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Ady Canário Colunistas Destaque

Linguagem inclusiva, consciência negra e racismo à brasileira: mulheres negras reexistem

“Assim, ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, racistas são os outros’  (Kabengele Munanga).

 

Entre adolescência e juventude, estava entrando numa escola de informática em Mossoró e no mural da recepção desse lugar nos deparamos com um cartaz no mural contendo mais de vinte frases pejorativas com as pessoas negras: “negro não é gente”, “negro só é gente quando bate na porta e pergunta tem gente” e, ao final, dizia: “se cuide negão que a lei áurea foi assinada a lápis”. Chamada a atenção do proprietário para o sentido de tal linguagem, foi evidenciado que se tratava de uma brincadeira. Essas são apenas algumas frases de cunho racista e de constrangimento causado pelo preconceito racial e discriminação racial. É um dos modos do racismo brasileiro, que tende a naturalizar a negação do racismo no dizer que: foi apenas uma “piada” e uma “brincadeira”. Isso se chama racismo recreativo, usar da linguagem como piadinha para ofender o negro.

 

No Brasil é celebrada a luta e resistência negra desde o regime escravista, assim, o Dia da Consciência Negra faz reverência a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, símbolo maior da história, e localizado na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas um dos maiores e movimento de reexistência. Nesse novembro de 2021, o Dia da Consciência Negra completa meio século. Idealizado pelo movimento negro em 1970 em Porto Alegre-RS do Grupo Palmares, no legado de Oliveira Silveira, visando enaltecer a luta de Zumbi dos Palmares. Em 1978, na Bahia, o Movimento Negro Unificado (MNU) propôs esse dia pela memória da resistência negra e ressignificação do 13 de maio. Em 2003, com a Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, o Dia da Consciência Negra entrou para o calendário escolar.  Em 2011, foi instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra pela Lei 12.519, sendo feriado por leis específicas. 

 

Ao longo desses anos, os desafios continuam na luta contra o racismo à brasileira, a discriminação racial e a desigualdade racial.  Nossa reflexão é compreender o potencial desse marco para uma linguagem inclusiva com consciência negra, sobretudo para as mulheres que resistem nessa luta por visibilidade e representatividade. No Brasil, o racismo se assenta na sua própria negação. Segundo dados “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil” (2019), mulheres negras (pretas ou pardas) estão em situação desvantajosa. Por exemplo, no Brasil, a diferença salaria onde recebem menos da metade do que os homens brancos. Tendo sobre elas a maior carga de atividades em trabalhos domésticos, dentre outros não remunerados, embora apresentem melhores indicadores educacionais que os homens. Na representação nos espaços de poder, em 2018, as mulheres negras (pretas ou pardas) “constituíram 2,5% dos deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores. Consideradas apenas as mulheres eleitas, foram 16,9%, 31,1% e 36,8%, respectivamente”. 

 

De tudo isso, vemos o quão é necessária uma consciência negra como prática de luta e resistência, pois “Numa sociedade racista não basta não ser racista é preciso ser antirracista”, como nos diz a filósofa Ãngela Davis. A desconstrução do racismo é um tema que em todo tempo precisamos afirmar e em toda transversalidade que nos impõe. Assim, mulheres negras resistem e as brancas também, lutando por uma sociedade mais justa e igualitária. Ressaltamos todo um processo que se constitui na linguagem, memória e história, em reconhecer a nossa história e as contribuições para a construção da cidade/país. Precisamos sobremaneira de uma consciência antirracista e inclusiva para que tenhamos uma sociedade livre, sem preconceito e sem discriminação. Esperamos por mais políticas públicas de promoção da igualdade racial na sociedade brasileira.

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Colunistas Fernanda Valéria

Leituras da vida: a indevida apropriação do termo liberdade de expressão na disseminação do ódio

Quando foi que adquirimos o direito de ofender o outro com o entendimento de que a opinião umbilical está resguardada sob a proteção da liberdade de expressão? Eu mesma respondo: nunca. Não vou aqui citar os casos recorrentes de crimes de ódio que se acham protegidos na aba deste direito constitucional para evitar dar palco aos protagonistas e reverberar tais  discursos.
 
Tendo a curiosidade de saber de que episódios da vida real estamos falando, procure os casos do jogador de vôlei, Maurício Souza, e tudo o que rolou na internet após o anúncio da bissexualidade do personagem Superman. Vou dar um spoiler aos desavisados, Superman não existe.
 
A Constituição Brasileira, no artigo V, considerado o mais importante da nossa Carta Magna, em se tratando dos Direitos e Garantias Fundamentais, diz que “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente da censura ou licença;”
 
No entanto, não existe nenhum direito irrestrito, embora alguns nunca tenham atingido tais restrições. Um dia ou outro, os deveres e responsabilidades de cada um podem ser acionados, basta que o indivíduo em exercício dos seus direitos interpele nos dos outros, é o que o diz o inciso X, em outras palavras, claro, do mesmo artigo. “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
 
 Não quero entrar na complexidade deste limítrofe, porque não sou da área do Direito, e o assunto de que vamos refletir já deveria ter, há tempos, ter ultrapassado a complexidade da polêmica e ter o seu significado consensual: liberdade de expressão! No entanto, uma interpretação equivocada do termo, ou mesmo, mal-intencionada, o usa indevidamente na prática disseminativa do ódio. Os ecos desse sentimento contaminam ou tiram da dormência pensamentos semelhantes, e, aos poucos, uma legião de odiadores da mesma causa se juntam em propagação ainda maior e perigosa.
 
Portanto, o direito à opinião é garantido desde que ela não cause um dano moral, material ao outro,  está aqui o limite. Mas é ainda pior quando ela ultrapassa a característica opinativa e recai dentro da criminalidade. Racismo e homofobia podem dar entre 2 a 5 anos de reclusão segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). O Senado também já aprovou o Projeto de Lei que torna a homofobia um crime.
 
Apesar disso, a sociedade ainda insiste em se manter conservadora. Após comentários homofóbicos, o jogador já citado ganhou milhares de novos seguidores e até mesmo já foi cogitado a concorrer às eleições representativas do Legislativo. Sabemos: qualquer discurso é uma prática social de persuasão mental, alguns exercem maior influência (para usar um termo da moda) que outros. E sobre o exercício e uso dessa persuasão devemos refletir criticamente, pois a receita do caos está pronta: um odiador com voz agrupa semelhantes e alguém se aproveita da legião em uso político, local simbólico e também atuante de tomadas de decisões que interferem na sociedade.
 
Não é por acaso que, desde 2001, temos um projeto que torna a homofobia crime tramitando na Câmara Federal, esperando ser colocado em andamento. Todo esse tempo de espera vai inclusive na contramão tradicional da Casa que já formou várias leis em proteção às minorias, mas devemos lembrar da representatividade congressista feita por homens héteros, conservadores e defensores de uma família tradicional como única, dificultando as discussões dessas pautas.
 
Por isso, quando discurso e poder se casam para prejuízos da dignidade humana dos cidadãos, precisamos levantar a voz e acionar o que de direito temos para impedir.  Um pedido de desculpas é muito leve para o prejuízo de uma ação criminosa discursiva. É como dito popular diz: palavras soltas, são como penas de galinhas ao vento, não dá para recuperar.
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Destaque Gerais

Graicy Cunha – e o poder transformador das tranças

Hoje 20 de novembro, data em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, a revista Matracas conta a história de Graicy Karen da Cunha, 31 anos, mulher, negra, filha adotiva de pais brancos, mãe solo de dois filhos, administradora por formação e trancista por opção.  Em seus relatos ela conta como sua vida foi transformada a partir das tranças afros. Para ela que desde muito pequena foi submetida a tratamentos capilares para alisar os cabelos, poder viver o natural dos seus cabelos foi a maior transformação de sua vida.

“Eu cresci em escola de pessoas brancas e de poder aquisitivo maior. Então até os meus 15 anos eu lembro que eu era ou uma das duas ou a única pessoa negra da sala. Sempre percebi que a sociedade vê como uma mulher bela, aquela que tem a pele branca e os cabelos lisos. Eu me sentia perdida nesse mundo que não era meu e achando que para ser aceita, eu precisava usar produtos químicos no cabelo para que ele ficasse liso”. Declarou.

A história de Graicy começa com o relato de uma vida inteira sendo submetida a tratamentos para alisar os cabelos com o pretexto de ser aceita por uma sociedade racista e preconceituosa. Porém, ainda adolescente, conseguiu virar a mesa, se rebelar e assumir a naturalidade dos seus cabelos crespos. Uma decisão que não mudou apenas a sua imagem, mas segundo ela, promoveu o resgate de sua própria identidade. “Pelo fato de não me reconhecer em um mundo do qual eu não fazia parte e não me identificava, eu era uma pessoa introspecta, tímida. Com 16 anos minha mãe me levava nos salões de beleza para alisar meu cabelo. Eu não aguentava mais, era sempre uma tortura para mim. Hoje eu tenho pavor de salão de beleza”, destacou.

Graicy se refere com muito carinho ao esforço que sua mãe fazia com a intenção que a filha fosse inserida na sociedade, sempre a levando para os salões para manter os cabelos lisos. “Um dia a minha mãe me levou até uma pessoa que ela tinha ficado sabendo que trançava cabelo e foi o dia mais importante e feliz da minha vida. Foi quando me senti livre e encontrei minha verdadeira identidade”, relatou.

A partir de então, Graicy aprendeu e passou a trançar o próprio cabelo e afirma que as tranças para uma mulher, principalmente se ela for negra, não é apenas um penteado, simboliza poder, libertação. “As tranças me deram liberdade e poder, eu me sinto tão forte com minhas tranças que passei a pesquisar sobre a origem das tranças, o que elas significam, foi como um reencontro com minhas raízes”, comentou.

A DESCOBERTA DE UMA PROFISSÃO

Formada em Administração, Grayce foi fazer estágio em uma empresa de comunicação e ao fim do estágio veio a contratação. Em menos de um ano foi convidada a assumir o cargo de produtora e por fim passou a diretora de produção. “Essa foi uma fase profissional pra mim muito importante, porém, difícil. Eu lembro que nos primeiros dois anos diretora de produção eu ia trabalhar chorando. Na ocasião, a maioria das pessoas com quem eu trabalhava eram homens e muitos eram irredutíveis às minhas ordens e isso me deixava muito pra baixo. Porém resisti por muito tempo e sou muito grata pelas oportunidades que me foram dadas porque me renderam grandes aprendizados”, Relata.

Grayce conta que assumir um cargo de liderança e o fato de ter que comandar um grupo composto, em sua maioria, por homens e os problemas com a não aceitação de suas ordens e opiniões a levaram a uma depressão. “Foi muito difícil, mas consegui superar. Eu lembro de casos de pessoas que chegavam para ser entrevistadas e me pediam para eu servir água e cafezinho me confundindo com a profissional que realizava esse serviço, mas nunca me incomodei e trabalhei nessa empresa por 10 anos”, detalhou.

Durante o trabalho na empresa de comunicação Graicy foi incentivada a fazer tranças em outras pessoas, colegas de trabalho. “As pessoas viam que eu tinha habilidade para fazer tranças e me pediam para trançar os cabelos delas e foi lá que consegui minha primeira cliente”, comentou. A partir de então, quando saiu da empresa de comunicação já tinha planos para trabalhar fazendo tranças e montar seu próprio espaço.

VIDAS RESGATADAS ATRAVÉS DAS TRANÇAS

Hoje, Graicy é trancista profissional e montou um espaço para atender as clientes em sua residência. É o “Ébanos Tranças”. Além de trançar o próprio cabelo e de ter conquistado uma lista de clientes, ainda ministra oficinas para mulheres que residem nas periferias, ensinando a elas a fazer tranças e diz ser um trabalho que faz com muito prazer. “Eu descobri essa minha habilidade a partir da minha necessidade de trançar o meu próprio cabelo e hoje esse é o meu trabalho. Eu estou tendo a oportunidade de conhecer histórias de mulheres incríveis, como as mulheres que fazem tratamento de câncer e chegam aqui quase sem cabelo e quando eu tranço o cabelo delas e vejo a reação após o resultado, isso pra mim não tem preço”, comentou emocionada.

O contato com as clientes que fazem tratamento de câncer surgiu a partir de amizades com pessoas que trabalham no AAPCM. Graicy conta que cada história que chega até ela é uma lição de vida. “Eu tenho cliente que chega aqui cheia de marcas e cicatrizes e depositam no meu trabalho a esperança de resgatar a autoestima e isso é uma responsabilidade muito grande e uma experiência muito importante pra mim como profissional e mulher. Quando eu consigo devolver para essa mulher um pouco de dignidade não há nada que pague isso”, detalhou

A trancista conta que ainda existe muito preconceito com as mulheres que decidem trançar os cabelos. “A intolerância com as mulheres que decidem ser o que querem ser é absurda. Tem casos aqui de mulheres que dizem que os maridos não aceitam que elas trancem os cabelos e quando elas decidem fazer mesmo contra a vontade deles sofrem retaliações dentro de casa”, contou.

As histórias entre elas, são repassadas através de um grupo de Whatsapp onde elas compartilham experiências e relatam que o preconceito com quem usa trança afro ainda é muito presente. “Eu conheço uma advogada que já manifestou o desejo de trançar os cabelos, mas não fez por medo de sofrer represália em seu trabalho”, exemplificou.

HISTÓRIA – Manipular o cabelo com tranças é técnica histórica, presente em muitas nações africanas. O princípio é simples, único, entrelaçamento de três mechas de cabelo a partir do couro cabeludo. Mas o simbolismo vai além do movimento e da beleza. Representa poder, luta, resistência ostensiva, informação, sistema de linguagem.