“EU SINTO TANTA RAIVA…” – Moïse e a passividade brasileira diante da dor preta

“Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano” (IVANA LAY – mãe de Moïse, assassinado no RJ).

Parafraseando James Baldwin, pergunto: como ser negra, politicamente consciente, viver no Brasil, e não sentir raiva o tempo todo? O relato da mãe de Moïse Kabamgabe, 25, espancado até a morte em seu local de trabalho por cobrar o mínimo (seu salário atrasado), me toca em lugares perturbadores. Sou atravessada pela raiva em sua forma mais pura, mais brutal. Raiva fruto da revolta. Raiva que me faz por um segundo perder minha humanidade ao desejar que a mesma violência (ou pior) recaia sobre quem a praticou. Raiva que por fim, se torna força e combustível para a luta.

Para além da raiva, como seu alicerce, outro sentimento que me alcança é a dor. Me dói como se eu fosse a própria mãe de Moïse (falo isso sem nenhum exagero ou pretensão), embora nem tenha idade. No entanto, como mulher negra que vive nesse país e se depara com atrocidades como essa sendo expostas todos os dias nas redes sociais e nas esquinas, me ligo a sua dor como se fosse minha, porque pode ser minha, porque na verdade é nossa. É a dor preta. A dor de ser massacrada(o), torturada(o), perseguida(o), humilhada(o), espancada(o) e morta(o), de diferentes formas, todos os dias em praça pública, no meio da praia ou do shopping, na rua ou em casa, no bairro chique ou na periferia. É a dor que só o racismo pode causar. É a dor que só quem é negro em um país que odeia os negros pode sentir.

Em meio a dor, raiva e revolta, me choca a inércia de uma sociedade que assiste passivamente um jovem ser agredido e morto. Qual o valor da vida? Ou melhor, que vidas tem valor? Quais corpos são considerados dignos de choro e atenção?

No ensaio “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, Butler (2020) afirma que as intersecções de gênero, raça e classe incidem sobre nossos julgamentos acerca de quais vidas têm direito de serem vividas e, consequentemente, quais são passíveis de morte. Nos termos da autora, se uma vida é carente de valor, podendo ser facilmente destruída sem consequências ou revolta, significa que ela nunca foi plenamente considerada como vida, portanto, não se fez chorável. Em nosso país é possível afirmar que os corpos pretos, quanto mais pretos e pobres, sentem o peso de não serem choráveis aos olhos do outro, mais que isso, carregam em sua carne o selo de matáveis.

Moïse é só mais jovem preto, pobre e imigrante ASSASSINADO a troco de nada, ao tentar sobreviver nesse país que vende o mito da democracia racial e da cordialidade, mas na prática coloca um alvo constante em nosso peito. As estatísticas estão aí para provar: A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil (ONU BRASIL, 2017); Em 2018 os negros representavam 75,7% das vítimas de homicídio; A taxa de assassinatos de negros aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que a de não negros diminuiu 12,9% nesse mesmo período (IPEA, 2020).

 “ELES MATARAM MEU FILHO PORQUE ELE ERA NEGRO…”, essa fala ecoa alto em mim, me corta, mas deveria ecoar e cortar todos os brasileiros. Se uma sociedade consegue ver um homem ser torturado, espancado e morto sem fazer nada, ela não está fadada ao fracasso, ela já fracassou.  

Dessa vez foi Moïse, mas amanhã pode ser sua irmã, seu pai, seu/sua companheiro(a), você ou eu. Todos os dias o ódio mata (simbolicamente e fisicamente) negros, pessoas lgbtqia+, mulheres, crianças e estrangeiros. Ódio e raiva são diferentes. Se o ódio tenta nos eliminar, que a raiva (tida aqui enquanto revolta) nos aproxime e impulsione a lutar contra tais atrocidades, a enfrentar quem tenta nos aniquilar.

 

UBUNTU

 #justiçapormoise

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