Qual o lugar ocupado pelas mulheres negras na sociedade?

As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina destas mulheres. (Carneiro, Sueli, 2019, p. 313).

 

Inicio este texto, trazendo a reflexão da escritora Sueli Carneiro, no que se refere ao peso das opressões que as mulheres negras carregam, decorrente das múltiplas discriminações e preconceitos, resultantes do racismo e sexismo, marcas da brutal exploração e violência praticada pelo colonialismo contra as mulheres negras, o que subordinou e hierarquizou as   relações de gênero e raça na sociedade. Construindo a partir daí, o processo de objetificação e coisificação dos corpos das mulheres negras, conforme afirma Carneiro (2019), “a violência sexual colonial, é também o cimento de todas as hierarquias de gênero e raça, presentes em nossa sociedade”.  Em que as mulheres negras, foram vítimas do abuso sexual e das inúmeras violações de direitos que resultaram nas desigualdades sociais e estruturais que conhecemos hoje, invisibilizando desta forma, suas lutas e conquistas!

Falar sobre a ausência das mulheres negras na sociedade e o seu não lugar nos espaços sociais, requer recuperar a história e trajetória destas mulheres, vítimas das discriminações e preconceitos devido ao seu pertencimento racial, o que provocou o silenciamento e a subalternidade nas relações sociais, no contexto de uma cultura cisheteropratriarcal, que não reconhece os diferentes e a pluralidade existentes nestes processos de luta e resistência. Como afirmava Lélia Gonzalez (1982), “ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”. O que culmina para a exploração da mão de obra, a dupla jornada de trabalho, bem como a precarização e a desvalorização de seu trabalho. 

É necessário compreender que “as mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina destas mulheres” (CARNEIRO, 2019).  Reconhecer estas diferenças e o processo de exploração vivenciado por estas mulheres, nos ajudam a compreender as origens das desigualdades sociais  e políticas  em áreas como emprego e renda, educação, saúde moradia, representatividade política, dentre outros. Buscando elucidar e combater estas opressões, “o projeto feminista negro desde sua criação, trabalha o marcador racial para superar os estereótipos de gênero, privilégios de classe e cisheteronormatividades articuladas em nível global (Akotirene, 2019).

 Precisamos conhecer e analisar estas desigualdades, com base em uma perspectiva feminista interseccional, entendida antes de tudo “como uma lente analítica sob a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais” (AKOTIRENE, 2019), no sentido de compreender quais os efeitos dos estereótipos de gênero, raça e classe na construção das desigualdades e como atuam para exclusão e invisibilidade destas opressões. O que Carneiro (2019), já nos alerta em que “o que não depende apenas de nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige também a superação das ideologias complementares deste sistema de opressão, como no caso do racismo. Fato este que corrobora apara acentuar os níveis de desigualdades e o privilégio de classes obtido pelas mulheres brancas em várias situações como podemos destacar nos dados seguintes. 

Os  dados estatísticos do  Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), de 2019, destaca que as mulheres negras ainda ocupam as piores condições de trabalho como, o subemprego, o trabalho informal e precarizado, com direitos trabalhistas flexibilizados, como ocorre no caso do trabalho doméstico, onde as mulheres correspondem a 92% da força de trabalho e em sua maioria mulheres negras, que sofrem com a baixa escolaridade, visto que são  oriundas das classes empobrecidas e vulnerabilizadas  socialmente. Sendo que, deste percentual de trabalhadoras doméstica somente 30% possuem carteira assinada, o que precariza ainda mais suas relações sociais e de trabalho.

  Ainda, sobre os dados estatísticos, os indicadores sociais das mulheres no Brasil do IBGE de 2019, comprovam a segregação e a exclusão das mulheres negras no acesso à educação, onde ainda persiste as diferenças, oriundas dos marcadores de gênero, raça e classe. Como no caso do atraso escolar, proveniente da repetência e ou abandono escolar, entre jovens na faixa etária de 15 a 17 anos, onde as mulheres brancas, representam 19,9, e as negras de 30, 7% deste atraso escolar. Isso significa dizer, que as mulheres negras tardam muito mais a completar seus anos de estudo, decorrente de inúmeras situações, como cuidados da casa, falta de condições materiais e estruturais para manter-se na escola, a necessidade de trabalhar para ajudar na renda da família desde muito cedo, já que necessitam garantir sua subsistência e de sua família, sendo que, estes fatores contribuem sobremaneira, para o sucesso ou abandono escolar e a repetência. 

Realidade esta que se repete no ensino superior, onde as mulheres brancas têm o dobro do percentual (23,5), do que as mulheres pretas e pardas que representam (10,4), referente ao curso superior completo. Outro fato importante, apresentado na pesquisa, é a diferença quanto aos homens negros, que no total representam 7,0 deste percentual mencionado aos homens brancos com 20, 7%. O que mais uma vez constatamos o peso do racismo estrutural. Vale ressaltar que nesta conjuntura educacional as mulheres negras formam maioria nas universidades brasileiras, segundo pesquisa PNAD do IBGE, onde elas representam 27% deste contingente universitário. Fato este, que podemos atribuir, sem dúvida nenhuma a Lei 12.711 de 2012, a chamada Lei das Cotas Raciais, que promoveu o acesso a população negra e pobre de nosso país ao acesso ao ensino superior.

 As Políticas Afirmativas são fundamentais para promover a inclusão social e reparar as desigualdades históricas e sociais oriundas desde o processo de escravidão até os dias atuais. 

No que se refere a representatividade política das mulheres negras, ainda estamos bem distantes do que deveria representar a realidade brasileira, já que as mulheres são maioria da população brasileira, e as mulheres negras representam 25% deste percentual, sendo o maior grupo da população no Brasil, tendo em vista que a população negra corresponde a 56% desta população, um percentual bastante representativo e que merece refletirmos sobre estes dados.  Infelizmente os dados representados, ainda estão bem distantes do real, no campo da representatividade política, onde as mulheres negras representam apenas 3% dos (as) parlamentares eleitos (as) na Câmara Federal em 2018, segundo o relatório “Democracia Inacabada- um retrato das desigualdades brasileiras, da Oxfam Brasil. Do total de 513 Deputados (as) na Câmara Federal, apenas 12 mulheres negras foram eleitas e 01 apenas no Senado, o que demonstra a falta de sintonia com os números da maioria geográfica e ainda o reconhecimento  de sua identidade racial.

Neste quesito da participação das mulheres no parlamento nacional, o Brasil ocupa a 133ª posição no Ranking Mundial, dentre os 192 países participantes neste acompanhamento. O que reflete a baixa representatividade das mulheres na política.  Apesar de algumas ações afirmativas criadas para estimular a participação feminina e o aumento da representatividade política, como a Lei de Cotas de 1997, que garantiu uma reserva de no mínimo 30% das vagas para mulheres nos partidos e coligações. Outro fator importante foi a decisão do TSE de 2018, que estabeleceu um repasse do valor de 30% das verbas do fundo partidário para candidaturas femininas, bem como o aumento no tempo de propaganda eleitoral. Iniciativa bastante positiva e que contribuiu significativamente para o aumento da representatividade das mulheres nas eleições de 2018, mas que ainda não vimos impactar numericamente nos dados concernentes a presença das mulheres na política, inclusive as negras, que ainda veem o peso do racismo estrutural e do sexismo definindo a ocupação destes espaços.

A Carta da Mulheres Negras aprovadas em 2015, na Marcha Nacional das Mulheres Negras, destaca que “as mulheres negras e seu legado civilizatório, precisam ganhar visibilidade, para além dos estereótipos correntes, capaz de conferir a elas o estatuto de humano”. O que se percebe, no nível de aprofundamento das desigualdades estruturais enraizadas no campo institucional e político, o que reflete a falta do reconhecimento de suas identidades, saberes, conhecimento e sua cultura.  “A ausência das mulheres negras nas raias do poder deriva diretamente da falta de reconhecimento de sua capacidade de partilhar o comum, de sua plena humanidade, que a faz partícipe da coisa pública”. (Carta MN, 2015).

Em 2015, a ONU proclamou o período de 2015 a 2024, como a “Década Internacional dos Afrodescendentes”, como forma de exigir da comunidade internacional e dos organismos públicos, o reconhecimento, a justiça e a Democracia, deste segmento, cujos direitos humanos devem ser promovidos e protegidos. Significa, exigir dos governos locais, a reparação das desigualdades historicamente construídas desta população, em especial as mulheres negras que constituem o grupo mais vulnerabilizado socialmente em decorrências do racismo e sexismo, que estruturam as relações sociais.    

Promover ações de visibilidade das mulheres negras, suas trajetórias, experiências e o reconhecimento de seus saberes e sua humanidade, nos permitem construir novos alicerces éticos e políticos, engendrados nas desconstruções do racismo, sexismo, da misoginia, LGBTfobia e tantos outros marcadores sociais que excluem, oprimem e silenciam nossos corpos. Precisamos construir um mundo do bem comum, da equidade racial, dos valores do bem viver, da justiça social e da solidariedade. Só assim, podemos lograr melhores resultados de inclusão e participação das mulheres negras em nossa sociedade. E assim, responder com mais segurança, sobre qual o lugar que as mulheres negras ocupam na sociedade.

 

Referências:

Akotirene, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 

Carneiro. Sueli. Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina, a partir de uma perspectiva de gênero. In: Pensamento Feminista; conceitos fundamentais, et al. Organização Heloisa Buarque de Holanda.  Rio de Janeiro.  Bazar do Tempo, 2019.440 p.

AMNB. Carta das Mulheres Negras contra o Racismo. Brasília. 2015. Disponível em:  http://fopir.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Carta-das-Mulheres-Negras-2015.pdf

IBGE- Estatísticas de Gênero- Indicadores sociais das mulheres no Brasil- Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e socioeconômica. 38. Brasília. 2019.

González. Lélia. A mulher negra na Sociedade brasileira. In: O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Organização de Madel T. Luz. Rio de Janeiro. Edições Graal. Coleção Tendências. vol. 1. 1982.

Oxfam Brasil. Relatório Democracia Inacabada- um retrato das desigualdades brasileiras. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/democracia-inacabada/. Acesso em 22 de out de 2021.

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