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Colunistas Destaque Pâmela Rochelle

“EU SINTO TANTA RAIVA…” – Moïse e a passividade brasileira diante da dor preta

“Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano” (IVANA LAY – mãe de Moïse, assassinado no RJ).

Parafraseando James Baldwin, pergunto: como ser negra, politicamente consciente, viver no Brasil, e não sentir raiva o tempo todo? O relato da mãe de Moïse Kabamgabe, 25, espancado até a morte em seu local de trabalho por cobrar o mínimo (seu salário atrasado), me toca em lugares perturbadores. Sou atravessada pela raiva em sua forma mais pura, mais brutal. Raiva fruto da revolta. Raiva que me faz por um segundo perder minha humanidade ao desejar que a mesma violência (ou pior) recaia sobre quem a praticou. Raiva que por fim, se torna força e combustível para a luta.

Para além da raiva, como seu alicerce, outro sentimento que me alcança é a dor. Me dói como se eu fosse a própria mãe de Moïse (falo isso sem nenhum exagero ou pretensão), embora nem tenha idade. No entanto, como mulher negra que vive nesse país e se depara com atrocidades como essa sendo expostas todos os dias nas redes sociais e nas esquinas, me ligo a sua dor como se fosse minha, porque pode ser minha, porque na verdade é nossa. É a dor preta. A dor de ser massacrada(o), torturada(o), perseguida(o), humilhada(o), espancada(o) e morta(o), de diferentes formas, todos os dias em praça pública, no meio da praia ou do shopping, na rua ou em casa, no bairro chique ou na periferia. É a dor que só o racismo pode causar. É a dor que só quem é negro em um país que odeia os negros pode sentir.

Em meio a dor, raiva e revolta, me choca a inércia de uma sociedade que assiste passivamente um jovem ser agredido e morto. Qual o valor da vida? Ou melhor, que vidas tem valor? Quais corpos são considerados dignos de choro e atenção?

No ensaio “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, Butler (2020) afirma que as intersecções de gênero, raça e classe incidem sobre nossos julgamentos acerca de quais vidas têm direito de serem vividas e, consequentemente, quais são passíveis de morte. Nos termos da autora, se uma vida é carente de valor, podendo ser facilmente destruída sem consequências ou revolta, significa que ela nunca foi plenamente considerada como vida, portanto, não se fez chorável. Em nosso país é possível afirmar que os corpos pretos, quanto mais pretos e pobres, sentem o peso de não serem choráveis aos olhos do outro, mais que isso, carregam em sua carne o selo de matáveis.

Moïse é só mais jovem preto, pobre e imigrante ASSASSINADO a troco de nada, ao tentar sobreviver nesse país que vende o mito da democracia racial e da cordialidade, mas na prática coloca um alvo constante em nosso peito. As estatísticas estão aí para provar: A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil (ONU BRASIL, 2017); Em 2018 os negros representavam 75,7% das vítimas de homicídio; A taxa de assassinatos de negros aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que a de não negros diminuiu 12,9% nesse mesmo período (IPEA, 2020).

 “ELES MATARAM MEU FILHO PORQUE ELE ERA NEGRO…”, essa fala ecoa alto em mim, me corta, mas deveria ecoar e cortar todos os brasileiros. Se uma sociedade consegue ver um homem ser torturado, espancado e morto sem fazer nada, ela não está fadada ao fracasso, ela já fracassou.  

Dessa vez foi Moïse, mas amanhã pode ser sua irmã, seu pai, seu/sua companheiro(a), você ou eu. Todos os dias o ódio mata (simbolicamente e fisicamente) negros, pessoas lgbtqia+, mulheres, crianças e estrangeiros. Ódio e raiva são diferentes. Se o ódio tenta nos eliminar, que a raiva (tida aqui enquanto revolta) nos aproxime e impulsione a lutar contra tais atrocidades, a enfrentar quem tenta nos aniquilar.

 

UBUNTU

 #justiçapormoise

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Aryanne Queiroz Colunistas Destaque

O DESEJO DE TORNAR-SE MULHER

“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” (Simone de Beauvoir)

 

Falar sobre o conceito de “ser mulher” parece algo simples, se for feita uma comparação, dentro do padrão binário, entre macho e fêmea. Mas não é. Vai muito mais além. O lugar de fala de uma pessoa que se autodenomina como “mulher” pode ser visto de vários ângulos, sob várias camadas, através de várias interfaces. Ao nascer, somos caracterizadas simplesmente por uma vulva, a qual, por sinal, é chamada de vagina, pois a maioria das pessoas não tiveram educação sexual o suficiente para saber que há diferença entre vagina e vulva (mas isso é assunto que irei explorar em outro momento). Olhar para um ser humano que nasce e dizer que o mesmo será condenado, por toda uma vida, a ser tratado como mulher por causa de um órgão genital ― sem perceber que o corpo é um sistema complexo, que se transforma através do tempo e que sofre modificações biosocioculturais ― é algo muito minimalista e, porque não dizer, cruel.

Diante da multiplicidade de identidades de gênero que existe, reduzir os sujeitos em apenas dois modelos de seres é querer o mesmo que um camelo entre por um buraco de uma agulha, como foi escrito na Bíblia e muita gente acreditou que Jesus disse isso. E sabiamente Simone de Beauvoir proferiu que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Essa frase é bastante conhecida no meio da diversidade de mulheres feministas, mas para quem está iniciando nesse “mundo do feminismo”, é bem impactante. Pelo menos foi para mim, quando a ouvi pela primeira vez. 

Me causou uma enorme repercussão, pois cresci com aquela ideia que mencionei inicialmente, de que nascemos e percorremos uma existência inteira, até a morte, como mulheres, em razão de um “buraco” que está entre nossas pernas; percorri a minha infância e adolescência achando que ser mulher era obra divina e que eu teria a obrigatoriedade de reproduzir outro ser, pois Deus me criou para fecundar a Terra; me foi incutida a ideia de que, nós, as mulheres, só poderíamos nos relacionar com uma pessoa do “sexo” masculino, porque Deus retirou uma costela de Adão para criar uma mulher e ser sua companheira e que toda a Humanidade deveria seguir o mesmo caminho; observava que nós, mulheres, deveríamos ser silenciosas, aceitar ordens de homens e deixar que eles sentassem à mesa e comessem primeiro. Não poderíamos discutir com eles; enquanto eles iam à rua, na hora que quisessem, para onde quisessem e com quem quisessem, deveríamos ficar em casa, aguardando-os docilmente e quando eles chegassem, era para tratar muito bem, sem nada questionar. Minha criação ― de mulher branca, hétero, cis, classe média ― foi assim e eu me debatia muito por dentro, sem entender o real motivo dessa diferenciação, dessa liberdade e poder que os homens ―brancos, hétero, cis, classe média ― tinham na sociedade e nós, mulheres (brancas, hétero, cis, classe média), não.

Percebi, portanto, que “tornar-se mulher” era ir de encontro com todos esses ensinamentos e romper com esse padrão simplista que separa os corpos em razão dos órgãos reprodutores “pênis” e “vagina”. “Tornar-se mulher” é assumir as próprias conquistas e não dar crédito aos homens por seus próprios feitos; é poder falar alto, debater, criar vínculos afetivos com quem bem entender; é ser muito mais do que um corpo reprodutor e submisso; é viver com autonomia e dignidade, mesmo que digam que não podemos. 

Dessa forma, “tornar-se mulher” tem sido um caminho, um processo, um porvir constante, uma construção e não uma sentença, uma condenação, um veredicto, uma decisão arbitrária advinda daqueles que se autodeclaram seres masculinos (hétero-cis-brancos-classe média/alta). Graças ao feminismo, tenho me tornado mulher, dia após dia, livrando-me, aos poucos, dos ditames do machismo, o qual prende e condena tantas mulheres, há tanto tempo. Não é um caminho fácil, mas se faz necessário. E esse trajeto se faz através da educação, da leitura, dos debates, das discussões em redes sociais e de revistas como a Matracas, que abre a oportunidade para que possamos expressar as nossas vivências e, quem sabe, inspirar outras a entrarem nessa jornada de “tornar-se mulher”. É o meu desejo, é o nosso desejo. E como bem diz o Provérbio Chinês: “os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhes cedemos, mais exigentes se tornam”. Sendo assim, que as meninas que habitam em nós cresçam como os nossos desejos e tornem-se exigentes também!

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Destaque Saúde e sexualidade Sem categoria

Sexualidade feminina: os tabus que atrapalham o prazer

A sexualidade feminina é baseada em preconceito, tabus, crenças e muita censura. Numa sociedade machista/patriarcal as mulheres aprendem desde cedo que sua função é proporcionar prazer, procriar, que precisam ser comportadas, não podem falar abertamente sobre sexo, sobre seu próprio prazer e seus desejos. Nesse sistema que ainda se sustenta, as mulheres foram e, apesar de alguns avanços que decorrem das lutas em busca da igualdade de gênero, continuam sendo educadas dentro de uma estrutura conservadora, numa sociedade que julga mulheres que falam abertamente sobre sexo.

O fato é que toda essa estrutura atinge diretamente a capacidade da mulher sentir e viver o prazer sexual, livre de culpas, medo, insegurança. Dessa forma, acarretando uma série de outros problemas que chegam a interferir na sua qualidade de vida. Algumas mulheres não tem receio de procurar ajuda de um profissional quando sentem que existe algo de errado com sua vida sexual. Porém, existem as que não conseguem e acabam convivendo com alguns transtornos, as vezes até sem ter consciência de que se trata de um problema de saúde.

Quando falamos dos problemas que afetam a vida sexual das mulheres, não há como não evidenciar a questão das disfunções sexuais que muitas vezes são frutos desse tipo de educação pela qual passam as mulheres. A dispareunia (dor durante o ato sexual), ausência de desejo, falta de lubrificação e anorgasmia (ausência do orgasmo) são algumas das reclamações que chegam ao consultório da fisioterapeuta pélvica, Dayse Bezerra.

“Podemos dizer que as disfunções sexuais femininas são condições que afetam a qualidade da vida sexual da mulher, ou seja, condições que afetam o ciclo da resposta sexual. A grande questão aqui é que a maioria das mulheres não compreende essas queixas como um problema de saúde e acredita ser normal conviver com elas. Isso, por sua vez, só agrava o problema, pois elas não procuram tratamento e passam grande parte da vida insatisfeitas sexualmente, podendo desencadear transtornos físicos e até psicológicos”, explica.

Para Dayse, a sexualidade feminina ainda é um tabu e parte das disfunções tem origem na falta de autoconhecimento. “A maioria das mulheres não conhece o assoalho pélvico, tão pouco sabem a sua função e importância e é impossível falar de disfunções sexuais sem falar desse grupo muscular e educação sexual repressora. Nós crescemos ouvindo: ‘tira a mão daí menina!’ ‘Isso é feio!’. Enquanto os meninos são estimulados a adorarem o pênis como um troféu”, diz.

Dayse ressalta que entre as possíveis causas que contribuem para as disfunções sexuais estão: a educação sexual religiosa quando é repressora. “Quem nunca ouviu que masturbação é pecado?”, questiona. A pressão sexual, ou seja, a mulher não sente vontade de transar, mas se vê obrigada a ter relação para agradar o companheiro; condições ginecológicas (quadros inflamatórios e infecciosos); abuso físico (abuso sexual, estupro, toque não consentido, por exemplo) e psicólogo. “Vale frisar aqui a importância de uma avaliação minuciosa do caso de cada paciente, pois não são apenas causas psicológicas que levam as mulheres a desenvolverem disfunções. Tanto existem casos que decorrem da parte psicológica quanto da parte biológica”, explica.

O ponto de partida para resolver o problema, segundo a fisioterapeuta, é a informação aberta e de qualidade. Quanto mais falarmos sobre o assunto, mais mulheres se sentirão acolhidas e buscarão por ajuda. Ela considera indispensável incentivar a mulher a conhecer o próprio corpo.

“Não podemos identificar uma anormalidade se não entendemos o que é normal. Na minha consulta, uma das primeiras perguntas que faço é se a mulher tem costume de olhar a sua vulva no espelho, e muitas relatam que não, e isso independe da idade. Então a minha primeira sessão é toda voltada para a educação em saúde, durante a qual apresento todos os músculos do assoalho pélvico, suas funções, importância sexual, de continência urinária e fecal, e do outro lado da mesa encontro rostinhos maravilhados entendendo o seu corpo muitas vezes pela primeira vez. É incrível vê-las despertando o amor próprio e acreditem, isso interfere e muito no sucesso do tratamento”, revela.

A necessidade das mulheres serem assistidas por profissionais qualificados é mais uma observação importante. De acordo com Dayse não é raro relatos de mulheres que procuraram ajuda e ouviram algo como “você precisa relaxar mais”.

“O tratamento das disfunções sexuais muitas vezes conta com uma equipe multiprofissional de fisioterapeuta pélvico, ginecologista, psicólogo… e cada um exerce um papel de extrema importância no diagnóstico e condução do tratamento. Então, mulher, leia, pesquise em fontes seguras, converse com outras mulheres e faça uma escolha segura quanto aos profissionais que irão te assistir”, orienta.

As disfunções sexuais apresentam sinais e um deles é a dor na relação, podendo ser relatada como uma dor mais superficial ou profunda, conforme explica. “Vou falar uma frase para vocês que deve se tornar um mantra: dor na relação nunca será normal, nunca! Não importa se a dor ‘é só no comecinho’ como eu costumo ouvir no consultório. Nós fazemos sexo para ter prazer, se ele te gera dor, ardência, desconforto, temos aí um sinal de alerta. Procure ajuda!”, explica.

São muitas as dúvidas que norteiam as mulheres sobre seus corpos e seu prazer. Em sua página @simplificando_a_pelve, espaço através do qual Dayse amplia as discussões para além do espaço físico da sua clínica, abordando vários temas relacionados à fisioterapia pélvica e obstétrica, assim como a saúde da mulher em vários aspectos, ela consegue chegar a muitos questionamentos sobre esse universo que é a sexualidade feminina.

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Colunistas Destaque Natalia Santos

A Filha Perdida: a história da culpa de uma mãe.

A Filha Perdida (The Lost Daughter) é o novo filme original da Netflix que esteve entre um dos títulos mais assistidos da plataforma desde o seu lançamento. O longa é uma adaptação cinematográfica do romance de mesmo nome escrito por Elena Ferrante, pseudônimo de uma romancista italiana cuja identidade não é conhecida pelo público, sendo esta autora de múltiplas obras e se destacando como uma mulher à frente de seu tempo.

O longa que hoje venho apresentar rendeu à cineasta e roteirista Maggie Gyllenhaal o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza em 2021 e conta com um elenco de peso, com nomes como Olivia Colman, Ed Harris e Dakota Johnson.

A história nos apresenta uma professora universitária chamada Lena, que, solteira e de férias, decide viajar para o litoral italiano. Lá, após conhecer uma jovem mãe e sua filha pequena, Lena viaja ao passado para uma série de lembranças dolorosas sobre a sua própria experiência com a maternidade.

O filme trata de temas delicados quando se fala sobre mulheres e a maternidade a elas imposta como sinal de realização e validação, trazendo também os reflexos disso na liberdade e na realização pessoal e individual de uma mãe. 

A protagonista, interpretada por Olivia Colman, sofre com a dualidade e as barreiras de ter uma responsabilidade tão grande como a de ser mãe, mostrando como, muitas vezes, torna-se impossível para a mulher continuar a desenvolver sua vida profissional e pessoal de maneira livre e o sentimento de culpa que a assombrará ao escolher a si própria.

Apesar de ter uma duração acima da média e ritmo mais lento que pode não agradar a todos, A Filha Perdida, principalmente no seu ato final, coloca ao expectador temas e acontecimentos importantíssimos e que geram pontos de reflexão não só para mulheres, mas para a sociedade como um todo. É gratificante ver mais uma história sobre problemáticas femininas ganhar as telas através do olhar e da direção de uma mulher tão talentosa como Maggie Gyllenhaal. 

 

Referências:

A Misteriosa Elena Ferrante: Escritora e Musa da Mamma. Mamma Jama, 2021. Disponível em: <https://mammajamma.com.br/musas-da-mamma/elena-ferrante/>. Acesso em 26 de jan. de 2022.

A Filha Perdida, adaptação do livro de Elena Ferrante, está entre mais assistidos da Netflix. Rascunho, 2021. Disponível em: <https://rascunho.com.br/noticias/a-filha-perdida-adaptacao-do-livro-de-elena-ferrante-esta-entre-mais-assistidos-da-netflix/>. Acesso em 27 de jan. de 2022.

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Ady Canário Colunistas Destaque

A lei 10639 na educação antirracista

No dia 09 de janeiro comemorou-se os dezenove anos da Lei n.º 10.639/2003 que foi sancionada em 2003. Uma medida de política afirmativa importante e que torna obrigatória a inclusão do ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos currículos dos sistemas de ensino públicos e particulares da educação básica (em todos os níveis). Estamos em 2022 e a luta histórica continua na construção de uma educação antirracista no cotidiano escolar. No entanto, ainda precisamos avançar na compreensão dessa Lei e de sua implementação na educação. 

A 10639 possui caráter de ação afirmativa, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tendo sido complementada pela Lei 11.645/2008, com a inclusão da temática indígena, sendo um avanço na promoção da igualdade étnico-racial, o que vai para além de conteúdos programáticos e datas comemorativas. 

Em 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana por meio da Resolução n.º 1, de 17 de março. Esse documento, portanto, aprofunda a lei e traz importantes fundamentos para a prática social e pedagógica. Também temos o Plano Nacional de Implementação e as Orientações e Ações para essa política.

Vale salientar que o processo da implantação e implementação da Lei n.º 10.639/2003 (em nível estadual e municipal), ao longo desses anos, tem produzido análises, intensos debates e pesquisas na consolidação de políticas educacionais, pois não basta a aprovação de uma Lei, é preciso tirá-la do papel. Sem deixar de ressaltar o papel do Movimento Negro, de Núcleos e Grupos que resistem nessa discussão e em desconstruir estereótipos negativos presentes no imaginário social, ainda calcado pelo mito da democracia racial, pós-período escravagista, que apregoa uma suposta harmonia racial.

Antes mesmo da Lei, pesquisadores, educadores, intelectuais e ativistas já vinham executando ações, além de participação em fóruns estaduais de educação e diversidade, bem como na produção de material, sobremaneira na organização de grupos de trabalhos e de cursos de formação de professores. 

No que diz respeito à educação das relações étnico-raciais e inclusão na escola, sem dúvida, há toda uma demanda da comunidade, especialmente da população negra no contexto das desigualdades e do racismo, por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, e a Lei n.º 10.639/2003 propicia às instâncias políticas e pedagógicas uma possibilidade de ampliar conhecimentos e reeducar para as relações entre os diversos grupos que constroem o Brasil. 

Por isso, é extremamente importante o papel das instituições, dos conselhos de educação, secretarias no sentido de implantar planos e orientações para o atendimento e realização do trabalho. É muito importante fazer valer e refletir sobre o que essa lei representa no contexto da educação para as relações étnico-raciais no Brasil e, sobretudo, em nossa localidade. Todavia é preciso o investimento em recursos técnicos, financeiros e didáticos.

Também é importante buscar conhecer o que já vem sendo realizado nos sistemas de ensino, dentro dos desafios, limites e possibilidades trazidas pela Lei, no que diz respeito às práticas pedagógicas nessa perspectiva antirracista. Atualmente, existe uma vasta produção de material sobre a temática racial, diversas entidades, coletivos do movimento social, dentre outros, aptos a dialogar. 

Temos conhecido algumas experiências exitosas em escolas, universidades por meio do trabalho de professores e profissionais empenhados com efetivação de políticas de promoção da igualdade racial, sob os preceitos de uma educação como direito à diversidade étnico-racial e combate ao racismo institucional.

Portanto, nós, educadores e toda sociedade, necessitamos trabalhar conjuntamente, independente do pertencimento étnico-racial. Inegavelmente, precisamos aprender e educar para desfazer discursos fundados em concepções estereotipadas e racistas sobre a história da África e Afro-Brasileira, especificamente, considerando as políticas afirmativas para a população negra. Viva a lei 10639 na educação antirracista! Muito a caminhar.

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Colunistas Destaque Luane Fernandes

Natália Deodato, BBB e o racismo estrutural: sobre o auto ódio da negritude e a falta de consciência racial

Texto de Luane Fernandes.

No Big Brother Brasil, um reality show de grande alcance nacional – e até internacional – uma das participantes, Natália Deodato, é uma mulher negra que já teve até vídeo íntimo exposto em menos de uma semana de programa. Talvez, mais um dos sintomas do que é ser uma mulher negra nesse país. Foram mais de 300 anos de escravidão que deixaram marcas incuráveis na negritude brasileira e são poucos os brasileiros racializados que foram educados para compreender essas questões.

Natália Deodato teve falas bastante equivocadas no programa, e, sem dúvidas, a sua falta de consciência racial foi um dos principais motivos que a levou a ser uma das escolhidas para ganhar o prêmio. A participante disse que não concorda com o dia da consciência negra e ainda buscou motivos para justificar a escravidão. Longe de mim defendê-la, mas não é o caminho certo apontarmos o dedo para a participante, se vivemos em um país estruturalmente racista, que jamais educou a sua população sobre racismo. Afinal, foi nessa mesma semana de equívocos de Deodato que a Folha publicou uma matéria afirmando a existência do racismo reverso.

Como falar de consciência racial em um país que só aborda esse assunto no dia 20 de novembro? Como cobrar de uma mulher negra de pele escura e cabelos crespos, que obviamente sofreu racismo durante a sua trajetória de vida, que ela adquira consciência racial e ame a sua negritude? Como cobrar isso, em um país que estuprou as suas mulheres negras, em busca de embranquecer a população e as ensinou o lugar de outra, de servidão e subalternização?

O lugar de doméstica, no Brasil, é ocupado majoritariamente por mulheres negras. Isso é uma herança escravocrata e colonial, pois eram as mulheres negras que cuidavam da casa, dos filhos da branquitude e ainda eram estupradas pelos senhores da casa branca. No ensino básico brasileiro, a colonização é legitimada, somos ensinados a partir do olhar do colonizador, que “descobriu” o nosso país. Na tv aberta brasileira, as mulheres negras são expostas seminuas no carnaval, como um produto de exportação.

Diante disso, sabemos que amar a negritude não é uma tarefa fácil, principalmente em um país que discute a existência do racismo reverso, e não sobre consciência racial. Segundo bell hooks: “Em um contexto supremacista branco, ‘amar a negritude’, raramente é uma postura política refletida no dia a dia. Quando é mencionada, é tratada como suspeita, perigosa e ameaçadora.”

Que passemos a nos olhar com mais amor, pois amar a negritude é um ato de revolução! E que possamos ter uma educação cada vez mais transgressora, pois é ela que irá nos ajudar a descolonizar nossas mentes, corpos e olhares.

“Amar a negritude” é esse ato de descolonizar e romper com o pensamento supremacista branco que insinua que somos inferiores, inadequados, marcados pela vitimização”. (HOOKS, 2019).

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Cultura Destaque

Symara Tâmara – Uma artista de corpo e alma

Escritora, poetisa, compositora, cantora, musicista, interprete e professora. Uma brasileira que carrega no sangue força, talento e a garra da mulher nordestina. Symara Tâmara, uma artista de voz marcante, forte, timbre único que vem construindo sua história no mundo da música com muita originalidade e criatividade. 

Vencedora de um dos mais tradicionais concursos de talentos musicais de Mossoró, o “Mais Bela Voz”, no ano de 2006, desde então Symara vem  se destacando no cenário musical do Rio Grande do Norte. O seu nome já faz parte da lista de artistas requisitados para apresentações em eventos culturais de Mossoró e recentemente a artista lançou o EP autoral “Tempo”, o qual reúne canções que falam de amor, questões sociais, reflexões sobre a relação do ser humano com o tempo e com suas memórias afetivas.

 O EP “Tempo”, primeiro da carreira da artista, marca os 20 anos de carreira da cantora Symara Tâmara. “Esse trabalho é o marco final das comemorações de vinte anos de minha trajetória musical”, destacou Symara. “Tempo” é o título de uma das faixas do EP. 

POEMA MUSICADO – A canção escolhida para intitular o trabalho vem originalmente do poema “Ribeira”, publicado no livro Peregrina, da poetisa potiguar Kalliane Amorim e musicado por Symara Tâmara, num envolvimento de muita sensibilidade e beleza. 

Para a cantora, a passagem de vinte anos de experiências artístico-musicais foi fundamental para seu amadurecimento, como artista e como ser humano, sendo essa uma razão para celebrar esse momento com uma homenagem ao tempo.

O EP “Tempo” conta com seis canções em seu set list, compostas por Symara em parceria com outros compositores, com os quais a cantora vem formando parceria ao longo de sua trajetória musical, entre eles, seu esposo e produtor César Guimarães.  

PREMIAÇÃO

As composições da artista falam de amor, questões sociais e têm rendido à cantora premiações em diversos festivais de música realizados no Brasil, como a canção “Florescer”, parceria de César Guimarães com a cearense Gabriela Mendes, com a qual Symara ficou entre as vinte melhores canções no I Festival Juazeiro do Norte de Música do Nordeste (CE) e no Prêmio Fomento à Cultura Potiguar (RN), em 2019, sendo o primeiro single lançado pela cantora nas plataformas digitais e seu primeiro videoclipe, que está em seu canal no YouTube.

Symara ficou entre os doze finalistas no I Festival da Música de Fortaleza (CE) em 2018, com a canção “Pixote”, do paraibano Ninor Freitas. Neste festival a cantora concorreu com mais de 300 canções de todo o Brasil. Em 2021, com a canção “Pescador de poesia”, do também paraibano Emiliano Pordeus, ficou em segundo lugar no 1º Festival de Música Sousense (I FESTMUS). 

O EP “Tempo” foi lançado em dezembro do ano passado nas plataformas digitais. O trabalho é um projeto realizado com recursos da lei Aldir Blanc, através da Prefeitura Municipal de Mossoró. O repertório apresenta variados gêneros, com canções que trazem do regional às raízes da música afro-brasileira. Symara explica que embora seu trabalho conte com todo aparato de elementos percussivos, de cordas e metais, porém na apresentação de lançamento do EP que aconteceu no Centro Cultural Banco do Nordeste de Souza-PB, a apresentação foi realizada em um formato mais intimista, onde a artista se apresentou acompanhada por seu produtor musical Jubileu Filho ao violão.

 A ARTISTA – Symara Tâmara, artista potiguar nascida em Natal e cidadã mossoroense, sempre conciliou música, literatura, educação e pesquisa. Tem formação acadêmica e mestrado em Letras pela UERN, membro da AFLAM e ALAMP. Na literatura, é autora do livro de poemas “O zênite da inspiração” (2000) e Antônio Francisco: tradição e modernidade – uma poética da memória (2015). Atualmente está preparando três publicações, uma de poesia (Infinita tarde finda), e duas de pesquisa na área de literatura: Antônio Francisco vai à escola – um relato de experiência com a obra antoniana em sala de aula e Reflexões e fluxos sobre literatura, através da lei Aldir Blanc do RN e do município de Mossoró. 

Na música, vem trabalhando desde 2001, cantando na noite e em bandas de rock e de baile de Mossoró, se destacando em projetos musicais dentro dos maiores eventos da cidade e do estado. Venceu o tradicional concurso A mais Bela Voz em 2006, concorrendo com mais de 800 candidatos de todo o RN. O seu nome figura na lista de artistas requisitados em projetos musicais temáticos como Mossoró Cidade Junina, Assembleia Cultural (Natal-RN) e Câmara Cultural. 

Também apresentou canções de seu projeto autoral em projetos como Canto Potiguar (2008), Projeto Seis & Meia (2010) e Abertura do Espetáculo Chuva de Balas (2011), e participou de projetos como Tributo a Clara Nunes, Elas cantam Brega, MPB Petrobrás, Sacolão Cultural e polos do Mossoró Cidade Junina. Representou o estado do RN em festivais nacionais (Festival da Música de Fortaleza e Festival Juazeiro do Norte de Música do Nordeste) e instituições culturais nacionais (CCBNB Sousa-PB). Abriu shows de artistas nacionais e internacionais, como Quarteto em CY, João Bosco, Nando Reis e Modulatus Project (Iury Matias – RN e Laura Rui – Portugal). 

É professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual de ensino do RN. Contatos e mais informações: Acunha Produções: (84) 99120-2706 (whats app) acunhaproducoes@gmail.com Symara Tâmara: (84)98843-3357 symaratamara@hotmail.com symaracontato @gmail.com Redes sociais: Instagram: @symaratamara @acunhaproducoes Facebook: Symara Tâmara Canal no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCp0DcB2s5_ZoMNg4hgA2LyQ

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Clarissa Paiva Colunistas Destaque

Catarse dos 40

Não sei você que me lê, mas para mim, a caminhada rumo aos 40 mais parece uma segunda adolescência. Me descubro todo dia, tenho ímpetos juvenis, preocupações desnecessárias e muitos novos sonhos. Estou empolgada com essa nova oportunidade, já que minha primeira adolescência foi um tanto quanto frustrada.

Pois bem: a descoberta da vez foi algo impensável: descobri que não nasci para ser a tradicional dona de casa (Pasmem! Essa era a meta desde sempre, e dita em alto e bom som há pelo menos oito anos). Vou contar como foi:

Em meio à nova onda de COVID-19 e Influenza, me vi entre os cuidados com uma amiga e a preocupação com outro amigo que se recuperava de uma gripe. Procurando ser útil e especial (sem que ninguém me pedisse isso), lá fui eu fazer algo que resolveria todos os sintomas em três dias: o “lambedor da vovó”. A minha avó fazia para minha mãe (que tomava igual sobremesa de tão gostoso que era), e a minha mãe fez inúmeras vezes para mim, sobretudo naquelas tosses persistentes pós-carnaval. De fato, tinha propriedades milagrosas! Mas… nem sou mãe, nem muito menos médica.

Lá vou eu no meu antigo alojamento para colher as folhas de uma plantinha muito semelhante em cheiro e textura à malva usada pela minha mãe e minha avó nos xaropes caseiros. O resultado, após uma hora de preparo com todo amor, carinho e entusiasmo foi o mais desastroso possível: eu havia usado uma planta venenosa. É grave, mas eu preciso admitir: VE-NE-NO-SA. Não sei se terei filhos e netos para rirem disso no futuro, mas de uma coisa eu sei: daquele dia em diante, resolvi reconhecer que talvez eu não tenha mesmo nascido para ‘recatada e do lar’. E agora, Meu Deus!?

Agora sei que serei qualquer coisa útil para a qual eu tenha mais habilidade e experiência. Deixa que os próximos dias me digam não ser tarde demais.

*Em tempo: ninguém morreu. Quando, orgulhosa do remédio, revelei a foto da planta para uma das ‘vítimas’, ele me apontou o terrível engano (pode rir também).

Ai ai… essa adolescência!

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Colunistas Daiany Dantas Destaque

A mulher de 40 no Tinder.

Bem-vindos à terra do nunca!

 

Se você é uma mulher hétero e tem mais de quarenta anos, recomendo algum pó de pirlimpimpim para aguentar esse passeio lisérgico pela terra dos garotos perdidos, o tinder pós-pandêmico

 

A história de Peter Pan é sobre a dolorosa transição entre infância e adolescência. Peter decidiu que não iria ultrapassar a idade de 13 anos. Para isso, confina-se numa ilha onde  o tempo congela. Lá, ele pode voar, combater piratas e cultivar estereótipos identitários e de gênero como se não houvesse amanhã, fora das tensões, demandas e dilemas da maturidade urbana.  

Nos anos 1980, um livro norte-americano intitulado Síndrome de Peter Pan ficou alguns anos na lista dos mais vendidos. Nele, o psicólogo Dan Kiley abordava um padrão comportamento masculino emergente: homens adultos que se negavam a envelhecer, rejeitando responsabilidades e comprometimentos. Não é meu interesse rebater ou afirmar as ideias do psicólogo, que também parecem nostálgicas em relação a uma heteronormatividade provedora e paternal dos homens. Apenas externar uma questão que me chamou a atenção ontem à noite, quando, depois de uma garrafa de vinho, eu estava suficientemente alegre e otimista para reativar o meu perfil no aplicativo tinder, que não utilizava desde meados de 2019, aquela encarnação pré-pandêmica que muitos e muitas de nós já não se recorda muito bem.

Pois bem, escolhi fotos recentes, tomei cuidado para não ocultar os quilos que ganhei nos últimos meses. Exibi orgulhosa meu cabelo muito grisalho, fruto da transição de dois anos sem tintura. Escolhi colocar meu signo, três hashtags de gosto: comida, filmes, caminhada. Escrevi na descrição que sou contra Bolsonaro – peneira básica e indispensável – e rodei a roleta. Ali estava “Dai”, 44 anos, libriana que tem gatos. E gosta das coisas comuns da vida. Coisas como comida, filmes, caminhada. Talvez procurando companhia específica para aqueles dias do mês em que os ovários explodem e nos deixam menos atentas. Talvez imaginando a possibilidade de ter alguma distração afetiva e um up na autoestima.

Voltar ao tinder aos 44, com todas as marcas que o luto de dois anos de pandemia me deixou não era sequer uma atitude corajosa. Apenas banal. E ainda um pouco mais segura do que sair à noite, já que aglomerações sem máscara ainda não são liberadas pela OMS, mesmo que isso pareça não ser objetivamente de conhecimento público. 

Eu já conheço o sistema. Já estive antes por ali, conheci pessoas até interessantes – embora a fauna de exemplos perturbadores não seja uma novidade. Tenho, claro, histórias animadoras a respeito do uso de aplicativos – aquela amiga próxima que casou com alguém que conheceu por essas vias e as que namoraram bastante tempo pessoas com quem tinham afinidade e que encontraram motivadas por esses estímulos. Embora comigo tenha sido sempre o ciclo básico de adquirir contatos efervescentes que não evoluíram para nada duradouro – há os que troquei mensagem de texto, os que mantive contato por uma semana no whatsapp e aquele com quem tive dois ou três encontros que pareciam promissores até ele “morrer” digitalmente. A nota aqui é que há todo o tipo de exemplo de usuário, mas a tendência é que as interações rumem para algo bastante casual. O que nem sempre é um problema.

O que me desestimulou, desta vez, após poucas horas de uso e nenhum (nenhumzinho mesmo) match é o fato de que meus pretendentes hipotéticos estão, seguramente, tendo muito mais problema para envelhecer do que eu. 

Comecei a notar isso ao achar que as pessoas da minha faixa etária aparentavam muito mais idade do que o admitido na cifra exposta no perfil. Como é próprio às mulheres, me questionei se o problema não seria comigo, se não teria uma autoimagem pouco realista, tanto tempo sem esse tipo de interação e etc. Mas, estranhamente, homens de 36 aparentavam 50 e os que declaravam ter 50, por sua vez, pareciam ter a idade do meu pai, 70 anos. Estranhamente, conhecidos de longa data, pessoas que eu sabia serem mais velhas que eu, tinham perfis em que indicavam terem nascido bem depois de mim. 

Resolvi abordar um amigo próximo que flagrei nessa situação, a esse respeito. Ambos temos 44 anos. Mas, ali, ele se colocava como alguém de 37. Perguntei, fora do app, claro, o porquê da negação, tentando demonstrar que não o estava julgando, só estranhava o que parecia ser um pacto coletivo, tal a recorrência de mentirem ou aparentarem mentir a idade, o que me fazia sentir tão alheia a tudo ali. 

Ele desconversou e tentou contra-atacar me mandando prints de mulheres que também considerava desestimulantes. Eram moças de 30 e poucos anos, algumas num ângulo ruim, outras um pouco (bem pouco mesmo, aliás, mais magras que eu) acima do peso. Pensei: “nossa, que apavorante, hein!”. 

O que me choca é a desonestidade (estou me atendo a isso, porque falar das fotos militaristas, armas na cintura e textos com nítida discriminação de gênero, raça, etária e gordofobia  já extrapolaria o número de caracteres recomendável para este texto). Já o meu amigo homem hétero, acha bem grotesco lidar com cinturas acima de 70cm. 

A Terra do Nunca parece ser um ambiente muito acolhedor a esse tipo de conduta. Além de alguns estudiosos já terem debatido o capital corporal como moeda de troca no uso desses aplicativos e os sintomas de desvinculação da realidade, dentre eles a disforia corporal, que é você não se sentir confortável em seu próprio corpo, é inevitável, sendo uma mulher da minha idade que não está disposta a disfarces e camuflagem, embora tenha disposição e se sinta suficientemente atraente para a paquera, me sentir expulsa desse pequeno paraíso. 

É inevitável não articular meus belíssimos neurônios  – que nem precisariam ser tão ativos assim, só existirem – para concluir que essa dinâmica beneficia masculinidades que se tornam ainda mais embrionárias (leia-se menos consistentes e desenvolvidas) face à política de rotatividade e descarte na qual esses apps se estruturam, depreciando as mulheres como um motivador da presença masculina.

Há um tempo atrás, lembro de uma ativista trans ter compartilhado comigo, numa conversa informal, que não saía de espaços como o tinder porque não iria aceitar ser invisibilizada, ser vista ali era uma forma de resistência. Eu não perduro muito tempo nesse exercício – sempre pouco produtivo para mim, zeradona de matches. Mas, desde essa conversa não excluo mais os meus perfis, mesmo quando desisto do aplicativo – se você faz isso, fica visível no tinder, mesmo se não o utiliza. Não se é uma pirraça, é o oposto do que eu gostaria, na verdade. Mas não consigo evitar. 

Em vez de pó de pirlimpimpim, aquela magia cintilante que a fada sininho usava para voar sobre a terra do nunca, eu tive a companhia de uma garrafa de vinho rosé italiano, de excelente qualidade. O suficiente para me fazer passar algumas horas sobrevoando o plantão de garotos perdidos em sua busca de eterno retorno à puberdade. Eu não. Eu só queria sair dali.

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As noites azuis não duram para sempre

Ana Karla Farias – Jornalista e pesquisadora em cinema e literatura (Unicamp).

Os crepúsculos tornam-se mais longos e azuis em certas latitudes, na iminência do solstício de verão ou logo após. Nesses períodos eventuais, a noite se cobre de um manto azul luminoso, dando a impressão de que o dia não se findará. Porém, é um engano supor que aquela luminosidade durará para sempre. As noites azuis encontram sempre seu término, assim como os ciclos da vida que se encerram para possibilitar caminhos outros, recomeços. A luminosidade das noites azuis é o contrário da escuridão, mas ela também tem seu fim.

“O tempo passa. Seria possível que eu nunca tivesse acreditado nisso? Terei acreditado que as noites azuis pudessem durar para sempre?”, questiona a escritora, jornalista e ensaísta norte-americana Joan Didion em sua obra Blue Nigths (Noites Azuis). O processo de escrita e feitura de Blue Nights dá-se em 26 de julho de 2010, não aleatoriamente. A data remete a memória do casamento de sua filha, Quintana Roo. No mesmo dia, sete anos antes, Quintana se casara em Nova York. Por meio de lembranças fragmentadas, a autora vai tentando reconstruir esse episódio que lhe fora tão caro e marcante. “26 de julho de 2010. Hoje seria o aniversário de casamento dela. Há exatamente sete anos retiramos colares havaianos das caixas da florista e sacudimos água em que eles estavam conservados no gramado em frente à catedral St. John the Divine na Amsterdam Avenue. (…) A trança que pendia pelas costas dela estava entremeada de flores-de-noiva brancas”.

O livro é um esforço, por vezes, dolorido, de reativar a memória pessoal da autora sobre experiências de sua vida, sobre uma época, sobre pessoas importantes em sua trajetória e, principalmente, sobre a relação com sua única filha já falecida, Quintana Roo. Como uma forma de elaborar o luto, Didion experimenta em carne-viva a dor da perda e a saudade da filha, tal qual uma ferida que não sara nunca.

Em 2003, a escritora perdeu o marido, enquanto a filha estava em coma induzido. Com um quadro clínico cada vez mais grave, Quintana falece alguns meses após a morte do pai. A obra dialoga muito com a época de luto coletivo que vivenciamos em tempos de pandemia em que nos deparamos com o medo da morte ou com o sentimento de perda. Com as mortes por coronavírus, tem sido muito rotineiro enfrentar a difícil realidade de ver pessoas queridas partirem bruscamente. Didion nos lança a reflexão de onde podemos extrair forças para resistir a essa dor tão visceral que é a perda de um filho. “Que luto maior há para mortais do que ver seus filhos mortos. Eurípedes disse isto. Quando falamos sobre mortalidade, estamos falando sobre nossos filhos”.

Nesses tempos atípicos, reconhecemo-nos na voz e fragilidade da autora que desnuda suas dores e angústias. “Eu mesma guardei suas cinzas na parede. Eu mesma vi as portas da catedral se trancarem às seis. Sei o que estou vivenciando agora. Sei o que é a fragilidade, sei o que é o medo. O medo não é daquilo que se perdeu. O que se perdeu já está guardado na parede. O que se perdeu já está atrás das portas trancadas. O medo é daquilo que ainda resta a perder. Talvez você não veja nada que ainda reste a perder. Contudo, não há um único dia na vida dela em que eu não a veja”.

A obra reativa o lugar de memória da autora que em um movimento sinuoso como é o trabalho da memória, vai tecendo fragmentos de lembranças da filha Quintana. Enquanto leitores, nos deparamos com episódios que remontam a vida de Quintana, desde o momento em que ela fora adotada, perpassando pela infância na Califórnia, na casa onde morava, dos trabalhos da escola, o crescimento e casamento. Tudo isso sem seguir uma sequência linear dos acontecimentos, mas o fluxo de pensamento da autora.

A narrativa é escrita em primeira pessoa, apresentando relatos pessoais que se aproximam de uma vertente diarística e até autobiográfica, contudo, sem se reduzir a uma escrita de si, uma vez que Didion conta de si, de suas dores, angústias, medos através do outro. De uma maneira ensaística, ela se coloca em abertura com alteridades outras: a filha, o marido, amigos, lugares, permitindo-se reinventar-se junto com essas outrocidades, bem como experimentar a si e a obra no processo de escrita e criação. A obra também se coloca num entrelugar entre o privado e a experiência pública, no sentido de que Didion expressa sua vida íntima, mas também retrata uma época e questões coletivas.

No momento em que inscreve sua subjetividade na própria obra, construindo uma narrativa a partir de suas experiências pessoais e memórias particulares, refletindo sobre sua filha, sobre a maternidade, sobre a saudade que nutre de Quintana, sobre seus medos e dores latejantes; Didion vai tecendo uma subjetividade feminina nesse processo de colocar-se em obra. A autora é uma artista que expressa, a um modo ensaístico, sua subjetividade, apresentando também uma maior liberdade de experimentação formal.

Sobre a autora
Joan Didion nasceu em Nova York, em 1934, destacando-se por seus
trabalhos como romancista, jornalista e ensaísta. Dentre suas obras mais conhecidas estão O álbum branco (1979) e O ano do pensamento mágico (2005). Didion falecera há pouco tempo, em dezembro de 2021.