente encontraria obrigações a minha espera, então, o quanto eu pudesse adiar a volta para casa e permanecer na escola, eu adiava. Mas, o que a minha amiga alegava para não voltar era muito mais grave que as minhas obrigações. Era algo muito cruel e vivenciado por muitas meninas. Nessa época eu já havia lido Cacau, uma das obras do Jorge Amado. Foi à primeira obra que li e entre tantos personagens, entre as múltiplas histórias que se entrelaçavam em Ilhéus, nas fazendas de Cacau, uma personagem que era prometida em casamento a um rapaz foi vítima de estupro. Quando os pais descobriram, e o então noivo, todos a culparam e ela foi viver em uma casa de prostituição. A nossa sociedade ainda não entender, mas a vida da mulher é mais cruel do que se pensa. Nesse dia, perguntei a minha colega o porquê d’ela não querer voltar para casa e ela respondeu:

– Aqui estou melhor, aqui não tem meu padrasto me espionando. 

Ela era a filha mais velha, de um grupo de três irmãs. E as outras, também, haviam sido vítimas de situação de abuso por parte da mesma pessoa.  

– Minha irmã acordou com ele passando a mão no corpo dela. 

Essa menina não era a minha melhor amiga de sala, quem exercia esse papel era outra. Mas naquela manhã ela confiou a mim relatar os horrores que passava em casa.

Naquele dia, mesmo muito cedo, comecei a entender a importância de falar e, principalmente, de ser escuta.  

Éramos colegas de sala e naquela manhã não queríamos voltar para casa. 

Crônicas para mulheres

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