


Fevereiro traz a rememoração do nascimento da intelectual Lélia Gonzalez, que deixou um legado importante, no que diz respeito à luta pela liberdade na comunicação escrita e falada, construindo importantes discursividades e análises. Isso nos inspira na contemporaneidade, sobretudo diante da violência racista à população negra. Contra o racismo e o sexismo.
Inegavelmente, ela foi intelectual negra, professora e ativista, sendo uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado. Neste texto refletimos o discurso do “pretuguês” sob o aspecto da existência da mulher negra na sociedade na luta por transformação social nos espaços de dominação e como possibilidade agregadora de momentos históricos e linguísticos, lócus do nosso lugar, sob o qual se dá práticas sociais de sentidos na e pela linguagem.
Na relação entre discurso e posicionamento político, o discurso de Gonzalez é determinado historicamente no nosso tempo e nos influencia sobremaneira nos estudos e caminhos novos possíveis. Por conseguinte, seu pensamento sobre o “pretuguês”, diz respeito à africanização do português falado no Brasil e desperta um debate sobre a relação entre linguagem e racismo.
Nossa pretensão, de forma breve, é mostrar que essa é uma questão relativamente recente nos estudos acadêmicos e nos objetos de pesquisas linguísticas e discursivas. Logo, temos muito a aprender com esse conceito e compreendermos a riqueza de vozes negras na universidade e sociedade, no sentido de uma educação linguística antirracista.
Desse modo, se fizermos uma leitura do pensamento de Lélia, também iremos compreender a discussão sobre interseccionalidade entre gênero e raça, além da extrema referência sobre a negritude, como uma pioneira que foi, em complexas redes de construção de sentido em variados acontecimentos, bem como a categoria de amefricanidade. Evidentemente, nessa intensa produção intelectual, por exemplo, aprendemos com Lélia sobre o lugar da mulher negra numa sociedade machista e racista, mulheres ainda estereotipadas e invisibilizadas na cultura brasileira. Em suma, vale a pena buscar suas produções, artigos, revistas e jornais contendo suas escritas e falas.
Reiteramos que, dessa pensadora negra advém o ponto de vista dos falares amefricanos, o que a autora denomina a língua portuguesa em nosso país de “pretuguês”. Assim, como professora negra e pesquisadora, ela afirma o uso de termos e expressões, algumas de origem africana. Portanto, analisa-se uma escrita alternativa diante da academia, usando a forma mais coloquial a fim de se comunicar de forma mais ampla, especialmente com as mulheres negras, populares e de periferia, além de auditório variado, como jornalistas e políticos.
No atual cenário marcado por projetos políticos de retrocesso da nação nos moldes do fascismo, ecoamos a memória e dizemos viva a Lélia Gonzalez, uma mulher comprometida com a transformação social e contra as desigualdades. As mortes brutais fruto da violência racista cotidiana no Brasil mostram o quanto precisamos discutir sobre justiça para o povo negro nesse país. Nesse sentido, temos a agradecer a Lélia Gonzalez por tematizar questões acerca da realidade das mulheres negras, ladino amefricanas.
Por fim, as palavras de Gonzalez são elucidativas a respeito da importância do discurso e prática do “pretuguês” na construção de sujeitos sociais populares, porque contribui para a conservação da história e da memória, em particular por intermédio da linguagem e da qual não podemos ser prisioneiras na construção da consciência negra, antirracista e do cuidado de nós mesmas. Viva Lélia!
“Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano” (IVANA LAY – mãe de Moïse, assassinado no RJ).
Parafraseando James Baldwin, pergunto: como ser negra, politicamente consciente, viver no Brasil, e não sentir raiva o tempo todo? O relato da mãe de Moïse Kabamgabe, 25, espancado até a morte em seu local de trabalho por cobrar o mínimo (seu salário atrasado), me toca em lugares perturbadores. Sou atravessada pela raiva em sua forma mais pura, mais brutal. Raiva fruto da revolta. Raiva que me faz por um segundo perder minha humanidade ao desejar que a mesma violência (ou pior) recaia sobre quem a praticou. Raiva que por fim, se torna força e combustível para a luta.
Para além da raiva, como seu alicerce, outro sentimento que me alcança é a dor. Me dói como se eu fosse a própria mãe de Moïse (falo isso sem nenhum exagero ou pretensão), embora nem tenha idade. No entanto, como mulher negra que vive nesse país e se depara com atrocidades como essa sendo expostas todos os dias nas redes sociais e nas esquinas, me ligo a sua dor como se fosse minha, porque pode ser minha, porque na verdade é nossa. É a dor preta. A dor de ser massacrada(o), torturada(o), perseguida(o), humilhada(o), espancada(o) e morta(o), de diferentes formas, todos os dias em praça pública, no meio da praia ou do shopping, na rua ou em casa, no bairro chique ou na periferia. É a dor que só o racismo pode causar. É a dor que só quem é negro em um país que odeia os negros pode sentir.
Em meio a dor, raiva e revolta, me choca a inércia de uma sociedade que assiste passivamente um jovem ser agredido e morto. Qual o valor da vida? Ou melhor, que vidas tem valor? Quais corpos são considerados dignos de choro e atenção?
No ensaio “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, Butler (2020) afirma que as intersecções de gênero, raça e classe incidem sobre nossos julgamentos acerca de quais vidas têm direito de serem vividas e, consequentemente, quais são passíveis de morte. Nos termos da autora, se uma vida é carente de valor, podendo ser facilmente destruída sem consequências ou revolta, significa que ela nunca foi plenamente considerada como vida, portanto, não se fez chorável. Em nosso país é possível afirmar que os corpos pretos, quanto mais pretos e pobres, sentem o peso de não serem choráveis aos olhos do outro, mais que isso, carregam em sua carne o selo de matáveis.
Moïse é só mais jovem preto, pobre e imigrante ASSASSINADO a troco de nada, ao tentar sobreviver nesse país que vende o mito da democracia racial e da cordialidade, mas na prática coloca um alvo constante em nosso peito. As estatísticas estão aí para provar: A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil (ONU BRASIL, 2017); Em 2018 os negros representavam 75,7% das vítimas de homicídio; A taxa de assassinatos de negros aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que a de não negros diminuiu 12,9% nesse mesmo período (IPEA, 2020).
“ELES MATARAM MEU FILHO PORQUE ELE ERA NEGRO…”, essa fala ecoa alto em mim, me corta, mas deveria ecoar e cortar todos os brasileiros. Se uma sociedade consegue ver um homem ser torturado, espancado e morto sem fazer nada, ela não está fadada ao fracasso, ela já fracassou.
Dessa vez foi Moïse, mas amanhã pode ser sua irmã, seu pai, seu/sua companheiro(a), você ou eu. Todos os dias o ódio mata (simbolicamente e fisicamente) negros, pessoas lgbtqia+, mulheres, crianças e estrangeiros. Ódio e raiva são diferentes. Se o ódio tenta nos eliminar, que a raiva (tida aqui enquanto revolta) nos aproxime e impulsione a lutar contra tais atrocidades, a enfrentar quem tenta nos aniquilar.
UBUNTU
#justiçapormoise
“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” (Simone de Beauvoir)
Falar sobre o conceito de “ser mulher” parece algo simples, se for feita uma comparação, dentro do padrão binário, entre macho e fêmea. Mas não é. Vai muito mais além. O lugar de fala de uma pessoa que se autodenomina como “mulher” pode ser visto de vários ângulos, sob várias camadas, através de várias interfaces. Ao nascer, somos caracterizadas simplesmente por uma vulva, a qual, por sinal, é chamada de vagina, pois a maioria das pessoas não tiveram educação sexual o suficiente para saber que há diferença entre vagina e vulva (mas isso é assunto que irei explorar em outro momento). Olhar para um ser humano que nasce e dizer que o mesmo será condenado, por toda uma vida, a ser tratado como mulher por causa de um órgão genital ― sem perceber que o corpo é um sistema complexo, que se transforma através do tempo e que sofre modificações biosocioculturais ― é algo muito minimalista e, porque não dizer, cruel.
Diante da multiplicidade de identidades de gênero que existe, reduzir os sujeitos em apenas dois modelos de seres é querer o mesmo que um camelo entre por um buraco de uma agulha, como foi escrito na Bíblia e muita gente acreditou que Jesus disse isso. E sabiamente Simone de Beauvoir proferiu que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Essa frase é bastante conhecida no meio da diversidade de mulheres feministas, mas para quem está iniciando nesse “mundo do feminismo”, é bem impactante. Pelo menos foi para mim, quando a ouvi pela primeira vez.
Me causou uma enorme repercussão, pois cresci com aquela ideia que mencionei inicialmente, de que nascemos e percorremos uma existência inteira, até a morte, como mulheres, em razão de um “buraco” que está entre nossas pernas; percorri a minha infância e adolescência achando que ser mulher era obra divina e que eu teria a obrigatoriedade de reproduzir outro ser, pois Deus me criou para fecundar a Terra; me foi incutida a ideia de que, nós, as mulheres, só poderíamos nos relacionar com uma pessoa do “sexo” masculino, porque Deus retirou uma costela de Adão para criar uma mulher e ser sua companheira e que toda a Humanidade deveria seguir o mesmo caminho; observava que nós, mulheres, deveríamos ser silenciosas, aceitar ordens de homens e deixar que eles sentassem à mesa e comessem primeiro. Não poderíamos discutir com eles; enquanto eles iam à rua, na hora que quisessem, para onde quisessem e com quem quisessem, deveríamos ficar em casa, aguardando-os docilmente e quando eles chegassem, era para tratar muito bem, sem nada questionar. Minha criação ― de mulher branca, hétero, cis, classe média ― foi assim e eu me debatia muito por dentro, sem entender o real motivo dessa diferenciação, dessa liberdade e poder que os homens ―brancos, hétero, cis, classe média ― tinham na sociedade e nós, mulheres (brancas, hétero, cis, classe média), não.
Percebi, portanto, que “tornar-se mulher” era ir de encontro com todos esses ensinamentos e romper com esse padrão simplista que separa os corpos em razão dos órgãos reprodutores “pênis” e “vagina”. “Tornar-se mulher” é assumir as próprias conquistas e não dar crédito aos homens por seus próprios feitos; é poder falar alto, debater, criar vínculos afetivos com quem bem entender; é ser muito mais do que um corpo reprodutor e submisso; é viver com autonomia e dignidade, mesmo que digam que não podemos.
Dessa forma, “tornar-se mulher” tem sido um caminho, um processo, um porvir constante, uma construção e não uma sentença, uma condenação, um veredicto, uma decisão arbitrária advinda daqueles que se autodeclaram seres masculinos (hétero-cis-brancos-classe média/alta). Graças ao feminismo, tenho me tornado mulher, dia após dia, livrando-me, aos poucos, dos ditames do machismo, o qual prende e condena tantas mulheres, há tanto tempo. Não é um caminho fácil, mas se faz necessário. E esse trajeto se faz através da educação, da leitura, dos debates, das discussões em redes sociais e de revistas como a Matracas, que abre a oportunidade para que possamos expressar as nossas vivências e, quem sabe, inspirar outras a entrarem nessa jornada de “tornar-se mulher”. É o meu desejo, é o nosso desejo. E como bem diz o Provérbio Chinês: “os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhes cedemos, mais exigentes se tornam”. Sendo assim, que as meninas que habitam em nós cresçam como os nossos desejos e tornem-se exigentes também!
A Filha Perdida (The Lost Daughter) é o novo filme original da Netflix que esteve entre um dos títulos mais assistidos da plataforma desde o seu lançamento. O longa é uma adaptação cinematográfica do romance de mesmo nome escrito por Elena Ferrante, pseudônimo de uma romancista italiana cuja identidade não é conhecida pelo público, sendo esta autora de múltiplas obras e se destacando como uma mulher à frente de seu tempo.
O longa que hoje venho apresentar rendeu à cineasta e roteirista Maggie Gyllenhaal o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza em 2021 e conta com um elenco de peso, com nomes como Olivia Colman, Ed Harris e Dakota Johnson.
A história nos apresenta uma professora universitária chamada Lena, que, solteira e de férias, decide viajar para o litoral italiano. Lá, após conhecer uma jovem mãe e sua filha pequena, Lena viaja ao passado para uma série de lembranças dolorosas sobre a sua própria experiência com a maternidade.
O filme trata de temas delicados quando se fala sobre mulheres e a maternidade a elas imposta como sinal de realização e validação, trazendo também os reflexos disso na liberdade e na realização pessoal e individual de uma mãe.
A protagonista, interpretada por Olivia Colman, sofre com a dualidade e as barreiras de ter uma responsabilidade tão grande como a de ser mãe, mostrando como, muitas vezes, torna-se impossível para a mulher continuar a desenvolver sua vida profissional e pessoal de maneira livre e o sentimento de culpa que a assombrará ao escolher a si própria.
Apesar de ter uma duração acima da média e ritmo mais lento que pode não agradar a todos, A Filha Perdida, principalmente no seu ato final, coloca ao expectador temas e acontecimentos importantíssimos e que geram pontos de reflexão não só para mulheres, mas para a sociedade como um todo. É gratificante ver mais uma história sobre problemáticas femininas ganhar as telas através do olhar e da direção de uma mulher tão talentosa como Maggie Gyllenhaal.
Referências:
A Misteriosa Elena Ferrante: Escritora e Musa da Mamma. Mamma Jama, 2021. Disponível em: <https://mammajamma.com.br/musas-da-mamma/elena-ferrante/>. Acesso em 26 de jan. de 2022.
A Filha Perdida, adaptação do livro de Elena Ferrante, está entre mais assistidos da Netflix. Rascunho, 2021. Disponível em: <https://rascunho.com.br/noticias/a-filha-perdida-adaptacao-do-livro-de-elena-ferrante-esta-entre-mais-assistidos-da-netflix/>. Acesso em 27 de jan. de 2022.
No dia 09 de janeiro comemorou-se os dezenove anos da Lei n.º 10.639/2003 que foi sancionada em 2003. Uma medida de política afirmativa importante e que torna obrigatória a inclusão do ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos currículos dos sistemas de ensino públicos e particulares da educação básica (em todos os níveis). Estamos em 2022 e a luta histórica continua na construção de uma educação antirracista no cotidiano escolar. No entanto, ainda precisamos avançar na compreensão dessa Lei e de sua implementação na educação.
A 10639 possui caráter de ação afirmativa, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tendo sido complementada pela Lei 11.645/2008, com a inclusão da temática indígena, sendo um avanço na promoção da igualdade étnico-racial, o que vai para além de conteúdos programáticos e datas comemorativas.
Em 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana por meio da Resolução n.º 1, de 17 de março. Esse documento, portanto, aprofunda a lei e traz importantes fundamentos para a prática social e pedagógica. Também temos o Plano Nacional de Implementação e as Orientações e Ações para essa política.
Vale salientar que o processo da implantação e implementação da Lei n.º 10.639/2003 (em nível estadual e municipal), ao longo desses anos, tem produzido análises, intensos debates e pesquisas na consolidação de políticas educacionais, pois não basta a aprovação de uma Lei, é preciso tirá-la do papel. Sem deixar de ressaltar o papel do Movimento Negro, de Núcleos e Grupos que resistem nessa discussão e em desconstruir estereótipos negativos presentes no imaginário social, ainda calcado pelo mito da democracia racial, pós-período escravagista, que apregoa uma suposta harmonia racial.
Antes mesmo da Lei, pesquisadores, educadores, intelectuais e ativistas já vinham executando ações, além de participação em fóruns estaduais de educação e diversidade, bem como na produção de material, sobremaneira na organização de grupos de trabalhos e de cursos de formação de professores.
No que diz respeito à educação das relações étnico-raciais e inclusão na escola, sem dúvida, há toda uma demanda da comunidade, especialmente da população negra no contexto das desigualdades e do racismo, por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, e a Lei n.º 10.639/2003 propicia às instâncias políticas e pedagógicas uma possibilidade de ampliar conhecimentos e reeducar para as relações entre os diversos grupos que constroem o Brasil.
Por isso, é extremamente importante o papel das instituições, dos conselhos de educação, secretarias no sentido de implantar planos e orientações para o atendimento e realização do trabalho. É muito importante fazer valer e refletir sobre o que essa lei representa no contexto da educação para as relações étnico-raciais no Brasil e, sobretudo, em nossa localidade. Todavia é preciso o investimento em recursos técnicos, financeiros e didáticos.
Também é importante buscar conhecer o que já vem sendo realizado nos sistemas de ensino, dentro dos desafios, limites e possibilidades trazidas pela Lei, no que diz respeito às práticas pedagógicas nessa perspectiva antirracista. Atualmente, existe uma vasta produção de material sobre a temática racial, diversas entidades, coletivos do movimento social, dentre outros, aptos a dialogar.
Temos conhecido algumas experiências exitosas em escolas, universidades por meio do trabalho de professores e profissionais empenhados com efetivação de políticas de promoção da igualdade racial, sob os preceitos de uma educação como direito à diversidade étnico-racial e combate ao racismo institucional.
Portanto, nós, educadores e toda sociedade, necessitamos trabalhar conjuntamente, independente do pertencimento étnico-racial. Inegavelmente, precisamos aprender e educar para desfazer discursos fundados em concepções estereotipadas e racistas sobre a história da África e Afro-Brasileira, especificamente, considerando as políticas afirmativas para a população negra. Viva a lei 10639 na educação antirracista! Muito a caminhar.
Texto de Luane Fernandes.
No Big Brother Brasil, um reality show de grande alcance nacional – e até internacional – uma das participantes, Natália Deodato, é uma mulher negra que já teve até vídeo íntimo exposto em menos de uma semana de programa. Talvez, mais um dos sintomas do que é ser uma mulher negra nesse país. Foram mais de 300 anos de escravidão que deixaram marcas incuráveis na negritude brasileira e são poucos os brasileiros racializados que foram educados para compreender essas questões.
Natália Deodato teve falas bastante equivocadas no programa, e, sem dúvidas, a sua falta de consciência racial foi um dos principais motivos que a levou a ser uma das escolhidas para ganhar o prêmio. A participante disse que não concorda com o dia da consciência negra e ainda buscou motivos para justificar a escravidão. Longe de mim defendê-la, mas não é o caminho certo apontarmos o dedo para a participante, se vivemos em um país estruturalmente racista, que jamais educou a sua população sobre racismo. Afinal, foi nessa mesma semana de equívocos de Deodato que a Folha publicou uma matéria afirmando a existência do racismo reverso.
Como falar de consciência racial em um país que só aborda esse assunto no dia 20 de novembro? Como cobrar de uma mulher negra de pele escura e cabelos crespos, que obviamente sofreu racismo durante a sua trajetória de vida, que ela adquira consciência racial e ame a sua negritude? Como cobrar isso, em um país que estuprou as suas mulheres negras, em busca de embranquecer a população e as ensinou o lugar de outra, de servidão e subalternização?
O lugar de doméstica, no Brasil, é ocupado majoritariamente por mulheres negras. Isso é uma herança escravocrata e colonial, pois eram as mulheres negras que cuidavam da casa, dos filhos da branquitude e ainda eram estupradas pelos senhores da casa branca. No ensino básico brasileiro, a colonização é legitimada, somos ensinados a partir do olhar do colonizador, que “descobriu” o nosso país. Na tv aberta brasileira, as mulheres negras são expostas seminuas no carnaval, como um produto de exportação.
Diante disso, sabemos que amar a negritude não é uma tarefa fácil, principalmente em um país que discute a existência do racismo reverso, e não sobre consciência racial. Segundo bell hooks: “Em um contexto supremacista branco, ‘amar a negritude’, raramente é uma postura política refletida no dia a dia. Quando é mencionada, é tratada como suspeita, perigosa e ameaçadora.”
Que passemos a nos olhar com mais amor, pois amar a negritude é um ato de revolução! E que possamos ter uma educação cada vez mais transgressora, pois é ela que irá nos ajudar a descolonizar nossas mentes, corpos e olhares.
“Amar a negritude” é esse ato de descolonizar e romper com o pensamento supremacista branco que insinua que somos inferiores, inadequados, marcados pela vitimização”. (HOOKS, 2019).
Não sei você que me lê, mas para mim, a caminhada rumo aos 40 mais parece uma segunda adolescência. Me descubro todo dia, tenho ímpetos juvenis, preocupações desnecessárias e muitos novos sonhos. Estou empolgada com essa nova oportunidade, já que minha primeira adolescência foi um tanto quanto frustrada.
Pois bem: a descoberta da vez foi algo impensável: descobri que não nasci para ser a tradicional dona de casa (Pasmem! Essa era a meta desde sempre, e dita em alto e bom som há pelo menos oito anos). Vou contar como foi:
Em meio à nova onda de COVID-19 e Influenza, me vi entre os cuidados com uma amiga e a preocupação com outro amigo que se recuperava de uma gripe. Procurando ser útil e especial (sem que ninguém me pedisse isso), lá fui eu fazer algo que resolveria todos os sintomas em três dias: o “lambedor da vovó”. A minha avó fazia para minha mãe (que tomava igual sobremesa de tão gostoso que era), e a minha mãe fez inúmeras vezes para mim, sobretudo naquelas tosses persistentes pós-carnaval. De fato, tinha propriedades milagrosas! Mas… nem sou mãe, nem muito menos médica.
Lá vou eu no meu antigo alojamento para colher as folhas de uma plantinha muito semelhante em cheiro e textura à malva usada pela minha mãe e minha avó nos xaropes caseiros. O resultado, após uma hora de preparo com todo amor, carinho e entusiasmo foi o mais desastroso possível: eu havia usado uma planta venenosa. É grave, mas eu preciso admitir: VE-NE-NO-SA. Não sei se terei filhos e netos para rirem disso no futuro, mas de uma coisa eu sei: daquele dia em diante, resolvi reconhecer que talvez eu não tenha mesmo nascido para ‘recatada e do lar’. E agora, Meu Deus!?
Agora sei que serei qualquer coisa útil para a qual eu tenha mais habilidade e experiência. Deixa que os próximos dias me digam não ser tarde demais.
*Em tempo: ninguém morreu. Quando, orgulhosa do remédio, revelei a foto da planta para uma das ‘vítimas’, ele me apontou o terrível engano (pode rir também).
Ai ai… essa adolescência!
Bem-vindos à terra do nunca!
Se você é uma mulher hétero e tem mais de quarenta anos, recomendo algum pó de pirlimpimpim para aguentar esse passeio lisérgico pela terra dos garotos perdidos, o tinder pós-pandêmico
A história de Peter Pan é sobre a dolorosa transição entre infância e adolescência. Peter decidiu que não iria ultrapassar a idade de 13 anos. Para isso, confina-se numa ilha onde o tempo congela. Lá, ele pode voar, combater piratas e cultivar estereótipos identitários e de gênero como se não houvesse amanhã, fora das tensões, demandas e dilemas da maturidade urbana.
Nos anos 1980, um livro norte-americano intitulado Síndrome de Peter Pan ficou alguns anos na lista dos mais vendidos. Nele, o psicólogo Dan Kiley abordava um padrão comportamento masculino emergente: homens adultos que se negavam a envelhecer, rejeitando responsabilidades e comprometimentos. Não é meu interesse rebater ou afirmar as ideias do psicólogo, que também parecem nostálgicas em relação a uma heteronormatividade provedora e paternal dos homens. Apenas externar uma questão que me chamou a atenção ontem à noite, quando, depois de uma garrafa de vinho, eu estava suficientemente alegre e otimista para reativar o meu perfil no aplicativo tinder, que não utilizava desde meados de 2019, aquela encarnação pré-pandêmica que muitos e muitas de nós já não se recorda muito bem.
Pois bem, escolhi fotos recentes, tomei cuidado para não ocultar os quilos que ganhei nos últimos meses. Exibi orgulhosa meu cabelo muito grisalho, fruto da transição de dois anos sem tintura. Escolhi colocar meu signo, três hashtags de gosto: comida, filmes, caminhada. Escrevi na descrição que sou contra Bolsonaro – peneira básica e indispensável – e rodei a roleta. Ali estava “Dai”, 44 anos, libriana que tem gatos. E gosta das coisas comuns da vida. Coisas como comida, filmes, caminhada. Talvez procurando companhia específica para aqueles dias do mês em que os ovários explodem e nos deixam menos atentas. Talvez imaginando a possibilidade de ter alguma distração afetiva e um up na autoestima.
Voltar ao tinder aos 44, com todas as marcas que o luto de dois anos de pandemia me deixou não era sequer uma atitude corajosa. Apenas banal. E ainda um pouco mais segura do que sair à noite, já que aglomerações sem máscara ainda não são liberadas pela OMS, mesmo que isso pareça não ser objetivamente de conhecimento público.
Eu já conheço o sistema. Já estive antes por ali, conheci pessoas até interessantes – embora a fauna de exemplos perturbadores não seja uma novidade. Tenho, claro, histórias animadoras a respeito do uso de aplicativos – aquela amiga próxima que casou com alguém que conheceu por essas vias e as que namoraram bastante tempo pessoas com quem tinham afinidade e que encontraram motivadas por esses estímulos. Embora comigo tenha sido sempre o ciclo básico de adquirir contatos efervescentes que não evoluíram para nada duradouro – há os que troquei mensagem de texto, os que mantive contato por uma semana no whatsapp e aquele com quem tive dois ou três encontros que pareciam promissores até ele “morrer” digitalmente. A nota aqui é que há todo o tipo de exemplo de usuário, mas a tendência é que as interações rumem para algo bastante casual. O que nem sempre é um problema.
O que me desestimulou, desta vez, após poucas horas de uso e nenhum (nenhumzinho mesmo) match é o fato de que meus pretendentes hipotéticos estão, seguramente, tendo muito mais problema para envelhecer do que eu.
Comecei a notar isso ao achar que as pessoas da minha faixa etária aparentavam muito mais idade do que o admitido na cifra exposta no perfil. Como é próprio às mulheres, me questionei se o problema não seria comigo, se não teria uma autoimagem pouco realista, tanto tempo sem esse tipo de interação e etc. Mas, estranhamente, homens de 36 aparentavam 50 e os que declaravam ter 50, por sua vez, pareciam ter a idade do meu pai, 70 anos. Estranhamente, conhecidos de longa data, pessoas que eu sabia serem mais velhas que eu, tinham perfis em que indicavam terem nascido bem depois de mim.
Resolvi abordar um amigo próximo que flagrei nessa situação, a esse respeito. Ambos temos 44 anos. Mas, ali, ele se colocava como alguém de 37. Perguntei, fora do app, claro, o porquê da negação, tentando demonstrar que não o estava julgando, só estranhava o que parecia ser um pacto coletivo, tal a recorrência de mentirem ou aparentarem mentir a idade, o que me fazia sentir tão alheia a tudo ali.
Ele desconversou e tentou contra-atacar me mandando prints de mulheres que também considerava desestimulantes. Eram moças de 30 e poucos anos, algumas num ângulo ruim, outras um pouco (bem pouco mesmo, aliás, mais magras que eu) acima do peso. Pensei: “nossa, que apavorante, hein!”.
O que me choca é a desonestidade (estou me atendo a isso, porque falar das fotos militaristas, armas na cintura e textos com nítida discriminação de gênero, raça, etária e gordofobia já extrapolaria o número de caracteres recomendável para este texto). Já o meu amigo homem hétero, acha bem grotesco lidar com cinturas acima de 70cm.
A Terra do Nunca parece ser um ambiente muito acolhedor a esse tipo de conduta. Além de alguns estudiosos já terem debatido o capital corporal como moeda de troca no uso desses aplicativos e os sintomas de desvinculação da realidade, dentre eles a disforia corporal, que é você não se sentir confortável em seu próprio corpo, é inevitável, sendo uma mulher da minha idade que não está disposta a disfarces e camuflagem, embora tenha disposição e se sinta suficientemente atraente para a paquera, me sentir expulsa desse pequeno paraíso.
É inevitável não articular meus belíssimos neurônios – que nem precisariam ser tão ativos assim, só existirem – para concluir que essa dinâmica beneficia masculinidades que se tornam ainda mais embrionárias (leia-se menos consistentes e desenvolvidas) face à política de rotatividade e descarte na qual esses apps se estruturam, depreciando as mulheres como um motivador da presença masculina.
Há um tempo atrás, lembro de uma ativista trans ter compartilhado comigo, numa conversa informal, que não saía de espaços como o tinder porque não iria aceitar ser invisibilizada, ser vista ali era uma forma de resistência. Eu não perduro muito tempo nesse exercício – sempre pouco produtivo para mim, zeradona de matches. Mas, desde essa conversa não excluo mais os meus perfis, mesmo quando desisto do aplicativo – se você faz isso, fica visível no tinder, mesmo se não o utiliza. Não se é uma pirraça, é o oposto do que eu gostaria, na verdade. Mas não consigo evitar.
Em vez de pó de pirlimpimpim, aquela magia cintilante que a fada sininho usava para voar sobre a terra do nunca, eu tive a companhia de uma garrafa de vinho rosé italiano, de excelente qualidade. O suficiente para me fazer passar algumas horas sobrevoando o plantão de garotos perdidos em sua busca de eterno retorno à puberdade. Eu não. Eu só queria sair dali.
A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente. (2004, Chimamanda Ngozi)
Por que devemos educar meninos e meninas para igualdade de gênero? Por que devemos educar homens e mulheres para serem mais felizes, livres de preconceitos e discriminações que tanto inferiorizam as mulheres e subalternizam as relações entre ambos? Precisamos criar nossos filhos e filhas de maneira diferente? Mas, por que, precisamos de uma educação que promova a igualdade de gênero e raça? Você, também, considera importante esta premissa, de que a educação igualitária, pode contribuir para mudanças de relacionamentos e comportamentos entre homens e mulheres? E o que a simples, escolha de brinquedos para meninos e meninas, podem influenciar nesta mudança? E por onde começamos?
Então, é sobre este e outros temas que envolvem a educação para a igualdade de gênero, que vou me reportar neste texto. Dialogar sobre a importância da construção social do conceito de gênero em nossa sociedade, e como este produz os preconceitos e estereótipos através dos processos formativos que desenvolvemos E como educarmos meninas e meninas desde sua infância. Além de destacar como os brinquedos, que são destinados a eles, são instrumentos eficientes, de disseminação de ideias, valores que perpetuam e reproduzem as desigualdades entre homens e mulheres, desde muito cedo e contribuem para reforçar e legitimar estes estereótipos e preconceitos que refletem os padrões e valores culturais engendrados na sociedade. É bem verdade, que eles não são os únicos a contribuir neste processo, mas tem sua parcela de influência e colaboração.
Início minhas reflexões, a partir das reflexões apresentadas pela autora Nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em seu livro, “Sejamos todos feministas” (2014), no qual discute sobre as bases das desigualdades entre homens e mulheres, a partir dos conceitos chaves do feminismo, sua relação com o conceito de gênero e as diferenças estabelecidas a partir do mesmo; onde afirma que, “o problema de gênero e que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero.” (p.9). Neste sentido, desconstruir esta formação e os valores inculcados ideologicamente no que se refere ao conceito de gênero e suas implicações, se faz necessário; leva tempo e requer disposição concreta para efetivar estas mudanças, pois devemos iniciar nossa incursão neste processo tão difícil e árido, nos questionando, sobre qual seria nosso papel, como pais, mães, educadores (as), avós, tios etc. Pois em nossa sociedade, temos vários tipos de família, e neste sentido, devemos considerar todos aqueles e aquelas que lidam com a formação cotidiana de nossas crianças.
Portanto, devemos iniciar nossa reflexão, nos perguntando, como podemos contribuir para “educar para igualdade”? Como promover uma educação livre ou isenta de preconceitos e estereótipos, ou seja, nos assentarmos sobre outros parâmetros e valores, conforme nos diz Chimamanda (2014), “é importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente”. E como devemos educar meninos e meninas, para um mundo mais justo e igualitário, e digo mais, sem preconceitos, de gênero, raça, sexualidade ou etnia. Pois, todos os preconceitos estabelecidos por estes marcadores sociais, geram prejuízos irreparáveis para a vida social, cultural e política destes grupos sociais.
E neste sentido, devemos refletir sobre como educamos e ou “deseducamos”, os meninos e meninas em nosso meio social. Seja na escola, na família, na igreja, em clubes e associações e todos os espaços sociais que nos organizamos, estamos educando; e inclusive através dos brinquedos que compramos, e que muitas vezes se mostram inofensivos, uma diversão, um mimo para nossos(as) pequenos(as). Mas que no fundo, eles traduzem valores e reproduzem as assimetrias de gênero, bastante profundas em nossas vidas. E para isso precisamos indagar, sobre quais valores ou ideias reafirmamos nossa visão sobre os papeis que devem ocupar homens e mulheres em nossa sociedade?
Acreditamos que homens e mulheres, tem direitos iguais e que as mulheres, são sujeitos políticos de direitos e livres em suas escolhas, que precisam ser respeitadas e valorizadas? A escritora bell hooks, que nos deixou recentemente, falecida em 15 de dezembro de 2021. Uma grande referência na luta contra o racismo, em defesa do feminismo negro, escritora respeitada intelectualmente e reconhecida por sua atuação na luta dos direitos das mulheres, especificamente as mulheres negras; nos fala com bastante propriedade sobre o tema do feminismo e sua importância para esta educação igualitária. Quando afirma que na maioria das vezes pensam que o feminismo, são um bando de mulheres bravas que querem ser iguais aos homens. Mas, que não compreendem, que o Feminismo, é a luta das mulheres por direitos, e direitos iguais. (hooks,2019). Fato este, que gera, críticas e controvérsias por alguns que não reconhecem e compreendem a importância do movimento e seus objetivos, que é ação política das mulheres pela transformação social das relações de poder entre homens e mulheres em busca da igualdade de direitos no campo político, econômico, social e cultural.
E por que, trouxe o tema do Feminismo, para este contexto? Para suscitar nossa compreensão sobre o assunto. As mulheres ao longo de décadas de história, buscam construir outras relações sociais, contra o sexismo, machismo e o racismo, fato este, que invisibiliza a luta das mulheres e suas conquistas por direitos. Pois existe um sistema patriarcal, que molda e legitima nossas ações, e subordina as mulheres as condições de inferiorização e submissão desta pseudo hegemonia. Ou seja, passamos a agir, a partir deste sistema, perfeito e reprodutor das desigualdades, onde “tudo que fazemos na vida está fundamentado em teoria. Seja quando conscientemente exploramos as razoes para termos uma perspectiva especifica, seja quando tomamos uma ação especifica, há um sistema implícito moldando pensamento e prática. (bell hooks, 2019, p.41).
Portanto, devemos mudar estas relações de poder instituída e estruturadas na subalternidade e opressão das mulheres. Para que possamos fazer escolhas políticas e ideológicas de forma conscientes e assim contribuir para a igualdade de gênero, construindo um mundo, sem sexismo, racismo, machismo e todas as formas de preconceito e discriminação que tanto violam nossa autonomia e subjetividade. E nossas escolhas passam desde a escolha de uma linguagem não sexista e inclusiva na escola, baseada nas brincadeiras, leituras, bem como a escolha de brinquedos para nossos filhos e filhas!
De fato, educar de forma consciente, requer mudanças de paradigmas e rupturas com as velhas e arcaicas tradições e valores herdados de nossos pais, resultados de uma sociedade sexista e machista na sua genealogia, provenientes das desiguais relações de gênero. Pois, segundo afirma Camurça, (2004),
Gênero é um conceito útil para explicar muito dos comportamentos de mulheres e homens em nossa sociedade, nos ajudando a compreender grande parte dos problemas e dificuldades que as mulheres enfrentam no trabalho, na vida pública, na sexualidade, na reprodução e na família.
Ou seja, os reflexos da desigualdade entre homens e mulheres, a incidência de violência contra as mulheres, a desigualdade salarial e a atribuições do trabalho doméstico as mulheres, entre outros resultados, nos dizem muito desta relação desigual em que as mulheres são submetidas, originada tanto deste perverso sistema econômico capitalista que vulnerabiliza e precariza o trabalho das mulheres, como das relações de gênero provenientes deste modelo machista e sexista que bem conhecemos. Pois as partir das representações de gênero segundo a autora, se estabelecem os papeis a serem cumpridos por homens e mulheres, entre as mulheres e a relação entre os homens, onde a sociedade cria as “relações de gênero”, gerando desta forma as assimetrias de gênero e a hierarquização do poder, pois as relações de gênero produzem relações desiguais de poder. E seguindo este raciocínio das relações de gênero e de poder. Atribuímos valores e prestigiamos a comportamentos e características masculinas em detrimento da feminina. O que vimos se reproduzir nas profissões, nos espaços políticos, nos cargos nos topos das gerencias e na academia, ou seja a hegemonia masculina no topo. Mas ainda bem que estamos mudando esta realidade e hoje ocupamos lugares diversos e plurais, estamos rompendo aos poucos com estas representações desiguais de gênero.
Acompanhando estas representações de gênero e seus efeitos na sociedade, vamos refletir sobre nossas opções pelos brinquedos e ver como eles se encaixam nestas representações? Você é daqueles e daquelas que compram para as meninas, bonecas, panelinhas, conjunto de cozinha, ferro de passar entre outras coisas que reforçam o papel da mulher no trabalho doméstico e o cuidado da família; que reservam a elas o espaço privado do lar e o papel de cuidados na família. Já comprou aquele bebê branco, onde as meninas são ensinadas a dar banho, trocar fralda e dar mamadeira, reproduzindo mais uma vez os estereótipos, do lugar da mulher, em casa e cuidando dos filhos? Vamos refletir, será que estas brincadeiras e brinquedos, reforçam e reproduzem estigmas e estereótipos quanto aos papeis sociais desempenhados pelas mulheres na sociedade e reproduzem as desigualdades e diferenças?
E os brinquedos dados aos meninos? são carros, bonecos de guerra, de filmes, heróis de quadrinhos sempre fortes e imbatíveis, além de miniaturas de tanques de guerra, castelo, posto de gasolina, campo de futebol, bolas e armas. O porquê destas escolhas? De onde saiu sua opção por estes brinquedos, selecionados por gênero e sexo? Por que os brinquedos dos meninos, simbolizam força, coragem, inteligência e perspicácia e o brinquedo das meninas traduzem, fragilidade, meiguice, cuidados e amabilidade? Já parou para pensar que estas características definem os papeis, características e habilidades que eles devem apresentar ao longo da sua vida?
A escritora bell hook nos dizia que a maioria de nós mulheres fomos socializadas para aceitar os pensamentos sexistas, desde cedo somos educadas que homens e mulheres ocupam papeis e lugares diferentes em nossa sociedade. E os brinquedos reproduzem estes modos de pensar, agir e se comportar. Eles nos ensinam que as mulheres são para cuidar da família, e por isso desde muito cedo, os brinquedos servem como pequenos laboratórios para ensinar o “ofício” de ser mãe, dona de casa e cuidadora do lar. As panelas nos ensinam a cozinhar, a fazer as prendas do lar, as miniaturas das máquinas de costura, nos ensinam a costurar, ou seja, “tarefas exclusivamente femininas”. Reafirmando o que disse Camurça (2004), “As relações de gênero determinam os comportamentos masculinos e femininos que devemos ou não devemos ter em cada etapa da vida.” E os brinquedos são uma extensão desta modelagem em uma etapa de nossa vida.
E porque os meninos não são atribuídos estas responsabilidades desde cedo. Eles crescem sabendo que o papel destes cuidados da casa e da família, é único e exclusivamente da mãe, avô, irmã, tia. Ou seja, de uma mulher, nunca de um homem. Eu penso, que já temos mudanças significativas neste processo, em que já temos alguns homens, assumindo esta responsabilidade das tarefas de casa e cuidados da família, mas ainda são tão ínfimas as mudanças, o que ainda vemos com frequência é a sobrecarga do trabalho doméstico e da dupla jornada, ainda sobrecai sobre os ombros das mulheres.
A matéria publicada no Correio Braziliense, denominada “Não diferenciar brinquedos de meninos e meninas é ferramenta para igualdade”, das especialistas, Valeska Zanelo- Psicóloga e Andreia Ono-Educadora. No texto elas destacam que “da construção social dos papeis masculinos e femininos surgem preconceitos que se refletem no uso dos brinquedos. É o que chamam de estereótipos de gênero: a crença de que certos comportamentos e certos objetos são naturalmente; de meninas; e outros; de meninos;”. É de fundamental importância, que os brinquedos possam refletir outros valores e ideias, que possam ser diversos e que não limitem as possibilidade e potencialidades que os meninos e meninas expressam na sua infância e nem gerem e reproduzam estereótipos. Como nos disse Camurça, gênero e um conceito socialmente e culturalmente construído e que deve ser desconstruído, promovendo uma educação igualitária e sem restrições ou estigmas.
A psicóloga Valeska Zanelo, afirma que é a reprodução da já conhecida tecnologia de gênero” da escritora americana Teresa de Lauretis ,onde afirma que a tecnologia de gênero, são produtos culturais que não só representam diferenças e estereótipos em relação ao gênero como incitam essas diferenças e criam realidade”. Zanelo também destaca que observa que um dos maiores fatores de desempoderamento da mulher é o dispositivo amoroso; na nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas. As mulheres são ensinadas a amar os homens”. E o que nos lembra Chimamanda Ngozi, quando afirma que “Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente”.
Que tal começarmos por aí, construindo espaços mais saudáveis, interativos, e criativos, com brinquedos que estimulem a criatividade, inteligência, coragem e a responsabilidade entre meninos e meninas. Sem definição de rótulos e estereótipos de gênero, raça, sexualidade, sem denominar “coisas de meninos e meninas”. Uma sociedade igualitária começa desde a infância, com práticas, experiências e comportamentos que estimulem a igualdade e o respeito na prática em seu cotidiano. Só assim poderemos sonhar com uma sociedade de homens e mulheres “mais felizes”. Livres de amarras e preconceitos!
Referências:
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
hooks, bel. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução Ana Luiza Libânio. – 4 ed. -Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. 2019. 176p.; 21cm.
Não diferenciar brinquedos de meninos e meninas é ferramenta para igualdade. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2018/10/08/interna_revista_correio,711080/nao-diferenciar-brinquedos-de-meninas-e-de-meninos-promove-igualdade.shtml. Acesso em 18 de novembro de 2021.
CAMURÇA. Silvia; GOUVEIA, Taciana. O que é Gênero.4ª ed. – Recife: SOS CORPO. Instituto Feminista para a Democracia. 2004. 40p. – (Cadernos SOS CORPO. v I.).