Hoje 20 de novembro, data em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, a revista Matracas conta a história de Graicy Karen da Cunha, 31 anos, mulher, negra, filha adotiva de pais brancos, mãe solo de dois filhos, administradora por formação e trancista por opção. Em seus relatos ela conta como sua vida foi transformada a partir das tranças afros. Para ela que desde muito pequena foi submetida a tratamentos capilares para alisar os cabelos, poder viver o natural dos seus cabelos foi a maior transformação de sua vida.
“Eu cresci em escola de pessoas brancas e de poder aquisitivo maior. Então até os meus 15 anos eu lembro que eu era ou uma das duas ou a única pessoa negra da sala. Sempre percebi que a sociedade vê como uma mulher bela, aquela que tem a pele branca e os cabelos lisos. Eu me sentia perdida nesse mundo que não era meu e achando que para ser aceita, eu precisava usar produtos químicos no cabelo para que ele ficasse liso”. Declarou.
A história de Graicy começa com o relato de uma vida inteira sendo submetida a tratamentos para alisar os cabelos com o pretexto de ser aceita por uma sociedade racista e preconceituosa. Porém, ainda adolescente, conseguiu virar a mesa, se rebelar e assumir a naturalidade dos seus cabelos crespos. Uma decisão que não mudou apenas a sua imagem, mas segundo ela, promoveu o resgate de sua própria identidade. “Pelo fato de não me reconhecer em um mundo do qual eu não fazia parte e não me identificava, eu era uma pessoa introspecta, tímida. Com 16 anos minha mãe me levava nos salões de beleza para alisar meu cabelo. Eu não aguentava mais, era sempre uma tortura para mim. Hoje eu tenho pavor de salão de beleza”, destacou.
Graicy se refere com muito carinho ao esforço que sua mãe fazia com a intenção que a filha fosse inserida na sociedade, sempre a levando para os salões para manter os cabelos lisos. “Um dia a minha mãe me levou até uma pessoa que ela tinha ficado sabendo que trançava cabelo e foi o dia mais importante e feliz da minha vida. Foi quando me senti livre e encontrei minha verdadeira identidade”, relatou.
A partir de então, Graicy aprendeu e passou a trançar o próprio cabelo e afirma que as tranças para uma mulher, principalmente se ela for negra, não é apenas um penteado, simboliza poder, libertação. “As tranças me deram liberdade e poder, eu me sinto tão forte com minhas tranças que passei a pesquisar sobre a origem das tranças, o que elas significam, foi como um reencontro com minhas raízes”, comentou.
A DESCOBERTA DE UMA PROFISSÃO
Formada em Administração, Grayce foi fazer estágio em uma empresa de comunicação e ao fim do estágio veio a contratação. Em menos de um ano foi convidada a assumir o cargo de produtora e por fim passou a diretora de produção. “Essa foi uma fase profissional pra mim muito importante, porém, difícil. Eu lembro que nos primeiros dois anos diretora de produção eu ia trabalhar chorando. Na ocasião, a maioria das pessoas com quem eu trabalhava eram homens e muitos eram irredutíveis às minhas ordens e isso me deixava muito pra baixo. Porém resisti por muito tempo e sou muito grata pelas oportunidades que me foram dadas porque me renderam grandes aprendizados”, Relata.
Grayce conta que assumir um cargo de liderança e o fato de ter que comandar um grupo composto, em sua maioria, por homens e os problemas com a não aceitação de suas ordens e opiniões a levaram a uma depressão. “Foi muito difícil, mas consegui superar. Eu lembro de casos de pessoas que chegavam para ser entrevistadas e me pediam para eu servir água e cafezinho me confundindo com a profissional que realizava esse serviço, mas nunca me incomodei e trabalhei nessa empresa por 10 anos”, detalhou.
Durante o trabalho na empresa de comunicação Graicy foi incentivada a fazer tranças em outras pessoas, colegas de trabalho. “As pessoas viam que eu tinha habilidade para fazer tranças e me pediam para trançar os cabelos delas e foi lá que consegui minha primeira cliente”, comentou. A partir de então, quando saiu da empresa de comunicação já tinha planos para trabalhar fazendo tranças e montar seu próprio espaço.
VIDAS RESGATADAS ATRAVÉS DAS TRANÇAS
Hoje, Graicy é trancista profissional e montou um espaço para atender as clientes em sua residência. É o “Ébanos Tranças”. Além de trançar o próprio cabelo e de ter conquistado uma lista de clientes, ainda ministra oficinas para mulheres que residem nas periferias, ensinando a elas a fazer tranças e diz ser um trabalho que faz com muito prazer. “Eu descobri essa minha habilidade a partir da minha necessidade de trançar o meu próprio cabelo e hoje esse é o meu trabalho. Eu estou tendo a oportunidade de conhecer histórias de mulheres incríveis, como as mulheres que fazem tratamento de câncer e chegam aqui quase sem cabelo e quando eu tranço o cabelo delas e vejo a reação após o resultado, isso pra mim não tem preço”, comentou emocionada.
O contato com as clientes que fazem tratamento de câncer surgiu a partir de amizades com pessoas que trabalham no AAPCM. Graicy conta que cada história que chega até ela é uma lição de vida. “Eu tenho cliente que chega aqui cheia de marcas e cicatrizes e depositam no meu trabalho a esperança de resgatar a autoestima e isso é uma responsabilidade muito grande e uma experiência muito importante pra mim como profissional e mulher. Quando eu consigo devolver para essa mulher um pouco de dignidade não há nada que pague isso”, detalhou
A trancista conta que ainda existe muito preconceito com as mulheres que decidem trançar os cabelos. “A intolerância com as mulheres que decidem ser o que querem ser é absurda. Tem casos aqui de mulheres que dizem que os maridos não aceitam que elas trancem os cabelos e quando elas decidem fazer mesmo contra a vontade deles sofrem retaliações dentro de casa”, contou.
As histórias entre elas, são repassadas através de um grupo de Whatsapp onde elas compartilham experiências e relatam que o preconceito com quem usa trança afro ainda é muito presente. “Eu conheço uma advogada que já manifestou o desejo de trançar os cabelos, mas não fez por medo de sofrer represália em seu trabalho”, exemplificou.
HISTÓRIA – Manipular o cabelo com tranças é técnica histórica, presente em muitas nações africanas. O princípio é simples, único, entrelaçamento de três mechas de cabelo a partir do couro cabeludo. Mas o simbolismo vai além do movimento e da beleza. Representa poder, luta, resistência ostensiva, informação, sistema de linguagem.