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Colunistas Destaque Natalia Santos

Séries de Mulheres: Duas Dicas Imperdíveis.

Recentemente assisti a duas séries de tv que me chamaram atenção não só por terem ótimas histórias que prendem do início ao fim, mas por terem sido criações ou adaptações de histórias feitas por mulheres.

A primeira delas é Maldivas (2022) que, além de ser uma produção nacional, foi criada e estrelada por Natalia Klein1. Essa é uma história que contém muito suspense e mistério com pitadas ácidas de humor. Na série, somos convidados a entender o velho ditado de não julgar um livro pela capa e de que as aparências enganam.

Maldivas (Divulgação/Netflix)

A própria Natalia deixa claro que utilizou de clichês de gênero propositalmente na trama, recurso que, além de nos contagiar pela familiaridade, abre brechas para algumas críticas e alfinetadas. Divertida, com episódios curtos, é a série perfeita para maratonar em um fim de semana, cheia de reviravoltas, segredos e bons drinks.

Minha segunda indicação é a série O Verão que Mudou Minha Vida (2022), uma adaptação da trilogia de livros escritos por Jenny Han2, uma linda história sobre crescer e amadurecer. Na trama, podemos acompanhar os dramas da adolescente Belle, que todo verão viaja para a casa de praia com a família e amigos, mas, nos seus 15 anos, percebe que muitas coisas não são mais como antigamente.

O Verão que Mudou Minha Vida (Divulgação/Amazon Prime Video)

Além de ser deliciosamente nostálgica e contar com uma trilha sonora maravilhosa, a série aborda não só os temas da vida adolescente, mas faz questão de inserir arcos bem trabalhados sobre a vida dos adultos que não estão ali somente para preencher papéis. Também é perfeita para uma maratona de fim de semana!

Espero que vocês aproveitem e curtam bastante essas dicas, pois eu me apaixonei por estas duas “séries de mulheres”.

1 Natalia Klein é escritora, roteirista, comediante e atriz, também criadora do blog Adorável Psicose, que deu origem à série de TV com o mesmo nome.

2 Jenny Han é uma escritora norte-americana de origem coreana. Ela é conhecida por escrever livros infantis e adolescentes.

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Colunistas Destaque Suziany Araújo

Aborto: duas histórias e o que determina a legislação brasileira

Na penúltima semana de junho veio à tona dois fatos que marcaram e impactaram a vida de duas mulheres. Histórias com realidades sociais distintas, mas com alguns elementos semelhantes, principalmente pela ótica do julgamento e de como uma menina ou uma mulher são tratadas diante de um tema ainda bastante polêmico: o aborto.

No dia 20 de junho jornal The Intercep Brasil, divulgou uma matéria com um caso que chamou a atenção de diferentes instituições, pessoas e novamente uma grande polêmica gerada. De acordo com  informações divulgadas pelo jornal, à juíza Joana Ribeiro Zimmer, titular da Comarca de Tijucas, juntamente com um membro do Ministério Público, tentava convencer uma menina de 11 anos a desistir de um procedimento de aborto, que no caso da menina, era legal. A menina,  vítima de estupro, ao procurar o hospital para a realização do aborto, foi informada que, devido ao avanço da gravidez, tempo gestacional de vinte duas semanas,  precisaria de uma autorização judicial para realização do procedimento. Contudo, não existe hoje na legislação, na jurisprudência, ou mesmo doutrina, um tempo gestacional estabelecido para realização do aborto.

O conceito da palavra aborto, o define como a interrupção do processo de gravidez. O aborto (de ab-ortus) transmite a ideia de privação do nascimento, com a morte do produto da concepção. Do ponto de vista médico, aborto é a interrupção da gravidez até 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas ou, ainda, segundo alguns, quando o feto mede até 16,5 cm. (A LEGISLAÇÃO SOBRE O ABORTO E SEU IMPACTO NA SAÚDE DA MULHER)

A enciclopédia jurídica determina: “Rigorosamente, malgrado a pragmática linguística consolidada e a terminologia legal adotada, existe distinção entre os vocábulos “aborto” e “abortamento” (“partus abactus, crimen procurati abortus”). Croce e Croce Jr1 esclarecem que “abortamento” corresponde ao ato de abortar, isto é, ao conjunto de meios e manobras empregado para interrupção da gravidez, enquanto que “aborto” (do latim ab + ortus = privação de nascimento; de aboriri = desaparecer) identifica o produto da concepção, morto ou inviável, dali resultante”. (ENCICLOPEDIA JURIDICA).

O penalista Heleno Cláudio Fragoso (1986) diz que “o aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do feto”. A partir disso, não podemos considerar que a interrupção de uma gravidez que já está com 22 duas semanas é um homicídio, como foi afirmado pela magistrada que conduzia as discussões sobre o caso da garota de 11 anos.

Existe na legislação uma clara definição do que seria o crime de aborto e o homicídio. Bittencourt apresenta a seguinte lição: “A vida começa com o início do parto, com o rompimento do saco aminiótico; é suficiente a vida, sendo indiferente a capacidade de viver. Antes do início do parto, o crime será de aborto. Assim, a simples destruição da vida biológica do feto, no início do parto, já constitui o crime de homicídio.”.

A doutrina define como homicídio, quando em ocasião violenta alguém resolve tirar a vida do outro, será a eliminação da vida extrauterina, ou seja, de forma simplificada, é colocar um fim a vida de quem já nasceu.

No Brasil, em regra, o aborto é crime, tanto o auto-aborto ou aborto provocado por terceiros. Fazer um aborto ilegal pode acarretar em prisão de um a três anos para a mãe ou quem deu permissão para o ato. Contudo, existem três hipóteses em que o aborto é permitido: na gravidez resultante de estupro, essa situação é precedida de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal; quando põe em risco a saúde da gestante e nos casos em que o feto é anencéfalo.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, decidiu que em casos de anencefalia, quando o feto tem má formação na calota craniana ou no cérebro, a mulher também pode interromper a gravidez. Na época o entendimento por parte dos os ministros é que um feto com anencefalia é natimorto e, assim sendo, a interrupção da gravidez nessa situação não é considerado aborto.

A pesquisadora Debora Diniz afirma: “O diagnóstico da má formação fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes que uma mulher grávida pode experimentar.”.

Após essa matéria a respeito da negativa da juíza, outras informações sobre a gravidez da menina vieram a público. De acordo com o inquérito e divulgação em outros portais de notícia, a menina teve relações sexuais de forma consentida com o filho do padrasto, um menino de 13 anos. Nessa circunstancias não se pode falar em crime de estupro, por dois motivos, primeiro pelo consentimento e o segundo ponto é que se o ato entre a criança e o adolescente não fosse consentida, teríamos um ato infracional, não mais um crime de estupro de vulnerável. Contudo, o consentimento e a idade dos envolvidos mudou tudo. Haveria algum impedimento para a realização do procedimento do aborto? Embora não sendo gerado por ato de violência sexual, tinha-se uma situação atípica, um problema familiar que precisava de amparo e uma solução por parte do Estado. Os envolvidos são pessoas em formação, que muito provavelmente não tenha conhecimento das consequências do que estavam fazendo. Em um momento na audiência a magistrada pergunta a menina se ela sabia como engravidava e a resposta foi não.

A segunda personagem dessa semana polêmica é a atriz de 21 anos, Klara Castanho, que teve sua vida íntima violada e com isso veio a público esclarecer especulações em torno de uma gravidez e colocação de criança para adoção. Uma coisa perceptível é que cada vez que uma mulher expõe uma violência sexual sofrida (nesse caso um estupro), percebemos o quanto essa mulher é atacada, julgada e condenada socialmente pelas decisões que em torno da violência sofrida. Para uma parte significativa das pessoas a culpa é sempre da vítima.  Klara Castanho foi obrigada, depois de diversas especulações, a expor que foi vítima de estupro o que resultou em uma gravidez.

A atriz não realizou o procedimento de aborto. De acordo com seu relato, só descobriu a gravidez quando estava próximo do bebê nascer. Por não desejar permanecer com a criança, resultado de uma experiência traumatizante, procurou uma advogada para proceder com os trâmites legais e assim entregá-la para adoção.

Também é relatada pela atriz a falta de empatia do médico que a atendeu que a obrigou a ouvir os batimentos cardíacos da criança e disse no atendimento que ela deveria amá-lo por carregar parte do seu DNA. Como também após o parto, ainda no hospital, foi procurada por jornalistas (buscavam informações sobre o fato), que só chegaram ao hospital após a falta de ética de alguns profissionais.

Quando a notícia de que uma mulher havia entregado uma criança para adoção, mesmo sendo divulgado junto com essa informação o fato de que essa mulher havia sido vítima de uma violência sexual, não foi poupada de julgamentos. Novamente um cenário de discussões foi estabelecido nas redes sociais. Debate sem fundamentação teórica, sociológica ou mesmo jurídico.

A atriz procurou uma advogada e pelos meios legais entregou a criança para adoção. O que diz a nossa legislação sobre a entrega de uma criança para adoção? A atriz cometeu crime ao assim fazer? Houve abandono de incapaz? Como levantando por algumas pessoas.

Na nossa legislação não é crime colocar a criança para adoção, mesmo que a gravidez não tenha sido resultado de um crime de estupro. A previsão legal de entrega voluntária de bebês para adoção foi incluída no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) desde 2017, entrando em vigor assim o artigo 19-A. Trata-se de um mecanismo que procura proteger as crianças e evitar práticas que não são permitidas no Brasil, como aborto fora das hipóteses previstas em lei, abandono de bebês e adoção irregular. Em caso de violência sexual, a lei dispõe que a mulher pode realizar o procedimento de interrupção da gravidez, independentemente de semanas gestacionais.

A mãe que assim manifestar interesse na entrega do filho deve procurar desses lugares, postos de saúde, hospitais, conselhos tutelares ou qualquer órgão da rede de proteção à infância. A mulher será então encaminhada à Vara da Infância e da Juventude, onde será ouvida por profissional da equipe técnica composta de psicólogos, assistentes sociais, que em conjunto analisarão se ela realmente está convicta e em condições de tomar a decisão, considerando-se inclusive eventuais efeitos do estado gestacional ou puerperal.

Sobre o crime de abandono de incapaz se caracteriza quando alguém tem o dever de cuidar de um menor, mas o deixa sozinho, sem a menor capacidade de se defender de eventuais riscos. Recentemente um pai deixou a filha de 6 anos dormindo sozinha em um apartamento que ficava no 12° andar, o que terminou com a morte da criança.  A título de reflexão, houve uma grande repercussão sobre o fato? E se fosse uma mãe que deixasse uma filha de 6 anos sozinha e tivesse saído com o namorado? O nosso Código Penal não tipifica os crimes levando em consideração uma pena maior ou menor pelo critério se foi o pai ou a mãe. A lei seria aplicada da mesma forma independentemente do gênero.  Se você deixou seu filho sozinho, não importa se você é homem ou mulher, será devidamente responsabilizado. Mas e as pessoas, a sociedade, usaria/usam a mesma medida para apontar os erros paternos e maternos?

Conforme o Código Penal, o crime de abandono de incapaz se caracteriza quando uma pessoa que está sob cuidado, guarda, vigilância ou autoridade de terceiros é abandonada e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se de riscos, (Art. 133, CP).

A atriz, como relatado em seu perfil, procurou um profissional e os órgãos responsáveis para realizar a entrega da criança, formalizando assim pelos meios legais e não simplesmente abandonando o incapaz a desconhecidos.

A conclusão tirada a partir dos dois fatos que ganharam destaque nacional é que, as pessoas ainda cobram muito pouco dos reais responsáveis por crimes de abuso ou violência sexual. A mão do julgamento, das ofensas, ainda recai exclusivamente sobre a mulher. Não se percebe tanto interesse em identificar aqueles que violam uma mulher e que esses através do devido processo legal cumpram uma pena. Klara fez o que a maioria das pessoas ligadas a alguma entidade religiosa, apontam como solução para os casos em que a mulher engravida após sofrer violência sexual, ou seja, não fez o aborto e entregou para adoção. Preservou a vida. Mas, quantas páginas, entidades de cunho religioso manifestou apoio a Klara e disse “muito bem, você fez o certo, você poupou uma vida ao não realizar o aborto”, quantas? Eu, pelo menos, não vi nenhuma. O fato é que, uma parte da nossa sociedade permanece com o pensamento medieval de que se existe o DNA da mãe naquele feto, mesmo oriundo de uma violência sexual, essa mulher deve desenvolver o “instituto materno”, deve ter o sentimento de perdão e misericórdia e permanecer em convívio com o fruto da violência que sofreu. Por conta meramente genética a atriz ou qualquer mulher tem por obrigação amar aquela criança em formação.

Temos uma cultura que odeia as mulheres.  Tivemos duas provas essa semana, duas provas que revelaram as duas faces de um mesmo problema. A menina que é estuprada e procura atendimento para realizar o aborto recebe como veredito a condenação. E não muito diferente, a mulher que resolve ter o bebê e disponibilizá-lo, de forma legal, para adoção, recebe da nossa sociedade o mesmo tratamento. Não importa o que a mulher faça, ela na maioria das vezes vai estar errada. Porque para estar certa você precisa apenas, geneticamente, nascer com o cromossomo XY.

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Colunistas Destaque Rafaela Gurgel

Todo dia um 7 x 1 diferente

Certo dia, num dos inúmeros grupos de WhatsApp, conversando amenidades sobre vários perrengues que passamos todos os dias, uma colega disse: “Todo dia um 7 x 1 diferente!”. Isso ficou na minha cabeça por dias, até que dia 8 de junho de 2022, às 14 horas, mais um se concretizou. Aconteceu um julgamento onde o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu julgar em prol das operadoras de planos de saúde, taxando milhares de vidas dos assistidos.

Aquele placar de 7 x 1 quase se concretizou de fato não fossem três dos ministros exporem que economia e operadora de saúde alguma estaria acima de uma vida, enquanto os outros 6 sobrepujavam a política neoliberal exacerbada nos últimos tempos com discursos que causavam ojeriza. Muito foi discutido e encampado por inúmeros grupos desde fevereiro, fazendo até ser adiado o processo, mas o que tanto temíamos se findou. A cada voto contrário a nosso desfavor, ou seja, da vida e dignidade humana, era um grito de horror e socorro de inúmeros usuários. O choro era contumaz tal e qual aquele, aquele mesmo 7 x 1 da Copa do Mundo do Brasil. A cada negativa ia se esvaindo o mínimo de esperança que ainda poderia restar.

O choro era inglório tal e qual aquele dia, inúmeras pessoas assistiam incrédulas a tamanhos disparates. O Brasil inteiro perdeu, os milhares de segurados também. Foram 6 votos para o rol taxativo contra 3 para o exemplificativo. Os argumentos dos ministros foram um soco no estômago para quem vive um distanciamento brutal do que seja digno nesse país, onde pagamos uma das mais altas cargas tributárias do mundo; pessoas que se apegam a uma esperança que o plano de saúde possa dar, uma cobertura mais ampla e digna que assegure sua saúde e de sua família.

Prevaleceu as incoerências taxativas de quem não sabe o que se sacrificou mês a mês num boleto que lhe traga esperança; o que vimos foi, mais uma vez, uma justiça injusta e relegada a um lobby de seguradoras milionárias que só visam lucros. Passados poucos dias da decisão já assistimos a negativas de solicitações prescritas por médicos pelo simples fato de não estar no rol. E, como foi divulgado nas mídias, é preciso ratificar: O ROL TAXATIVO MATA!

E, como ficaremos depois disso? Só Deus e o tempo saberá, enquanto isso só nos resta rezar…

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Ady Canário Colunistas Destaque

Racismo linguístico e opressão sofrida

No momento em que li sobre racismo linguístico desvelou-se uma abordagem de diversos aspectos da linguagem social. Pensamos nas relações entre mulheres negras e brancas por que vivemos no cotidiano de nossas vidas inúmeros acontecimentos que vão se naturalizando por meio da linguagem e em suas intersecções.  Como uma noção chave no âmbito do racismo epistêmico, o racismo linguístico nos conduz para além das vivências, mas nos coloca diante de tensões e enfrentamentos diários.

Todos os dias assistimos episódios produzidos e reproduzidos como este do Programa “É de Casa”, exibido no sábado, dia 11/06, que gerou ampla repercussão nas mídias digitais e jornalísticas com análises trazendo a discussão do racismo estrutural. Certamente, temos posições sujeitos entre uma mulher branca para com uma mulher negra. Isso faz reaparecer enunciados já ditos e não ditos numa ordem discursiva. Daí vem a pergunta: por que esse enunciado e não outro em seu lugar? Sem dúvida, mais uma vez, a mídia mostrando a sua influência em naturalizar práticas de racismo e suas variadas faces sistêmicas.

Isso se dá pela linguagem e sua relação entre saber e poder. É o racismo (re)abre em nós as marcas, as dores. E como diz Grada Kilomba “por vezes dói sempre, por vezes infecta e outras vezes sangra”. Isso abrange professores em ascensão social, professores, estudantes e militantes pela promoção da igualdade racial. Será que se a dona Silene fosse branca, teria sido pedido a ela para servir?

Nesse sentido, o racismo na dimensão linguística, abre a compreensão do papel da linguagem e das práticas discursivas. É importante e assume lugar central, pois são nos usos que discriminamos direta ou indiretamente. Vamos validando a construção ou desconstrução de discursividades e enunciados racistas. É por meio da e na língua que o sujeito negro, as mulheres negras encampam uma luta constante e enuncia a resistência, a liberdade e contra a dominação. Essa dominação vem desde o Brasil colônia e se perpetua até os dias de hoje. Como nos diz a filósofa Angela Davis, as mulheres resistentes e desafiando a escravidão o tempo inteiro e a repressão sofrida. Todavia temos atos de resistência, já nos mostra Lélia Gonzalez.

O professor Gabriel Nascimento faz uma contextualização teórica e analítica, defendendo uma perspectiva raciolinguístico. Isso nos fornece as condições históricas, linguísticas e sociais acerca da relação entre raça, discurso e racismo. Evidencia o que é racismo linguístico e os modos como ocorre. Considerando o universo da linguagem, preconceito que se constituem pelas línguas e seus usos.  Para nós mulheres negras, o tema se reatuliza no fardo e luta pela igualdade, pois numa sociedade opressora, a desumanização persiste.

Em síntese, nós mulheres negras também vivenciamos o racismo linguístico. São situações nas quais nossos conhecimentos são postos em dúvidas ou tidos como menos válidos na sociedade. Esse racismo linguístico, portanto, vai normatizando práticas discursivas na vida pessoal e profissional. A fim de que estabeleçamos a necessária articulação entre linguagem, discurso, raça e racismo em nossos processos educativos é evidente que, o trabalho é todo dia. Lutamos (nos indignamos) pela desconstrução de discursos eurocêntricos de base excludente. A luta é todo dia.

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Aryanne Queiroz Colunistas Destaque

O CORPO-EXÍLIO FEMININO

“Sermos nós mesmos faz com que acabemos excluídos pelos outros. No entanto, fazer o que os outros querem nos exila de nós mesmos”. 

              (Clarissa Pinkola Estés)

Quando foi que começaram a fazer com que nós, mulheres, passássemos a esconder o nosso poder? A mulher realmente não pode controlar a si mesma, precisa de uma fala masculina para repreendê-la e representá-la? Por que a feminilidade é tão recriminada pela sociedade e tão escondida por nós, mulheres? Por que servimos tanto a esse patriarcado, se ele não nos protege, não nos beneficia em nada? Por que as nossas vivências incomodam tanto? Por que os nossos corpos são tão menosprezados e abusados moralmente e sexualmente? Por que nossa força foi substituída por uma fragilidade que nos paralisa e não nos permite ver o quanto somos poderosas? Por que vivemos satisfazendo e obedecendo a tantas ordens que em nada nos agrega? Por que os limites impostos não são questionados por muitas de nós? Será que somente a força física dos homens é o que nos impede de fluir? Será que as crenças limitantes são realmente suficientes para nos oprimir? Será que a dominação masculina vai, pra sempre, nos imobilizar? Até quando admitiremos essa anulação do feminino, o qual habita em nós, mulheres? Viver uma vida inteira cheia de amarras e de autocontrole é favorável para quem, afinal? Reprimir-se tem sido algo benéfico para a nossa saúde mental? Quem vai nos libertar, se não formos nós mesmas? Por que os padrões corporais femininos são tão inalcançáveis? Você já se perguntou por quem a indústria cosmética e farmacêutica é controlada? Por que a paz com o nosso corpo tem sido sinônimo de utopia? O que nos faz sentir necessidade de nos sentirmos ‘gostosas’, se nem alimento nós somos? Em falar em alimento, por que estamos alimentando a nossa alma com tanto ódio a nós mesmas? Por que, ao invés de nos unirmos, cada vez mais estamos nos separando e concorrendo, umas com as outras? O controle dos corpos femininos, através da mídia, das falas e dos olhares, está servindo a quem? Não sei se tais perguntas acima farão você se libertar; meu intuito é fazer você, pelo menos, refletir e não viver no automático.

Essa automaticidade é provocada por essa prisão em que vivemos há tanto tempo e já esquecemos que possuímos um poder. O exílio desse poder feminino acontece dentro do nosso próprio corpo. Tal poder não está fora de nós; não se encontra no cume do Monte Everest (montanha mais alta da Terra) ou nas Fossas Marianas (maior abismo oceânico do mundo); não está no Ponto Nemo (local mais distante de qualquer continente neste planeta em que vivemos) ou na Favela Dharavi (lugar mais densamente povoado). Está tão perto, tão próximo, mas tão negligenciado: o corpo feminino, ou seja, está aí, fazendo parte de sua constituição, do seu próprio ser! Mas, parafraseando o que Clarissa Pinkola Estés bem disse, fazendo o que os outros – diga-se, o patriarcado – querem, nós fomos deportadas de nós mesmas. O nosso corpo tem sido, esse tempo todo, o nosso próprio exílio…

Será que já não é tempo de nos libertarmos? Aliás, será que não já se passou a hora disso acontecer?! Fico com a frase de Mahatma Gandhi: A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência”. Desejo que possamos, todas, nos libertar, juntas, dessa prisão e ter essa consciência tão almejada por nós, feministas.

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Colunistas Destaque Natalia Santos

Para sempre felicidade: uma deliciosa surpresa.

Em 2021 a Netflix lançou o romance sul-africano “Para Sempre Felicidade” como sequência do sucesso “Happiness Is a Four Letter Word” (2016), dirigido por Thabang Moleya e roteirizado por Ayanda Halimana. No entanto, só esse ano tive o prazer de acompanhar essa deliciosa história sobre amizade, amor e sororidade.

Não é novidade que tento sempre trazer dicas de produções femininas, mas desta vez quis dar destaque a uma direção masculina que acerta o tom de um roteiro feminino. Além disso, me encantou ver um filme sul-africano chegando a uma plataforma de streaming mundialmente conhecida, dando voz e vez a um elenco predominantemente negro que pouco estamos acostumados a ver.

Para Sempre Felicidade é um drama romântico que acompanha três amigas em Joanesburgo que lutam por seus trabalhos, relacionamentos, e enfrentam as adversidades da vida, como problemas familiares. Os cenários e figurinos do longa são sofisticados e cheios de vida, destacando perfeitamente a personalidade decidida de suas protagonistas.

É o tipo de filme perfeito para dias em que precisamos nos sentir identificadas, dar boas risadas e sermos tocadas pelos momentos mais emocionantes, seguindo a pegada de “filmes conforto” que tanto adoramos, sendo também uma ótima oportunidade para conhecer e se surpreender com produções sul-africanas ao mesmo tempo em que nos divertimos.

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Ady Canário Colunistas Destaque

O vírus do genocídio racista não cessa

O Estado brasileiro, mais uma vez, reafirma seu projeto genocida contra a população negra, tendo matado Genivaldo de Jesus Santos em Umbaúba-Sergipe, após ser colocado no camburão de uma viatura policial, em 25/05, mesma data em que assistimos, há dois anos, o caso George Floyd nos Estados Unidos.

Ambos, Genivaldo e George, morreram asfixiados pelo forte vírus da violência racista estrutural em ações policiais.

Genivaldo deixa Maria Fabiana e seu filho, um menino de sete anos, que, com certeza, terá muita dificuldade de compreender o por quê do seu pai ter sido assassinado dessa forma, sem contar como fica a situação de existência, pois era Santos que sustentava a família.

Ele foi vítima de uma atrocidade, asfixiado até a morte pela polícia. São corpos negros como o dele que são alvo da política  genocida nesse país.

O genocídio racista fundamenta-se na racialidade e na discriminação injustificável que mata, direta e indiretamente, tendo como alvo principal: homens negros, mulheres negras (trans e cis), jovens negros e pessoas LGBT, sob o falso mito de que vivemos uma democracia racial.

O governo genocida racista,  com suas mãos  contra o povo negro, atua nas comunidades como agente naturalizador da morte contra o povo preto. Tudo movido pelo ódio e necropolítica.

São os negros tidos como suspeitos, bandidos e marginais por conta da condição de classe e raça. É esse tratamento dado pelo governo genocida às populações periféricas que resulta na invisibilidade, exclusão e morte.

Estamos de luto, que vira protesto, hoje e sempre. E enquanto o vírus do genocídio racista não cessa, não cessaremos. Vidas Negras importam, justiça por Genivaldo!

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Colunistas Destaque Luane Fernandes

Chacina da Vila Cruzeiro, câmara de gás em Sergipe e Necropolítica: quando o Estado determina quem pode viver e quem deve morrer

Texto de Luane Fernandes

Escrever sobre uma chacina não é fácil. Escrever sobre a guerra civil brasileira, menos ainda. Sim, vivemos uma guerra. E não é contra às drogas, pois os usuários continuam consumindo, comprando, muitas vezes em espaços públicos ou em seus condomínios fechados. Esse é um tema que perpassa diversos outros assuntos e eu escrevo sobre porque sou atrevida, pois é tão complexo e profundo que daria no mínimo uma monografia.

Na última semana, foram 23 mortos numa chacina na Vila Cruzeiro e a morte de Genivaldo de Jesus, um homem neuroatípico,  asfixiado numa câmara de gás improvisada pela PRF de Sergipe.

No primeiro caso, 11 dos 23 mortos não tinham envolvimento em processos criminais. De toda forma, embora a polícia alegue que a “operação” tenha sido um confronto, nenhum policial foi morto. Ainda assim, essa é mais uma ação ineficaz, pois somos o país em que policiais mais morrem e mais matam. E quem é que ganha com isso?

A polícia brasileira é totalmente destreinada para realizar o seu verdadeiro papel, proteger a população. As prisões, em teoria, deveriam ser ambientes de ressocialiazão. Mas, em muitos casos, se configuram como verdadeiros campos de concentração, e os encarcerados se unem de forma política e organizada, como resposta e resistência à esse sistema desumano. É aí que surgem as facções.

A polícia é recrutada e manobrada para ver corpos favelados, pretos e neuroatípicos como alvos que devem morrer. O holocausto brasileiro de Barbacena não acabou. Nos tornamos um campo de concentração a céu aberto, pois no nazismo de Hitler, no século passado, as vítimas morriam da mesma forma que Genivaldo de Jesus morreu: sem ar, em câmaras de gás.

Sem comida, sem vacina, de bala perdida ou muito bem endereçada, sem ar: a população negra, pobre e periférica brasileira está sendo dizimada. Esse é um projeto muito bem calculado da branquitude. Em acordo com a legislação e a constituição, não existe pena de morte no Brasil. Mas as “ações policiais” mostram que existe pena de morte se você for preto, pobre, favelado, marginalizado.

Em espaços elitizados, cenas como essas não ocorrem. Afinal, a colonização ainda reverbera… Deixou resquícios e funcionou muito bem no Brasil, os pretos continuam à margem, os quilombos viraram as favelas. Os navios negreiros viraram os camburões, as senzalas viraram as prisões. Angela Davis já afirmava que as prisões estão obsoletas e são mais uma ferramenta para manter os corpos pretos encarcerados. Nunca tivemos liberdade, nunca houve abolição.

A polícia brasileira virou uma máquina de moer gente, comandada pela lógica racista da burguesia brasileira. Os ataques brutais são mais uma forma de extermínio, querem acabar com a negritude e com tudo o que é negro. Querem embranquecer a população, um projeto elaborado desde 1500.

Os policiais não lucram com essas mortes, quem lucra é a instituição racista, muito bem estabelecida. Voltando ao conceito que trago no título desse artigo, necropolítica, de Achille Mbembe: no Brasil, a desumanização dos corpos negros e periféricos é tanta, que qualquer tipo de violência é legitimada, inclusive a morte.

A política de morte do Estado precisa ter um fim. Precisamos urgentemente combater o terrorismo, a guerra declarada contra pobre e preto instalada pelo sistema capitalista burguês. O policial é o capitão do mato de outros tempos escravocratas, em busca de um inimigo comum. Não é um caso isolado. Em 2019, 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil eram negras, mesmo sendo a maior parte da população, representando 56,8%. Os dados são do Atlas da Violência de 2021.

Educação, saúde, emprego, essas são respostas muito mais eficazes para combater a desigualdade social e a criminalidade. Uma guerra civil, na qual apenas corpos subalternizados e pretos morrem, jamais será a resposta. A militarização da polícia não é solução. O genocídio da juventude negra precisa ter fim. Parem de nos matar, parem de nos desumanizar.  O Estado não pode mais determinar que as balas encontrem os corpos pretos.

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Colunistas Destaque Suziany Araújo

Lei Maria da Penha: Como identificar se já fui vítima de violência doméstica?

A violência doméstica e familiar tem sido responsável pelo fim da vida de muitas mulheres brasileiras.  Esse tipo de violência quando não chega ao extremo, que é o feminicídio, deixa danos, que são os traumas ou marcas que ficam no corpo e na memória de quem vivenciou. Em alguns casos a violência deixa de ser psicológica, evolui para física e, consequentemente, resulta em crime de feminicídio.

O abuso nas relações segue um ciclo, que muitas vezes se inicia com palavras de xingamentos, proibições do uso de uma determinada roupa e de não poder entrar em contato com amigas (os) ou familiares. Parece surreal, mas isso compõe a rotina de quem está inserido no ciclo de violência doméstica e familiar, tendo em vista que o agressor sente a necessidade de manter o controle sobre a companheira, sobre suas escolhas, que vão desde a escolha da cor de um batom ao contato com outras pessoas.

A Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, conhecida popularmente pelo nome da mulher que impulsionou a sua criação, a Maria da Penha Fernandes, é sem dúvida um instrumento essencial no combate as práticas de violência contra mulher. Antes da existência dessa Lei algumas das penas eram revertidas em cestas básicas, considerando que a violência doméstica era tratada como crime de menor potencial ofensivo e enquadrada na Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais).

Da sua aprovação aos dias atuais, algumas alterações importantes já foram feitas. Recentemente os ministros da 6ª Turma do Tribunal de Justiça de São Paulo entenderam, por unanimidade, que os mecanismos de proteção previstos na legislação devem ser igualmente assegurados, também, as mulheres trans.

O caso analisado pelo STJ era de uma mulher transexual constantemente agredida pelo pai que não aceitava o fato de ela se identificar com outro gênero. A decisão cabe para o caso especifico, mas estende-se para demais situações semelhantes.

Conforme afirmou o relator, o ministro Rogerio Schietti Cruz: “Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.

O fato é que, mesmo completando mais de uma década, mulheres desconhecem os tipos de proteção prevista na lei e essa falta de conhecimento ocasiona a aceitação de determinadas condutas por parte do parceiro sem saber que se trata muitas vezes de crime.

Por meio desse texto, seguem os cinco tipos de violência doméstica e familiar que são previstos na Maria da Penha e alguns exemplos práticos do cotidiano.

A violência física, que compreende qualquer ato de ação ou omissão que coloque em risco a integridade física da mulher. Negligenciar prestar socorro à mulher em situação de risco. Também fica configurado a violência física, neste caso, por ato de omitir assistência ou socorro a vítima. (Lei 11.340/06, art. 7°, I). Quando seu companheiro empurra você ou aperta seu braço, são exemplos de violência física.

A violência psicológica, configura-se como qualquer conduta que viole sua condição emocional, causando-lhe dano. Situações que diminua a autoestima, que prejudique o desenvolvimento pessoal, ou que degrade suas emoções, são exemplos dessa forma de violência. Além disso, qualquer ação que exponha ao constrangimento, humilhe, manipule, insulte, ridicularize ou que tenha como objetivo controlar suas ações ou crenças. (Lei 11.340/06, art. 7°, II). Os exemplos mais comuns são as humilhações, xingamentos, que pode acontecer em ambiente público, como também a vigilância constante ao controlar redes sociais ou com quem a mulher pode falar.

A violência Sexual, quando a mulher é obrigada a manter contato sexual (físico ou verbal) ou a participar de qualquer relação sexual de forma forçada, através de ameaça direta ou indireta, por meio de coerção, chantagem, manipulação, ameaça suborno ou qualquer outro mecanismo que tenha como objetivo a violação da intimidade da mulher (Lei 11.340/06, art. 7°, III).

Alguma vez se sentiu forçada pelo marido ou namorado a manter relação sexual? Entenda que qualquer ato que obriga a mulher a manter relações contra a sua vontade é considerado um estupro. O estupro marital é uma realidade ainda pouco discutida, mas de acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), uma em cada três mulheres no mundo, sofreu algum tipo de constrangimento por parte de companheiros. Outro exemplo desse tipo de violência é quando o marido impede a esposa de fazer uso de métodos contraceptivos.

A violência patrimonial ocorre quando acontece a subtração, a perda, a destruição ou a retenção dos bens, objetos de valores, instrumentos pessoais além de documentos. Nessa situação o homem pega objetos de valor patrimonial pertencente ao casal ou somente à mulher e o destrói. Além desses atos, é comum em alguns processos de divórcio a sonegação de bens que são devidos à meação. (Lei 11.340/06, art. 7°, IV).

A violência moral é caracterizada pelas situações que envolvem calúnia, difamação ou injúria, aas quais a mulher foi submetida (Lei 11.340/06, art. 7°, V). Quando o homem realiza atitudes como desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir, expor a vida intima ou acusar a mulher de atos como traição, são algumas das atitudes que caracterizam essa forma de violência.

Não há dúvida de que partes dessas formas de violência estão presentes em muitas casas brasileiras e nas mais diferentes regiões do Brasil. Contudo, entre tantos fatores, a falta da independência financeira tem levado essas mulheres a permanecerem num ciclo de violência.

É necessário levar conhecimento sobre práticas e condutas que são tipificadas como crime de violência doméstica. A falta de conhecimento básico transforma atitudes criminosas (de violência doméstica) em mera conduta comum. Para que esse conhecimento chegue a todas as mulheres, é fundamental a promoção de politicas públicas de enfrentamento a violência domestica e que essas politicas, que em parte já são aplicadas, não fiquem apenas no campo da repressão, mas que possam ganhar cada vez mais força no campo educacional.

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AUTISMO E O MITO DA MÃE GUERREIRA

Estamos no mês dedicado às mães. Tudo e tod@s voltados a homenageá-las em suas diversas versões que hoje se configuram na sociedade: mãe solo, avó que é mãe, quem gestou, quem adotou, quem teve parto normal, quem teve cesariana, mãe de um ou de vários, quem amamentou ou deu fórmula; quem teve companheiro (a) no processo, quem voltou a trabalhar ou quem ficou em casa, quem ainda está na expectativa, quem está aprendendo a lidar com o novo corpo, para aquelas que desafiam padrões, a que se despediu do filho cedo demais, para as mães que já se foram… inúmeros contextos com a unidade de uma coisa comum, o amor pela cria.

O destaque de hoje fica com uma que não citei acima, a mãe atípica, nomenclatura utilizada para mães de filhos com alguma deficiência. Hoje as necessidades dessas genitoras e suas famílias é enorme, falaremos um pouco sobre a desmistificação de um falso elogio que ouvimos comumente, o da “mãe guerreira”. Muitas vezes a pessoa que o fala não consegue compreender a dimensão desse termo, colocando a mulher em um papel de super-heroína, inatingível, como se esta não fosse como qualquer outra que cuida de seus filhos e tem uma jornada exaustiva.

Algumas vezes, por conta de inúmeras atribuições (que nunca daremos conta), nos toma um sentimento de frustração, culpa e exaustão por um trabalho que é diário e ininterrupto e a irritação e o choro vêm externalizados em máxima potência. Rejeito esse tipo de nomenclatura pois não creio ser eu (ou as mães que estão neste patamar também) redentoras de algo que não está ao nosso alcance. O que queremos é que propósitos maiores, como as políticas públicas, também apoiem as genitoras e suas famílias na missão que é lidar com as consequências da deficiência de nossos filhos. A missão de toda sociedade é subsidiar e direcionar aplicando práticas já existentes em lei, o processo de inclusão não é só aceitar, requer conhecimento, sensibilização e, principalmente, acolhimento.

Enquanto permearmos esse estereótipo da “mãe guerreira” estaremos adoecendo tantas mulheres que se desdobram para suprir inúmeros papéis, muitas vezes sem rede de apoio nem mesmo para autocuidado e lazer, considerados elementos básicos que todo ser humano deveria ter. O estado de alerta é tanto que já ouvi relatos comoventes de mães solo que não conseguem se ausentar nem mesmo para comprar um pão na padaria da esquina, ou até o sono não era dado completo por ter que conter inúmeras crises convulsivas e de insônia. As consequências desses fatores a longo prazo são devastadoras: crises de pânico, ansiedade e depressão são apenas os mais comuns acometimentos de um cuidador, a sobrecarga é intensa, portanto, não há nada de “guerreiro=forte” nisso.

O mito da mãe especial escolhida por Deus, sem dúvida, é o que mais dói. Tenho certeza que Ele tem muitos propósitos em nossas vidas, mas não coaduno com a ideia de que sofrimento, pesar e adoecimento sejam dados pelo Criador. Acredito em espiritualidade permeada de amor, compaixão, perdão, merecimento. Justificar e romantizar as deficiências e seus cuidadores tira o foco do que de fato importa: inclusão e equidade.