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As noites azuis não duram para sempre

Ana Karla Farias – Jornalista e pesquisadora em cinema e literatura (Unicamp).

Os crepúsculos tornam-se mais longos e azuis em certas latitudes, na iminência do solstício de verão ou logo após. Nesses períodos eventuais, a noite se cobre de um manto azul luminoso, dando a impressão de que o dia não se findará. Porém, é um engano supor que aquela luminosidade durará para sempre. As noites azuis encontram sempre seu término, assim como os ciclos da vida que se encerram para possibilitar caminhos outros, recomeços. A luminosidade das noites azuis é o contrário da escuridão, mas ela também tem seu fim.

“O tempo passa. Seria possível que eu nunca tivesse acreditado nisso? Terei acreditado que as noites azuis pudessem durar para sempre?”, questiona a escritora, jornalista e ensaísta norte-americana Joan Didion em sua obra Blue Nigths (Noites Azuis). O processo de escrita e feitura de Blue Nights dá-se em 26 de julho de 2010, não aleatoriamente. A data remete a memória do casamento de sua filha, Quintana Roo. No mesmo dia, sete anos antes, Quintana se casara em Nova York. Por meio de lembranças fragmentadas, a autora vai tentando reconstruir esse episódio que lhe fora tão caro e marcante. “26 de julho de 2010. Hoje seria o aniversário de casamento dela. Há exatamente sete anos retiramos colares havaianos das caixas da florista e sacudimos água em que eles estavam conservados no gramado em frente à catedral St. John the Divine na Amsterdam Avenue. (…) A trança que pendia pelas costas dela estava entremeada de flores-de-noiva brancas”.

O livro é um esforço, por vezes, dolorido, de reativar a memória pessoal da autora sobre experiências de sua vida, sobre uma época, sobre pessoas importantes em sua trajetória e, principalmente, sobre a relação com sua única filha já falecida, Quintana Roo. Como uma forma de elaborar o luto, Didion experimenta em carne-viva a dor da perda e a saudade da filha, tal qual uma ferida que não sara nunca.

Em 2003, a escritora perdeu o marido, enquanto a filha estava em coma induzido. Com um quadro clínico cada vez mais grave, Quintana falece alguns meses após a morte do pai. A obra dialoga muito com a época de luto coletivo que vivenciamos em tempos de pandemia em que nos deparamos com o medo da morte ou com o sentimento de perda. Com as mortes por coronavírus, tem sido muito rotineiro enfrentar a difícil realidade de ver pessoas queridas partirem bruscamente. Didion nos lança a reflexão de onde podemos extrair forças para resistir a essa dor tão visceral que é a perda de um filho. “Que luto maior há para mortais do que ver seus filhos mortos. Eurípedes disse isto. Quando falamos sobre mortalidade, estamos falando sobre nossos filhos”.

Nesses tempos atípicos, reconhecemo-nos na voz e fragilidade da autora que desnuda suas dores e angústias. “Eu mesma guardei suas cinzas na parede. Eu mesma vi as portas da catedral se trancarem às seis. Sei o que estou vivenciando agora. Sei o que é a fragilidade, sei o que é o medo. O medo não é daquilo que se perdeu. O que se perdeu já está guardado na parede. O que se perdeu já está atrás das portas trancadas. O medo é daquilo que ainda resta a perder. Talvez você não veja nada que ainda reste a perder. Contudo, não há um único dia na vida dela em que eu não a veja”.

A obra reativa o lugar de memória da autora que em um movimento sinuoso como é o trabalho da memória, vai tecendo fragmentos de lembranças da filha Quintana. Enquanto leitores, nos deparamos com episódios que remontam a vida de Quintana, desde o momento em que ela fora adotada, perpassando pela infância na Califórnia, na casa onde morava, dos trabalhos da escola, o crescimento e casamento. Tudo isso sem seguir uma sequência linear dos acontecimentos, mas o fluxo de pensamento da autora.

A narrativa é escrita em primeira pessoa, apresentando relatos pessoais que se aproximam de uma vertente diarística e até autobiográfica, contudo, sem se reduzir a uma escrita de si, uma vez que Didion conta de si, de suas dores, angústias, medos através do outro. De uma maneira ensaística, ela se coloca em abertura com alteridades outras: a filha, o marido, amigos, lugares, permitindo-se reinventar-se junto com essas outrocidades, bem como experimentar a si e a obra no processo de escrita e criação. A obra também se coloca num entrelugar entre o privado e a experiência pública, no sentido de que Didion expressa sua vida íntima, mas também retrata uma época e questões coletivas.

No momento em que inscreve sua subjetividade na própria obra, construindo uma narrativa a partir de suas experiências pessoais e memórias particulares, refletindo sobre sua filha, sobre a maternidade, sobre a saudade que nutre de Quintana, sobre seus medos e dores latejantes; Didion vai tecendo uma subjetividade feminina nesse processo de colocar-se em obra. A autora é uma artista que expressa, a um modo ensaístico, sua subjetividade, apresentando também uma maior liberdade de experimentação formal.

Sobre a autora
Joan Didion nasceu em Nova York, em 1934, destacando-se por seus
trabalhos como romancista, jornalista e ensaísta. Dentre suas obras mais conhecidas estão O álbum branco (1979) e O ano do pensamento mágico (2005). Didion falecera há pouco tempo, em dezembro de 2021.

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Mad Men: uma obra-prima que mostra as revoluções individuais e coletivas nos anos 50/60

Texto de Nathalia Rebouças

Parece uma série sobre publicidade nos anos 50 e 60. Apesar do tema ocupar de forma primorosa o pano de fundo dessa série, não é esse o foco principal de Mad Men. É uma história sobre pessoas. E como cada uma delas reage às transformações políticas e sociais, dessas duas décadas tão significativas para a história mundial.

Mad Men utiliza a publicidade para falar da história de Don Draper. O diretor de criação de uma agência publicitária. Admirado, invejado, criativo, cheio de conflitos. É um personagem contraditório, forte, fraco, impetuoso, resiliente. Com defeitos e qualidades que o aproximam de perfis comuns, que fazem parte da nossa rotina.

Mas o protagonismo da série é dividido com outra personagem marcante. Peggy Olson é a típica menina tímida que chega na agência para ser secretária, única função ocupada por mulheres naquela época. Aos poucos ela vai sendo descoberta. Em uma sessão de prova para um cliente ela faz um comentário que chama a atenção. Don te dá a grande chance: se tornar redatora da agência.

Em uma frase marcante, um dos clientes diz:” – uma mulher redigindo?! É como ver um cachorro tocando piano”

Peggy cresce. Ocupa o seu espaço. E vivencia diversas transformações na agência.
Na verdade, há quem diga que ela é a grande protagonista da história. Feminista nata. Sem precisar se dizer feminista. Uma mulher altiva, autônoma, corajosa e cheia de si. “Eu não preciso que um homem diga o que é melhor pra mim.”

Peggy vive a ascensão da mulher, a conquista dos direitos civis, a discussão sobre liberdade sexual e política. Um furacão de mudanças naquele momento, todas retratados na série.

A publicidade aparece em peças famosas. Slogans que até hoje não saem da cabeça da população.

Nesse processo, briga com Don, vira chefe dele e se reconcilia, ao som de Frank Sinatra, com o clássico “My Way”, a cena mais linda que já pude presenciar em se tratando de produção para as telas.

Mad Men aborda o feminismo, o machismo, o American Way of Life, os conflitos humanos, o existencialismo, a homossexualidade. Tudo isso em uma perspectiva que parece que você está assistindo uma série sobre publicidade. Ou que está assistindo uma ode ao machismo. Retratar a opressão masculina é apenas óbvio diante daquele contexto social e histórico. É a melhor série sobre pessoas e transformações que existe. Ou sobre as nossas contradições. Uma verdadeira obra-prima. A melhor de todos os tempos.

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Indicação de leitura – Livro DORORIDADE

(PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017)

“Eu falo de um lugar marcado pela ausência. Pelo silêncio histórico. Pelo não lugar. Pela invisibilidade de Não Ser, sendo” (PIEDADE, 2017, p. 17).

É a partir de uma tomada de consciência histórica, assinalada por aspectos interseccionais que perpassam e transmutam os corpos e as vivências das mulheres negras, em um país estruturalmente racista e patriarcal como o Brasil, que a intelectual e ativista antirracista, Vilma Piedade, desenvolve um novo conceito-vocábulo: Dororidade. O termo, que intitula sua obra, nasce numa tarde de sábado em meio a discussões sobre o protagonismo das mulheres no campo da política, o que evidencia, desde o parto, seu caráter reivindicatório e de resistência.

Dororidade discorre sobre um movimento de empatia entre as mulheres, sobretudo, mulheres negras, as quais se unem através de suas dores em comum. Carrega em seu significado a dor que é provocada em todas as mulheres pelo machismo e, mais que isso, a dor causada pelo racismo, a dor que possui uma cor: preta.

Surge com a obra um novo conceito feminista, que já se fazia essencial desde antes de seu nascimento. Reside nisso, também, sua relevância, uma vez que poucos conceitos são criados por mulheres, quando se trata de mulheres negras o percentual é ainda menor. Somos assim, presenteados com um conceito (livro) cunhado por uma Mulher, Preta e Brasileira. Dororidade não se contrapõe a ideia de sororidade, pelo contrário, se propõe a avançar no sentido de englobar as questões relativas à pretitude, como bem expõe a autora.

Mais que um livro, um conceito e um vocábulo, Dororidade parece nos propor um novo caminho de união, reflexão, autoconhecimento, luta, e, especialmente, mudança nos debates feministas. Com uma escrita agradável e fluida, a obra que não é extensa pode ser lida em uma tarde, embora mereça ser revisitada e problematizada diversas vezes.