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Destaque Violência contra mulher

Justiça vai investigar se mulher resgatada também era escrava sexual de pastor

A investigação que apura o caso da empregada doméstica que foi resgatada por fiscais do trabalho em Mossoró por estar sendo submetida a trabalho escravo prossegue. Além do crime de trabalho semelhante ao regime de escravidão, o acusado, que é o pastor evangélico da Assembleia de Deus, Geraldo Braga da Cunha, também poderá responder por crimes sexuais cometidos contra a vítima.

A Procuradora da Justiça do Trabalho Cecília Santos, que está cuidando do caso, divulgou que durante aproximadamente 10 anos a vítima também pode ter sido vítima de violência sexual. O pastor e a família confirmaram que havia a relação sexual entre o patrão e a vítima, mas relataram que a relação era consensual. Porém durante a conversa que teve com a procuradora, a mulher negou o suposto consentimento, o que deve caracterizar crime sexual. Esse crime será conduzido pela justiça comum, através da Polícia Civil.

O caso da empregada doméstica veio à tona recentemente e foi notícia nos principais jornais do país e na mídia local. A descoberta aconteceu após a Justiça do Trabalho receber denúncias anônimas informando sobre um possível caso de trabalho escravo no município. De posse das informações, fiscais foram até o local indicado, no caso a residência do pastor Geraldo, e encontraram a vítima que confirmou as suspeitas. A mulher que terá a identidade preservada foi resgatada e se encontra em um abrigo por determinação judicial.

Durante a investigação, a Justiça do Trabalho constatou que a vítima foi levada para a casa do pastor ainda adolescente, com apenas 16 anos, hoje está com 42, e durante todo esse tempo prestou serviços domésticos para a família, sem acesso a descanso, remuneração ou qualquer direito trabalhista. 

TRABALHO ESCRAVO – A vítima contou às fiscais que realizava todo o serviço doméstico da residência servindo ao pastor, à esposa, aos filhos e atualmente também já cuidava dos netos do casal. Durante seu relato, a vítima contou que muitas vezes precisou acordar à noite para cuidar das crianças e realizar tarefas.  

Inicialmente a Justiça do Trabalho está movendo ações trabalhistas contra o pastor que deverá ser condenado a pagar todos os valores referentes ao trabalho doméstico prestado pela vítima. A direção-geral da Assembleia de Deus em Mossoró se manifestou através de nota, alegando que não tinha conhecimento do caso e que não compactua com tais ações. Segundo a nota, um processo administrativo está sendo movido e o pastor Geraldo Braga foi afastado de suas funções.

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Colunistas Destaque Pâmela Rochelle

“EU SINTO TANTA RAIVA…” – Moïse e a passividade brasileira diante da dor preta

“Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano” (IVANA LAY – mãe de Moïse, assassinado no RJ).

Parafraseando James Baldwin, pergunto: como ser negra, politicamente consciente, viver no Brasil, e não sentir raiva o tempo todo? O relato da mãe de Moïse Kabamgabe, 25, espancado até a morte em seu local de trabalho por cobrar o mínimo (seu salário atrasado), me toca em lugares perturbadores. Sou atravessada pela raiva em sua forma mais pura, mais brutal. Raiva fruto da revolta. Raiva que me faz por um segundo perder minha humanidade ao desejar que a mesma violência (ou pior) recaia sobre quem a praticou. Raiva que por fim, se torna força e combustível para a luta.

Para além da raiva, como seu alicerce, outro sentimento que me alcança é a dor. Me dói como se eu fosse a própria mãe de Moïse (falo isso sem nenhum exagero ou pretensão), embora nem tenha idade. No entanto, como mulher negra que vive nesse país e se depara com atrocidades como essa sendo expostas todos os dias nas redes sociais e nas esquinas, me ligo a sua dor como se fosse minha, porque pode ser minha, porque na verdade é nossa. É a dor preta. A dor de ser massacrada(o), torturada(o), perseguida(o), humilhada(o), espancada(o) e morta(o), de diferentes formas, todos os dias em praça pública, no meio da praia ou do shopping, na rua ou em casa, no bairro chique ou na periferia. É a dor que só o racismo pode causar. É a dor que só quem é negro em um país que odeia os negros pode sentir.

Em meio a dor, raiva e revolta, me choca a inércia de uma sociedade que assiste passivamente um jovem ser agredido e morto. Qual o valor da vida? Ou melhor, que vidas tem valor? Quais corpos são considerados dignos de choro e atenção?

No ensaio “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, Butler (2020) afirma que as intersecções de gênero, raça e classe incidem sobre nossos julgamentos acerca de quais vidas têm direito de serem vividas e, consequentemente, quais são passíveis de morte. Nos termos da autora, se uma vida é carente de valor, podendo ser facilmente destruída sem consequências ou revolta, significa que ela nunca foi plenamente considerada como vida, portanto, não se fez chorável. Em nosso país é possível afirmar que os corpos pretos, quanto mais pretos e pobres, sentem o peso de não serem choráveis aos olhos do outro, mais que isso, carregam em sua carne o selo de matáveis.

Moïse é só mais jovem preto, pobre e imigrante ASSASSINADO a troco de nada, ao tentar sobreviver nesse país que vende o mito da democracia racial e da cordialidade, mas na prática coloca um alvo constante em nosso peito. As estatísticas estão aí para provar: A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil (ONU BRASIL, 2017); Em 2018 os negros representavam 75,7% das vítimas de homicídio; A taxa de assassinatos de negros aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que a de não negros diminuiu 12,9% nesse mesmo período (IPEA, 2020).

 “ELES MATARAM MEU FILHO PORQUE ELE ERA NEGRO…”, essa fala ecoa alto em mim, me corta, mas deveria ecoar e cortar todos os brasileiros. Se uma sociedade consegue ver um homem ser torturado, espancado e morto sem fazer nada, ela não está fadada ao fracasso, ela já fracassou.  

Dessa vez foi Moïse, mas amanhã pode ser sua irmã, seu pai, seu/sua companheiro(a), você ou eu. Todos os dias o ódio mata (simbolicamente e fisicamente) negros, pessoas lgbtqia+, mulheres, crianças e estrangeiros. Ódio e raiva são diferentes. Se o ódio tenta nos eliminar, que a raiva (tida aqui enquanto revolta) nos aproxime e impulsione a lutar contra tais atrocidades, a enfrentar quem tenta nos aniquilar.

 

UBUNTU

 #justiçapormoise