A mulher de 40 no Tinder.

Bem-vindos à terra do nunca!

 

Se você é uma mulher hétero e tem mais de quarenta anos, recomendo algum pó de pirlimpimpim para aguentar esse passeio lisérgico pela terra dos garotos perdidos, o tinder pós-pandêmico

 

A história de Peter Pan é sobre a dolorosa transição entre infância e adolescência. Peter decidiu que não iria ultrapassar a idade de 13 anos. Para isso, confina-se numa ilha onde  o tempo congela. Lá, ele pode voar, combater piratas e cultivar estereótipos identitários e de gênero como se não houvesse amanhã, fora das tensões, demandas e dilemas da maturidade urbana.  

Nos anos 1980, um livro norte-americano intitulado Síndrome de Peter Pan ficou alguns anos na lista dos mais vendidos. Nele, o psicólogo Dan Kiley abordava um padrão comportamento masculino emergente: homens adultos que se negavam a envelhecer, rejeitando responsabilidades e comprometimentos. Não é meu interesse rebater ou afirmar as ideias do psicólogo, que também parecem nostálgicas em relação a uma heteronormatividade provedora e paternal dos homens. Apenas externar uma questão que me chamou a atenção ontem à noite, quando, depois de uma garrafa de vinho, eu estava suficientemente alegre e otimista para reativar o meu perfil no aplicativo tinder, que não utilizava desde meados de 2019, aquela encarnação pré-pandêmica que muitos e muitas de nós já não se recorda muito bem.

Pois bem, escolhi fotos recentes, tomei cuidado para não ocultar os quilos que ganhei nos últimos meses. Exibi orgulhosa meu cabelo muito grisalho, fruto da transição de dois anos sem tintura. Escolhi colocar meu signo, três hashtags de gosto: comida, filmes, caminhada. Escrevi na descrição que sou contra Bolsonaro – peneira básica e indispensável – e rodei a roleta. Ali estava “Dai”, 44 anos, libriana que tem gatos. E gosta das coisas comuns da vida. Coisas como comida, filmes, caminhada. Talvez procurando companhia específica para aqueles dias do mês em que os ovários explodem e nos deixam menos atentas. Talvez imaginando a possibilidade de ter alguma distração afetiva e um up na autoestima.

Voltar ao tinder aos 44, com todas as marcas que o luto de dois anos de pandemia me deixou não era sequer uma atitude corajosa. Apenas banal. E ainda um pouco mais segura do que sair à noite, já que aglomerações sem máscara ainda não são liberadas pela OMS, mesmo que isso pareça não ser objetivamente de conhecimento público. 

Eu já conheço o sistema. Já estive antes por ali, conheci pessoas até interessantes – embora a fauna de exemplos perturbadores não seja uma novidade. Tenho, claro, histórias animadoras a respeito do uso de aplicativos – aquela amiga próxima que casou com alguém que conheceu por essas vias e as que namoraram bastante tempo pessoas com quem tinham afinidade e que encontraram motivadas por esses estímulos. Embora comigo tenha sido sempre o ciclo básico de adquirir contatos efervescentes que não evoluíram para nada duradouro – há os que troquei mensagem de texto, os que mantive contato por uma semana no whatsapp e aquele com quem tive dois ou três encontros que pareciam promissores até ele “morrer” digitalmente. A nota aqui é que há todo o tipo de exemplo de usuário, mas a tendência é que as interações rumem para algo bastante casual. O que nem sempre é um problema.

O que me desestimulou, desta vez, após poucas horas de uso e nenhum (nenhumzinho mesmo) match é o fato de que meus pretendentes hipotéticos estão, seguramente, tendo muito mais problema para envelhecer do que eu. 

Comecei a notar isso ao achar que as pessoas da minha faixa etária aparentavam muito mais idade do que o admitido na cifra exposta no perfil. Como é próprio às mulheres, me questionei se o problema não seria comigo, se não teria uma autoimagem pouco realista, tanto tempo sem esse tipo de interação e etc. Mas, estranhamente, homens de 36 aparentavam 50 e os que declaravam ter 50, por sua vez, pareciam ter a idade do meu pai, 70 anos. Estranhamente, conhecidos de longa data, pessoas que eu sabia serem mais velhas que eu, tinham perfis em que indicavam terem nascido bem depois de mim. 

Resolvi abordar um amigo próximo que flagrei nessa situação, a esse respeito. Ambos temos 44 anos. Mas, ali, ele se colocava como alguém de 37. Perguntei, fora do app, claro, o porquê da negação, tentando demonstrar que não o estava julgando, só estranhava o que parecia ser um pacto coletivo, tal a recorrência de mentirem ou aparentarem mentir a idade, o que me fazia sentir tão alheia a tudo ali. 

Ele desconversou e tentou contra-atacar me mandando prints de mulheres que também considerava desestimulantes. Eram moças de 30 e poucos anos, algumas num ângulo ruim, outras um pouco (bem pouco mesmo, aliás, mais magras que eu) acima do peso. Pensei: “nossa, que apavorante, hein!”. 

O que me choca é a desonestidade (estou me atendo a isso, porque falar das fotos militaristas, armas na cintura e textos com nítida discriminação de gênero, raça, etária e gordofobia  já extrapolaria o número de caracteres recomendável para este texto). Já o meu amigo homem hétero, acha bem grotesco lidar com cinturas acima de 70cm. 

A Terra do Nunca parece ser um ambiente muito acolhedor a esse tipo de conduta. Além de alguns estudiosos já terem debatido o capital corporal como moeda de troca no uso desses aplicativos e os sintomas de desvinculação da realidade, dentre eles a disforia corporal, que é você não se sentir confortável em seu próprio corpo, é inevitável, sendo uma mulher da minha idade que não está disposta a disfarces e camuflagem, embora tenha disposição e se sinta suficientemente atraente para a paquera, me sentir expulsa desse pequeno paraíso. 

É inevitável não articular meus belíssimos neurônios  – que nem precisariam ser tão ativos assim, só existirem – para concluir que essa dinâmica beneficia masculinidades que se tornam ainda mais embrionárias (leia-se menos consistentes e desenvolvidas) face à política de rotatividade e descarte na qual esses apps se estruturam, depreciando as mulheres como um motivador da presença masculina.

Há um tempo atrás, lembro de uma ativista trans ter compartilhado comigo, numa conversa informal, que não saía de espaços como o tinder porque não iria aceitar ser invisibilizada, ser vista ali era uma forma de resistência. Eu não perduro muito tempo nesse exercício – sempre pouco produtivo para mim, zeradona de matches. Mas, desde essa conversa não excluo mais os meus perfis, mesmo quando desisto do aplicativo – se você faz isso, fica visível no tinder, mesmo se não o utiliza. Não se é uma pirraça, é o oposto do que eu gostaria, na verdade. Mas não consigo evitar. 

Em vez de pó de pirlimpimpim, aquela magia cintilante que a fada sininho usava para voar sobre a terra do nunca, eu tive a companhia de uma garrafa de vinho rosé italiano, de excelente qualidade. O suficiente para me fazer passar algumas horas sobrevoando o plantão de garotos perdidos em sua busca de eterno retorno à puberdade. Eu não. Eu só queria sair dali.

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