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Ady Canário Colunistas Destaque

Sementes da memória e linguagem social inclusiva: “Glossário Antirracista”

 “[…] no varal de um novo tempo/escorrem as nossas lágrimas/fertilizando toda a terra/onde negras sementes resistem/reamanhecendo esperanças em nós” (Conceição Evaristo). 

 

O verso acima sintetiza parte do nosso sentimento e nos inspira, pois dessa forma nos sentimos ao ler o “Glossário Antirracista” (SESC/SP). Ficamos na esperança, sonhos e conquistas das ondas negras de resistência, em cada palavra no caminhar da geração negra. Uma obra importante para a construção da linguagem antirracista e o enfrentamento à discriminação linguística. O glossário nasce a partir do Projeto Do 13 ao 20 (Re)Existência do Povo Negro”, do Sesc São Paulo, cuja ação visa ao fortalecimento da identidade cultural e diversidade das pessoas negras, além do enfrentamento ao racismo e todas as formas de dominação.   

No contexto da discussão sobre racismo, discriminação, preconceito e desigualdades raciais em nosso país, o “Glossário Antirracista” é um marco histórico e colabora para a ampliação da linguagem social, inclusiva e antirracista que enaltece o povo negro, seu legado extremamente importante na sociedade brasileira, incluindo todos os grupos. Sabemos que, um dos modos de produção de racismo no Brasil se dá por meio do vocabulário, uso de expressões e discurso odiosos racistas, termos usados no cotidiano, sobretudo contra mulheres negras e a juventude negra, principais alvos de opressões combinadas. Ademais, são esses grupos que estão no alto do número da violência racista em suas dimensões de classe, raça e gênero.

O “Glossário Antirracista”, em síntese, analisa a linguagem e verbetes com um rico referencial bibliográfico, conceitual e histórico, tais como: “antirracismo”, “branquitude”, “consciência negra”, “diáspora africana”, “estética negra”, “genocídio”, “movimento negro”, entre outros termos de forma objetiva e didática. Entendendo, então, que essa produção antirracista reconhece as pessoas negras no campo da linguagem e no viés inclusivo, sendo um gênero relevante para a arena discursiva, pois em cada enunciado pronunciado vemos um espaço singular para a existência negra e resistência ao longo da história na cultura brasileira. Isso representa a valorização humana e cidadã.

Assim, compreendemos que a linguagem antirracista também é inclusão. Esta acontece associada a diversas formas de relações de poder e de ações humanas, de modo subjetivo, objetivo e dinâmico nas interações verbais. Consideramos o “Glossário Antirracista” a grande possibilidade de empoderar, diariamente, as pessoas que desejam contribuir com o enriquecimento de práticas antirracistas, na esperança de ampliar as formas de superação ao racismo. É importante destacarmos que outras pesquisas existem sobre o tema na perspectiva de práticas antirracistas e antipatriarcais e igualmente importantes, além da afirmação positiva das identidades negras. 

Nesse sentido, compartilhamos o link, a quem interessar ler a obra, nos desafios de estimular a leitura reafirmando o antirracismo na memória do passado, presente e futuro. Parabéns aos que fazem o “Glossário Antirracista” e pela disponibilização em ambiente digital a fim do alcance público, bem como a ampliação da linguagem antirracista e inclusiva no que diz respeito ao protagonismo negro.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/15462_GLOSSARIO+ANTIRRACISTA

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Destaque Política

Coletivos feministas de Mossoró se organizam para a manifestação nacional “Bolsonaro Nunca Mais”

Neste sábado (04/12) mulheres em todo o Brasil vão ocupar as ruas em protesto contra o governo Bolsonaro. A manifestação “Bolsonaro nunca mais” é motivada por todo o retrocesso que o governo Bolsonaro representa e que atinge, principalmente, as mulheres. 

De acordo com Telma Gurgel, da Coletiva Motim Feminista, em Mossoró a concentração começa às 8h na Praça do Pax. Em seguida, sairão pelas principais ruas do Centro da Cidade e encerram a mobilização nas proximidades da faculdade de enfermagem. Durante o protesto terão falas e atividades artísticas. No evento, vão estar presentes mulheres das comunidades rurais, de vários assentamentos e municípios vizinhos como Governador, Assu, Apodi e outros. 

“Amanhã é um grande dia de mobilização das mulheres em todo o Brasil em protesto e denúncia sobre o governo Bolsonaro. Nós sabemos que essa crise econômica, social, sanitária, com o crescimento do desemprego, o aumento da fome, do esfacelamento das políticas públicas, tudo isso, atinge diretamente as mulheres. Principalmente, as mulheres mais pobres, da periferia das grandes cidades, cidades de médio porte, no geral as mulheres são as mais atingidas. E é por isso que vamos às ruas, para dar um basta em Bolsonaro”, disse.  

Telma acrescenta que a saída para o povo brasileiro é ir às ruas, já que, em se tratando do Congresso Nacional, não vem sendo possível a correlação de forças. 

“O orçamento secreto está aí garantindo a blindagem de Bolsonaro, com relação ao impeachment de Bolsonaro, então, infelizmente, o Congresso não é nosso aliado nessa luta, e a única saída é ocupar as ruas para aumentar a pressão sobre as instituições. E é isso que as mulheres vão fazer amanhã em Mossoró juntamente com todas as mulheres no Brasil inteiro”, destaca. 

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Destaque Gerais

Mulheres com deficiência relatam dificuldades na acessibilidade quando precisam dos serviços básicos de saúde

Os serviços de atenção básica a saúde, a maioria, são utilizados pelas mulheres. Nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), por exemplo, o público feminino prevalece entre os usuários desses equipamentos. No entanto, muitos desses serviços oferecidos não foram pensados para todas as mulheres. Uma realidade que, infelizmente, existe em todo o país e afeta, também, quando estamos falando de saúde privada e não somente do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A revista Matracas conversou com três mulheres com deficiência, cada uma com necessidades específicas. São vários os dramas enfrentados por elas para realizar um simples exame de prevenção. Situações de constrangimento, dificuldades de acesso a determinados aparelhos, acesso a portas de entradas são problemas comuns na vida das mulheres com deficiência quando estas precisam dos serviços básicos de saúde. Situação que, para essas mulheres, significa enfrentar uma dupla vulnerabilidade.

Yascara Samara, filósofa, tem mobilidade reduzida. Ela disse que o problema começa pelo despreparo dos profissionais de saúde que não sabem lidar com as diferenças. Em seguida vem a decadência da estrutura. “Se um deficiente auditivo precisar se dirigir a uma UBS, vai ter que ir acompanhado, pois ninguém sabe a linguagem de sinais (libras). Além disso, a sinalização é falha. Para as pessoas com deficiência visual não é diferente, não existe acesso por meio de pisos táteis, sinalização em relevo nas portas. Eles acabam necessitando de um acompanhante”, disse. 

Com base nos relatos dessas mulheres, as pessoas com deficiência são as que têm que se adaptar às estruturas que são oferecidas nos equipamentos de saúde, ainda que estejamos falando de serviços de atenção básica. “A acessibilidade é o problema mais crítico, pois os cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida como eu, e idosos se aventuram ao tentar subir numa maca. Se levarmos acompanhantes, eles nos ajudam a subir, nos colocam nos braços como criança.  Os equipamentos são velhos, não regulam a altura e o problema existe nas cadeiras de dentista e na maca ginecológica. Eu ainda consigo subir um pequeno degrau, para ter acesso à maca, mas muitas vezes tive que chamar uma pessoa para ajudar a subir”, conta. 

A realidade não é única das UBSs, mas em clínicas e hospitais, sejam públicos ou privados. “Na sala de raios-x, por exemplo, os mamógrafos não se ajustam ao tamanho da cadeira. É uma situação de total falta de empatia e invisibilidade de nós pessoas com deficiências. Apesar de existirem muitos profissionais com deficiência ainda não somos consultados para uma melhoria nos serviços de atenção básica e saúde”, desabafa. 

Situações constrangedoras são comuns. “Outro dia fui fazer um exame ginecológico e a cama era muito alta, o aparelho da médica não conseguia me alcançar. Foi muito constrangedor, tiveram que chamar a atendente para ajudar a me colocar numa posição que desse certo acontecer o exame”, conta.  

Como se não bastasse uma realidade que já é difícil de encarar, Yascara fala dos retrocesso em lei da acessibilidade, referindo-se ao projeto de lei 2505\2021, que revoga um artigo da lei brasileira de inclusão que obrigava os gestores públicos a cumprirem a exigência de requisitos de acessibilidade. 

Sobre mudanças necessárias, Yascara elenca que “falta informação em suas formações, fazer pesquisas de campo, entrevistas, conhecer nossa realidade e trazer melhorias no atendimento, não só para nós mulheres com deficiência, mas também fazer os alunos que vão trabalhar na área aprenderem mais sobre a vivência das pessoas com deficiência. Colocá-los em uma cadeira de rodas, tapar seus ouvidos, vedar seus olhos e fazer de conta que são deficientes para que se tenha mais respeito, sensibilidade e um atendimento mais humanizado. A maioria considera a deficiência como algo distante, mas todos são suscetíveis a se tornar uma pessoa com deficiência, devido a acidentes ou doenças”, diz. 

Yascara acrescenta que em quase todos os espaços em que precisou passar foi necessário essa adaptação e mesmo que possam contar com algumas mudanças, existe omissão por parte dos poderes públicos de todas as esferas, e concorda que muitas coisas ainda precisam ser modificadas. 

“Aos poucos algumas mudanças foram sendo construídas. Na faculdade por exemplo, as rampas de acesso só foram colocadas depois que cadeirantes conseguiram entrar na faculdade, cotas de acesso para entrada, cotas no mercado de trabalho, lei de inclusão nas escolas, mas tudo muito deficitário e suado para conseguir. Por esses motivos, considero sim, muita omissão por parte dos representantes. Ninguém facilita não. Até para carteirinha de transporte público, estacionamentos, provas de concurso a gente precisa provar que tem sua deficiência. A cada seis meses tem que renovar, como se um dia você fosse amanhecer sem ela. É desumano você ficar correndo em busca de um laudo para provar o que não precisa ser provado. Os médicos chegam a se irritar com as idas e vindas aos consultórios para pedir estes atestados e laudos, e muitos nem dão, quando são dá área pública. Penso que seria muito importante um cadastro único para quem tem deficiências permanentes para que não necessite esse sofrimento de provar todas as vezes que tem uma deficiência. Ninguém nos ouve”, explica. 

Lília Campêlo tem sequelas de paralisia cerebral. Ela reconhece que não sofre dos mesmos problemas de um cadeirante, por exemplo. Mas como alguém que é integrada às discussões relacionadas à acessibilidade, ela também se indigna com a forma como as necessidades das pessoas com deficiências são enxergadas. “Nada é pensado em relação a nos atender de maneira adequada, fazendo com que a minha condição enquanto mulher com deficiência seja vista como alguém que esteja sempre precisando da ajuda do outro”, relata. 

Uma mulher com deficiência precisar de um serviço de atenção básica nas Unidades de Mossoró é enfrentar desafios e constrangimentos. “Deitar em uma maca para exames de qualquer espécie é algo simples para quem não tem deficiência. No entanto para mim é algo que necessito sempre de ajuda, em razão da altura da maca ser de um tamanho padrão de forma que não me dá autonomia de subir e descer por conta própria, por ser uma mulher com deficiência nos membros inferiores”, destaca. 

 Ela reforça que tanto o sistema público quanto o privado não dispõe dos serviços adequados para elas. “Os dois sistemas não distinguem o atendimento de uma pessoa com deficiência de outra que não a tenha. Nesse sentido, somos nós, pessoas com deficiência, que temos que nos adequar ao que nos é oferecido”, frisa. 

Lília também reconhece a omissão dos gestores.  “Certamente, de modo até generalista, digo que nunca conseguimos ocupar nossos lugares de maneira natural, sempre nos fizeram acreditar que, por sermos “minorias”, não há a necessidade de adequação dos espaços comum a todos enquanto indivíduo social’, relata.

As situações expostas por essas mulheres apontam para uma necessidade urgente de transformação, tanto nas práticas profissionais quanto na estrutura física dos equipamentos. “Acredito que, em primeiro lugar, precisamos ser vistas como mulheres que estão dentro da mesma sociedade, assim como as demais, que usufruem dos mesmos direitos de atendimento médico que têm as outras pessoa. Inclusive, esse é um dos princípios da dignidade da pessoa humana, que não é levada em conta se essa é ou não uma pessoa com deficiência”. 

Ela acrescenta que a omissão dos gestores é uma revolta que carrega todos que precisam de um serviço de saúde diferenciado. “A gestão pública tem a sua parcela de culpa, principalmente no que diz respeito à acessibilidade da mulher com deficiência aos serviços básicos de atendimento médico. Embora seja usado pela maioria da população, não vejo qualquer projeto que nos acolha de modo especial, dando a devida importância às nossas diferentes necessidades, muitas vezes nos tornando incapacitadas de receber um atendimento de qualidade.  Não visualizo avanço que nos faça acreditar que existe igualdade no atendimento a saúde da mulher com deficiência”, expressa.

Camila Morais, assistente social e palestrante educacional, também tem mobilidade reduzida. Para ela a ausência da visita do agente comunitário de saúde é um problema. Sempre que busca por um agente, recebe a orientação para ir até a UBS. Apesar dos diferentes tipos de deficiência, alguns problemas elas sofrem em comum: a questão da maca para exame ginecológico e quando precisam fazer serviços odontológicos.  

“O meu primeiro exame ginecológico não teve como ser feito na UBS, foi feito na minha casa. Outra vez, precisei ir ao dentista, o profissional fez o atendimento no meu próprio equipamento de locomoção, precisando ficar em uma posição desconfortável, mas efetuou o serviço pois viu que eu não poderia acessar a cadeira convencional que a UBS tem”, afirma. 

Sobre a sexualidade das mulheres com deficiência, a saúde sexual e reprodutiva, ela afirma que é preciso lidar com o despreparo dos profissionais, começa pela forma de abordagem. “Alguns profissionais, durante a consulta, não fazem referência ao atendimento a mim e sim ao meu/minha acompanhante, isso já mostrando uma percepção diante deles que não posso responder aqueles questionamentos e noto receio quando vão fazer perguntas em relação à atividade sexual, traduzindo uma ideia, ainda bem compartilhada, que nós, pessoas com deficiência, não podemos ter relações sexuais”, aborda. 

Lília, Yáscara e Camila concordam que existe um desinteresse em demandas consideradas específicas das pessoas com deficiência. Camila diz que já deixou de realizar exames por dificuldade no acesso aos equipamentos, isso tanto no SUS quanto na rede privada. “Quando vou fazer exames oftalmológicos, preciso de adequações durante todo o exame. Sempre preciso sentar no colo de alguém ou levar de casa algo que possa me deixar em uma altura maior para a realização desse exame”, explica. 

A visão correta de quem elas são seria um passo de mudança social, considera Camila.  Elas lutam para que sejam vista antes de pessoas com deficiência, como pessoas, principalmente, como mulheres. “Como qualquer outra cidadã, temos direitos e deveres. Devemos fazer esse trabalho de conscientização, ou seja, de que nossas deficiências são uma condição e não devem nos resumir somente a elas”, frisa.

Todas discutem e se indignam por serem invisibilizadas. “Há avanços, mas precisamos sempre estar reivindicando, alertando e mostrando que estamos aqui e somos usuárias de todos os espaços. Não é um favor e sim, um direito. Precisamos nos conscientizar e conscientizar as demais pessoas que somos cidadãs legítimas de direitos, como todas as outras”, finaliza Camila. 

 

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Colunistas Destaque Natalia Santos

Bela Vingança: o desconforto da verdade inevitável.

Dramas do cotidiano feminino dificilmente são roteirizados e dirigidos por mulheres e chegam a ter o devido reconhecimento tanto da crítica quanto do público. Por isso, é gratificante ver que obras como Bela Vingança (Promising Young Woman) conquistaram certo prestígio. 

O longa de Emerald Fennell, lançado em 2020, chegou um pouco mais tarde no Brasil, e, em uma exibição única feita durante o Festival do Rio no serviço de streaming Telecine, tive a oportunidade de mergulhar nessa história ácida, atual e implacável.

Em seus primeiros momentos, o filme passeia pelo suspense com pitadas humor sarcástico, apresentando a protagonista em situações corriqueiramente vivenciadas pelas mulheres. Cassandra, interpretada brilhantemente por Carey Mulligan, passa suas noites fingindo estar bêbada em bares e boates, com o intuito de atrair “caras legais” para uma armadilha, surpreendendo os sujeitos que tentam abusá-la em sua embriaguez forjada. 

No decorrer da trama, no entanto, nossas expectativas são completa e positivamente subvertidas, visto que o título do filme e as situações iniciais que ele apresenta ao espectador sugerem que a vingança de Cassie poderia ser digna de filmes de terror “gore”, onde vemos uma “final girl” que detona qualquer malandro que ousar aparecer em sua frente.

Fennell vai além do esperado, adentrando no drama pessoal da protagonista, fazendo o espectador sentir e se conectar, por vezes diminuindo ou mudando o tom, para no fim retomar o ritmo inicial com uma reflexão válida e muito necessária. 

Bela Vingança se arrisca com uma história cujo ponto principal é escancarar o desconforto suportado pelas mulheres, mas que também traz certa satisfação (e nesse ponto não posso me alongar sem dar spoilers), sem falar na trilha sonora cuidadosamente pensada e na atuação incrível da Carey Mulligan. Temos diante de nós uma das melhores obras sobre os desafios de ser mulher em uma sociedade tomada pelo patriarcado.

 

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Colunistas Destaque Socorro Silva

Qual o lugar ocupado pelas mulheres negras na sociedade?

As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina destas mulheres. (Carneiro, Sueli, 2019, p. 313).

 

Inicio este texto, trazendo a reflexão da escritora Sueli Carneiro, no que se refere ao peso das opressões que as mulheres negras carregam, decorrente das múltiplas discriminações e preconceitos, resultantes do racismo e sexismo, marcas da brutal exploração e violência praticada pelo colonialismo contra as mulheres negras, o que subordinou e hierarquizou as   relações de gênero e raça na sociedade. Construindo a partir daí, o processo de objetificação e coisificação dos corpos das mulheres negras, conforme afirma Carneiro (2019), “a violência sexual colonial, é também o cimento de todas as hierarquias de gênero e raça, presentes em nossa sociedade”.  Em que as mulheres negras, foram vítimas do abuso sexual e das inúmeras violações de direitos que resultaram nas desigualdades sociais e estruturais que conhecemos hoje, invisibilizando desta forma, suas lutas e conquistas!

Falar sobre a ausência das mulheres negras na sociedade e o seu não lugar nos espaços sociais, requer recuperar a história e trajetória destas mulheres, vítimas das discriminações e preconceitos devido ao seu pertencimento racial, o que provocou o silenciamento e a subalternidade nas relações sociais, no contexto de uma cultura cisheteropratriarcal, que não reconhece os diferentes e a pluralidade existentes nestes processos de luta e resistência. Como afirmava Lélia Gonzalez (1982), “ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”. O que culmina para a exploração da mão de obra, a dupla jornada de trabalho, bem como a precarização e a desvalorização de seu trabalho. 

É necessário compreender que “as mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina destas mulheres” (CARNEIRO, 2019).  Reconhecer estas diferenças e o processo de exploração vivenciado por estas mulheres, nos ajudam a compreender as origens das desigualdades sociais  e políticas  em áreas como emprego e renda, educação, saúde moradia, representatividade política, dentre outros. Buscando elucidar e combater estas opressões, “o projeto feminista negro desde sua criação, trabalha o marcador racial para superar os estereótipos de gênero, privilégios de classe e cisheteronormatividades articuladas em nível global (Akotirene, 2019).

 Precisamos conhecer e analisar estas desigualdades, com base em uma perspectiva feminista interseccional, entendida antes de tudo “como uma lente analítica sob a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais” (AKOTIRENE, 2019), no sentido de compreender quais os efeitos dos estereótipos de gênero, raça e classe na construção das desigualdades e como atuam para exclusão e invisibilidade destas opressões. O que Carneiro (2019), já nos alerta em que “o que não depende apenas de nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige também a superação das ideologias complementares deste sistema de opressão, como no caso do racismo. Fato este que corrobora apara acentuar os níveis de desigualdades e o privilégio de classes obtido pelas mulheres brancas em várias situações como podemos destacar nos dados seguintes. 

Os  dados estatísticos do  Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), de 2019, destaca que as mulheres negras ainda ocupam as piores condições de trabalho como, o subemprego, o trabalho informal e precarizado, com direitos trabalhistas flexibilizados, como ocorre no caso do trabalho doméstico, onde as mulheres correspondem a 92% da força de trabalho e em sua maioria mulheres negras, que sofrem com a baixa escolaridade, visto que são  oriundas das classes empobrecidas e vulnerabilizadas  socialmente. Sendo que, deste percentual de trabalhadoras doméstica somente 30% possuem carteira assinada, o que precariza ainda mais suas relações sociais e de trabalho.

  Ainda, sobre os dados estatísticos, os indicadores sociais das mulheres no Brasil do IBGE de 2019, comprovam a segregação e a exclusão das mulheres negras no acesso à educação, onde ainda persiste as diferenças, oriundas dos marcadores de gênero, raça e classe. Como no caso do atraso escolar, proveniente da repetência e ou abandono escolar, entre jovens na faixa etária de 15 a 17 anos, onde as mulheres brancas, representam 19,9, e as negras de 30, 7% deste atraso escolar. Isso significa dizer, que as mulheres negras tardam muito mais a completar seus anos de estudo, decorrente de inúmeras situações, como cuidados da casa, falta de condições materiais e estruturais para manter-se na escola, a necessidade de trabalhar para ajudar na renda da família desde muito cedo, já que necessitam garantir sua subsistência e de sua família, sendo que, estes fatores contribuem sobremaneira, para o sucesso ou abandono escolar e a repetência. 

Realidade esta que se repete no ensino superior, onde as mulheres brancas têm o dobro do percentual (23,5), do que as mulheres pretas e pardas que representam (10,4), referente ao curso superior completo. Outro fato importante, apresentado na pesquisa, é a diferença quanto aos homens negros, que no total representam 7,0 deste percentual mencionado aos homens brancos com 20, 7%. O que mais uma vez constatamos o peso do racismo estrutural. Vale ressaltar que nesta conjuntura educacional as mulheres negras formam maioria nas universidades brasileiras, segundo pesquisa PNAD do IBGE, onde elas representam 27% deste contingente universitário. Fato este, que podemos atribuir, sem dúvida nenhuma a Lei 12.711 de 2012, a chamada Lei das Cotas Raciais, que promoveu o acesso a população negra e pobre de nosso país ao acesso ao ensino superior.

 As Políticas Afirmativas são fundamentais para promover a inclusão social e reparar as desigualdades históricas e sociais oriundas desde o processo de escravidão até os dias atuais. 

No que se refere a representatividade política das mulheres negras, ainda estamos bem distantes do que deveria representar a realidade brasileira, já que as mulheres são maioria da população brasileira, e as mulheres negras representam 25% deste percentual, sendo o maior grupo da população no Brasil, tendo em vista que a população negra corresponde a 56% desta população, um percentual bastante representativo e que merece refletirmos sobre estes dados.  Infelizmente os dados representados, ainda estão bem distantes do real, no campo da representatividade política, onde as mulheres negras representam apenas 3% dos (as) parlamentares eleitos (as) na Câmara Federal em 2018, segundo o relatório “Democracia Inacabada- um retrato das desigualdades brasileiras, da Oxfam Brasil. Do total de 513 Deputados (as) na Câmara Federal, apenas 12 mulheres negras foram eleitas e 01 apenas no Senado, o que demonstra a falta de sintonia com os números da maioria geográfica e ainda o reconhecimento  de sua identidade racial.

Neste quesito da participação das mulheres no parlamento nacional, o Brasil ocupa a 133ª posição no Ranking Mundial, dentre os 192 países participantes neste acompanhamento. O que reflete a baixa representatividade das mulheres na política.  Apesar de algumas ações afirmativas criadas para estimular a participação feminina e o aumento da representatividade política, como a Lei de Cotas de 1997, que garantiu uma reserva de no mínimo 30% das vagas para mulheres nos partidos e coligações. Outro fator importante foi a decisão do TSE de 2018, que estabeleceu um repasse do valor de 30% das verbas do fundo partidário para candidaturas femininas, bem como o aumento no tempo de propaganda eleitoral. Iniciativa bastante positiva e que contribuiu significativamente para o aumento da representatividade das mulheres nas eleições de 2018, mas que ainda não vimos impactar numericamente nos dados concernentes a presença das mulheres na política, inclusive as negras, que ainda veem o peso do racismo estrutural e do sexismo definindo a ocupação destes espaços.

A Carta da Mulheres Negras aprovadas em 2015, na Marcha Nacional das Mulheres Negras, destaca que “as mulheres negras e seu legado civilizatório, precisam ganhar visibilidade, para além dos estereótipos correntes, capaz de conferir a elas o estatuto de humano”. O que se percebe, no nível de aprofundamento das desigualdades estruturais enraizadas no campo institucional e político, o que reflete a falta do reconhecimento de suas identidades, saberes, conhecimento e sua cultura.  “A ausência das mulheres negras nas raias do poder deriva diretamente da falta de reconhecimento de sua capacidade de partilhar o comum, de sua plena humanidade, que a faz partícipe da coisa pública”. (Carta MN, 2015).

Em 2015, a ONU proclamou o período de 2015 a 2024, como a “Década Internacional dos Afrodescendentes”, como forma de exigir da comunidade internacional e dos organismos públicos, o reconhecimento, a justiça e a Democracia, deste segmento, cujos direitos humanos devem ser promovidos e protegidos. Significa, exigir dos governos locais, a reparação das desigualdades historicamente construídas desta população, em especial as mulheres negras que constituem o grupo mais vulnerabilizado socialmente em decorrências do racismo e sexismo, que estruturam as relações sociais.    

Promover ações de visibilidade das mulheres negras, suas trajetórias, experiências e o reconhecimento de seus saberes e sua humanidade, nos permitem construir novos alicerces éticos e políticos, engendrados nas desconstruções do racismo, sexismo, da misoginia, LGBTfobia e tantos outros marcadores sociais que excluem, oprimem e silenciam nossos corpos. Precisamos construir um mundo do bem comum, da equidade racial, dos valores do bem viver, da justiça social e da solidariedade. Só assim, podemos lograr melhores resultados de inclusão e participação das mulheres negras em nossa sociedade. E assim, responder com mais segurança, sobre qual o lugar que as mulheres negras ocupam na sociedade.

 

Referências:

Akotirene, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 

Carneiro. Sueli. Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina, a partir de uma perspectiva de gênero. In: Pensamento Feminista; conceitos fundamentais, et al. Organização Heloisa Buarque de Holanda.  Rio de Janeiro.  Bazar do Tempo, 2019.440 p.

AMNB. Carta das Mulheres Negras contra o Racismo. Brasília. 2015. Disponível em:  http://fopir.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Carta-das-Mulheres-Negras-2015.pdf

IBGE- Estatísticas de Gênero- Indicadores sociais das mulheres no Brasil- Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e socioeconômica. 38. Brasília. 2019.

González. Lélia. A mulher negra na Sociedade brasileira. In: O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Organização de Madel T. Luz. Rio de Janeiro. Edições Graal. Coleção Tendências. vol. 1. 1982.

Oxfam Brasil. Relatório Democracia Inacabada- um retrato das desigualdades brasileiras. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/democracia-inacabada/. Acesso em 22 de out de 2021.

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Clarissa Paiva Colunistas Destaque

As mulheres de Marighella

Bonita de ver a representação do feminino em Marighella – O Filme, que estreou no Brasil no início deste mês, após repetidas tentativas de censura por parte do governo federal.

As mulheres, presentes em quase todos os momentos, retratam com muita verdade, não só a realidade da mulher brasileira no final dos anos 60, mas a força revolucionária feminina que sempre existiu, mesmo em meio aos piores cenários.

Enquanto a personagem nordestina esposa de um dos membros da ALN (Ação Libertadora Nacional) fica em casa, tendo filhos e à espera angustiada por condições de criá-los sem a presença do pai, Bella – integrante da luta armada, atua em igualdade entre os companheiros durante assaltos, sequestros, e movimentos estratégicos do movimento – incluindo a preparação de grupo de resistência no campo.

À frente ou não dos atos revolucionários, uma característica marcante da maioria das personagens feminina é a consciência social, tão bem retratada em cenas como os momentos de despedida e reencontro de Clara com Marighella; e na assertividade da médica Gorete, mãe de Bella, em cena dramática que expõe todo o risco e loucura que envolvia o enfrentamento à ditadura.

Essas mulheres reais, dignamente resgatadas pelo diretor Wagner Moura, deram nos anos de chumbo mais do que o próprio sangue. Elas entregaram toda a sua dor e vulnerabilidade enquanto exerciam o direito de lutar; ofereceram todo o seu medo e zelo pelos que amavam, ao respeitarem a decisão dos companheiros em seguir a guerrilha urbana; e já silenciadas pela sociedade e pela vida, suportaram silenciar ainda mais, em lealdade e apoio à revolução.

Cinicamente ‘protegidas’ pelo regime militar (contanto que aceitassem ser objetos decorativos de uma sociedade sordidamente “boa”, “moral” e “próspera”), muitas foram as que atuaram em calabouços existenciais – com as ferramentas que tinham – para a manutenção da esperança de dias diferentes. Nem que isso se traduzisse em resistir e viver após tortura e morte de seus filhos, companheiros e amigos.

Ser mulher nessa época já era própria tortura – ao lado dos opressores ou cara a cara com eles. Mesmo com essa realidade, sinto que as insubordinadas experimentaram a absoluta liberdade de quem abre um caminho para nunca mais ser fechado.

Cabe a nós, hoje, continuarmos. Em honra a todas elas, no combate à opressão sob todos os seus nomes e apelidos.

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Destaque Matracas Literárias

Esta não é uma metáfora

Não me ofereça a sua pia cheia de louça,  mas se eu quiser lavar, aceite. Retribua-me com beijinhos e companhia. Pegue o pano para secar.
Não  me venha com nódoas na roupa para eu esfregar até que fiquem novamente alvas; mas se quiser parceria para testar uma solução, pode me chamar.
Não finja que o banheiro não precisa de limpeza. Façamos um acordo para que esteja sempre limpo e tomemos banho juntos ao anoitecer.
O que foi que houve com o prazer de cuidar? Quando nos perdemos delegando coisas tão importantes da nossa intimidade? Como chegamos ao ponto de nos envergonharmos da vida real?
Por que eu seria convidada a  sentar à sua mesa e provar a melhor comida, e por outro lado inferior por querer lavar os pratos?
Às vezes me assusto em ver como evitamos que nossos convidados mais esperados descubram a sujeira das nossas panelas. Como se fosse possível entregar só o que é bom. Talvez isso nem exista. Nem há graça em ser perfeito o tempo todo.
Talvez a gente precisasse esconder menos as nossas “áreas de serviço”, e se divertir mais lavando o chão. Para que nossos ‘segredos’ sejam do tamanho que são, e não maior do que nós. Para que a intimidade não nos intimide, mas nos liberte.
Tem coisa mais linda do que uma casa limpa?
Tem coisa melhor do que saber ser responsável por isso?
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Ady Canário Colunistas Destaque

Linguagem inclusiva, consciência negra e racismo à brasileira: mulheres negras reexistem

“Assim, ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, racistas são os outros’  (Kabengele Munanga).

 

Entre adolescência e juventude, estava entrando numa escola de informática em Mossoró e no mural da recepção desse lugar nos deparamos com um cartaz no mural contendo mais de vinte frases pejorativas com as pessoas negras: “negro não é gente”, “negro só é gente quando bate na porta e pergunta tem gente” e, ao final, dizia: “se cuide negão que a lei áurea foi assinada a lápis”. Chamada a atenção do proprietário para o sentido de tal linguagem, foi evidenciado que se tratava de uma brincadeira. Essas são apenas algumas frases de cunho racista e de constrangimento causado pelo preconceito racial e discriminação racial. É um dos modos do racismo brasileiro, que tende a naturalizar a negação do racismo no dizer que: foi apenas uma “piada” e uma “brincadeira”. Isso se chama racismo recreativo, usar da linguagem como piadinha para ofender o negro.

 

No Brasil é celebrada a luta e resistência negra desde o regime escravista, assim, o Dia da Consciência Negra faz reverência a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, símbolo maior da história, e localizado na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas um dos maiores e movimento de reexistência. Nesse novembro de 2021, o Dia da Consciência Negra completa meio século. Idealizado pelo movimento negro em 1970 em Porto Alegre-RS do Grupo Palmares, no legado de Oliveira Silveira, visando enaltecer a luta de Zumbi dos Palmares. Em 1978, na Bahia, o Movimento Negro Unificado (MNU) propôs esse dia pela memória da resistência negra e ressignificação do 13 de maio. Em 2003, com a Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, o Dia da Consciência Negra entrou para o calendário escolar.  Em 2011, foi instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra pela Lei 12.519, sendo feriado por leis específicas. 

 

Ao longo desses anos, os desafios continuam na luta contra o racismo à brasileira, a discriminação racial e a desigualdade racial.  Nossa reflexão é compreender o potencial desse marco para uma linguagem inclusiva com consciência negra, sobretudo para as mulheres que resistem nessa luta por visibilidade e representatividade. No Brasil, o racismo se assenta na sua própria negação. Segundo dados “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil” (2019), mulheres negras (pretas ou pardas) estão em situação desvantajosa. Por exemplo, no Brasil, a diferença salaria onde recebem menos da metade do que os homens brancos. Tendo sobre elas a maior carga de atividades em trabalhos domésticos, dentre outros não remunerados, embora apresentem melhores indicadores educacionais que os homens. Na representação nos espaços de poder, em 2018, as mulheres negras (pretas ou pardas) “constituíram 2,5% dos deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores. Consideradas apenas as mulheres eleitas, foram 16,9%, 31,1% e 36,8%, respectivamente”. 

 

De tudo isso, vemos o quão é necessária uma consciência negra como prática de luta e resistência, pois “Numa sociedade racista não basta não ser racista é preciso ser antirracista”, como nos diz a filósofa Ãngela Davis. A desconstrução do racismo é um tema que em todo tempo precisamos afirmar e em toda transversalidade que nos impõe. Assim, mulheres negras resistem e as brancas também, lutando por uma sociedade mais justa e igualitária. Ressaltamos todo um processo que se constitui na linguagem, memória e história, em reconhecer a nossa história e as contribuições para a construção da cidade/país. Precisamos sobremaneira de uma consciência antirracista e inclusiva para que tenhamos uma sociedade livre, sem preconceito e sem discriminação. Esperamos por mais políticas públicas de promoção da igualdade racial na sociedade brasileira.

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Graicy Cunha – e o poder transformador das tranças

Hoje 20 de novembro, data em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, a revista Matracas conta a história de Graicy Karen da Cunha, 31 anos, mulher, negra, filha adotiva de pais brancos, mãe solo de dois filhos, administradora por formação e trancista por opção.  Em seus relatos ela conta como sua vida foi transformada a partir das tranças afros. Para ela que desde muito pequena foi submetida a tratamentos capilares para alisar os cabelos, poder viver o natural dos seus cabelos foi a maior transformação de sua vida.

“Eu cresci em escola de pessoas brancas e de poder aquisitivo maior. Então até os meus 15 anos eu lembro que eu era ou uma das duas ou a única pessoa negra da sala. Sempre percebi que a sociedade vê como uma mulher bela, aquela que tem a pele branca e os cabelos lisos. Eu me sentia perdida nesse mundo que não era meu e achando que para ser aceita, eu precisava usar produtos químicos no cabelo para que ele ficasse liso”. Declarou.

A história de Graicy começa com o relato de uma vida inteira sendo submetida a tratamentos para alisar os cabelos com o pretexto de ser aceita por uma sociedade racista e preconceituosa. Porém, ainda adolescente, conseguiu virar a mesa, se rebelar e assumir a naturalidade dos seus cabelos crespos. Uma decisão que não mudou apenas a sua imagem, mas segundo ela, promoveu o resgate de sua própria identidade. “Pelo fato de não me reconhecer em um mundo do qual eu não fazia parte e não me identificava, eu era uma pessoa introspecta, tímida. Com 16 anos minha mãe me levava nos salões de beleza para alisar meu cabelo. Eu não aguentava mais, era sempre uma tortura para mim. Hoje eu tenho pavor de salão de beleza”, destacou.

Graicy se refere com muito carinho ao esforço que sua mãe fazia com a intenção que a filha fosse inserida na sociedade, sempre a levando para os salões para manter os cabelos lisos. “Um dia a minha mãe me levou até uma pessoa que ela tinha ficado sabendo que trançava cabelo e foi o dia mais importante e feliz da minha vida. Foi quando me senti livre e encontrei minha verdadeira identidade”, relatou.

A partir de então, Graicy aprendeu e passou a trançar o próprio cabelo e afirma que as tranças para uma mulher, principalmente se ela for negra, não é apenas um penteado, simboliza poder, libertação. “As tranças me deram liberdade e poder, eu me sinto tão forte com minhas tranças que passei a pesquisar sobre a origem das tranças, o que elas significam, foi como um reencontro com minhas raízes”, comentou.

A DESCOBERTA DE UMA PROFISSÃO

Formada em Administração, Grayce foi fazer estágio em uma empresa de comunicação e ao fim do estágio veio a contratação. Em menos de um ano foi convidada a assumir o cargo de produtora e por fim passou a diretora de produção. “Essa foi uma fase profissional pra mim muito importante, porém, difícil. Eu lembro que nos primeiros dois anos diretora de produção eu ia trabalhar chorando. Na ocasião, a maioria das pessoas com quem eu trabalhava eram homens e muitos eram irredutíveis às minhas ordens e isso me deixava muito pra baixo. Porém resisti por muito tempo e sou muito grata pelas oportunidades que me foram dadas porque me renderam grandes aprendizados”, Relata.

Grayce conta que assumir um cargo de liderança e o fato de ter que comandar um grupo composto, em sua maioria, por homens e os problemas com a não aceitação de suas ordens e opiniões a levaram a uma depressão. “Foi muito difícil, mas consegui superar. Eu lembro de casos de pessoas que chegavam para ser entrevistadas e me pediam para eu servir água e cafezinho me confundindo com a profissional que realizava esse serviço, mas nunca me incomodei e trabalhei nessa empresa por 10 anos”, detalhou.

Durante o trabalho na empresa de comunicação Graicy foi incentivada a fazer tranças em outras pessoas, colegas de trabalho. “As pessoas viam que eu tinha habilidade para fazer tranças e me pediam para trançar os cabelos delas e foi lá que consegui minha primeira cliente”, comentou. A partir de então, quando saiu da empresa de comunicação já tinha planos para trabalhar fazendo tranças e montar seu próprio espaço.

VIDAS RESGATADAS ATRAVÉS DAS TRANÇAS

Hoje, Graicy é trancista profissional e montou um espaço para atender as clientes em sua residência. É o “Ébanos Tranças”. Além de trançar o próprio cabelo e de ter conquistado uma lista de clientes, ainda ministra oficinas para mulheres que residem nas periferias, ensinando a elas a fazer tranças e diz ser um trabalho que faz com muito prazer. “Eu descobri essa minha habilidade a partir da minha necessidade de trançar o meu próprio cabelo e hoje esse é o meu trabalho. Eu estou tendo a oportunidade de conhecer histórias de mulheres incríveis, como as mulheres que fazem tratamento de câncer e chegam aqui quase sem cabelo e quando eu tranço o cabelo delas e vejo a reação após o resultado, isso pra mim não tem preço”, comentou emocionada.

O contato com as clientes que fazem tratamento de câncer surgiu a partir de amizades com pessoas que trabalham no AAPCM. Graicy conta que cada história que chega até ela é uma lição de vida. “Eu tenho cliente que chega aqui cheia de marcas e cicatrizes e depositam no meu trabalho a esperança de resgatar a autoestima e isso é uma responsabilidade muito grande e uma experiência muito importante pra mim como profissional e mulher. Quando eu consigo devolver para essa mulher um pouco de dignidade não há nada que pague isso”, detalhou

A trancista conta que ainda existe muito preconceito com as mulheres que decidem trançar os cabelos. “A intolerância com as mulheres que decidem ser o que querem ser é absurda. Tem casos aqui de mulheres que dizem que os maridos não aceitam que elas trancem os cabelos e quando elas decidem fazer mesmo contra a vontade deles sofrem retaliações dentro de casa”, contou.

As histórias entre elas, são repassadas através de um grupo de Whatsapp onde elas compartilham experiências e relatam que o preconceito com quem usa trança afro ainda é muito presente. “Eu conheço uma advogada que já manifestou o desejo de trançar os cabelos, mas não fez por medo de sofrer represália em seu trabalho”, exemplificou.

HISTÓRIA – Manipular o cabelo com tranças é técnica histórica, presente em muitas nações africanas. O princípio é simples, único, entrelaçamento de três mechas de cabelo a partir do couro cabeludo. Mas o simbolismo vai além do movimento e da beleza. Representa poder, luta, resistência ostensiva, informação, sistema de linguagem.

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O FILHO DE MIL HOMENS E A DOR DA INCOMPLETUDE

Como diria Alceu Valença, “A solidão é fera, a solidão devora”, e foi em meio ao isolamento pandêmico, que me vi acolhida na escrita simples e lírica de Valter Hugo Mãe, premiado escritor português e declaradamente apaixonado pelo Brasil. O filho de mil homens é o quinto romance do escritor, e nele somos devorados pelo vazio e angústia de seus personagens que, cada um a seu modo, buscam uma forma de preencher o que lhes falta. 

Crisóstomo é um humilde pescador que, aos 40 anos, sentia-se pela metade – faltava-lhe um filho. E, reconhecendo-se infeliz, partiu em buscar de encontrar uma criança que pudesse adotar. Crisóstomo “acreditou que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família”. A sua busca chegou ao fim quando, em seu trabalho, apareceu Camilo, um jovem órfão de 14 anos, “um rapaz carregado de ausências e silêncios”. Imediatamente o pescador percebeu que era ele. Camilo é o filho que tanto esperou e não hesitou em pedir ao rapaz que o aceitasse como seu pai. Camilo, emocionado, logo correspondeu às expectativas do pescador e aceitou ser seu filho. Agora, Crisóstomo sentia-se inteiro. 

Isaura é filha única, que muito cedo foi arranjada para o filho dos vizinhos. O que seus pais não esperavam era que a moça fosse se entregar ao rapaz antes do casamento, ainda menor de idade. Desvirtuada, Isaura passou a ser enjeitada; “envergonhava-se de ter um dia oferecido tudo ao amor”. Com a decepção de ver-se abandonada, Isaura não comia e passou os anos a definhar. Ela “não queria ser ninguém. Queria diminuir até ser nada”.Chegou aos trinta anos muito magra e por dentro era  como estava por fora: a definhar.

Antonino é “um homem dos que não gostavam de raparigas e precisavam de fazer de conta”. Educado pela mãe, cresceu confuso com seus próprios sentimentos. E, entre seguir sua orientação sexual e corresponder às expectativas de sua mãe que não aceitava o filho como era, viu-se perdido.
O livro nos apresenta personagens que, inicialmente, nos parecem histórias avulsas, mas que ao longo do enredo vão se encontrando e se complementando. O homem pela metade, o órfão, a mulher enjeitada, o maricas, assim como os demais personagens que são demasiadamente humanos. O filho de mil homens é um verdadeiro mergulho em nós mesmos: é um livro que nos atravessa, não saímos ilesos dele, pois nos mostra que o acolhimento salva, estreita relações e, a partir delas, nos sentimos pertencentes no mundo.