Categorias
Colunistas Destaque Pâmela Rochelle

QUAL A COR DO VERÃO?

“Verão, tempo bom de ser feliz”, já dizia certa música famosa dos anos 2000. Uma das  estações do ano mais aguardadas por nós brasileiros, certamente, é o verão. Entre os motivos estão  as festas de fim de ano, as férias escolares e férias de trabalho (para uma boa parcela da  população), além do clima propício para praia, piscina, viagens e curtição.  

Em um país miscigenado que colhe até hoje os amargos frutos da teoria do  embranquecimento e da ideia de democracia racial, ambas envoltas pelo falso manto da  cordialidade étnico-racial, me parece interessante refletir e questionar: qual a cor do verão? 

Enquanto campanhas publicitárias, agências de turismo, programas de TV e as redes  sociais exibem corpos bronzeados, “morenos”, pardos e até pretos (embora em menor escala),  para falar da estação mais quente do ano, a realidade nas grandes praias e centros turísticos é  diferente. 

A região nordeste, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) possui  o maior percentual de pessoas autodeclaradas pretas no nosso país, os sujeitos pardos, por sua  vez, representam mais de 60% da população. No entanto, embora os números, basta passar o olhar  sobre as grandes praias e destinos turísticos da região para perceber a disparidade em relação a  presença de brancos, pretos e pardos, usufruindo desses espaços. Enquanto a maioria dos turistas  e pessoas que buscam descansar e aproveitar as férias são brancas (ainda que com o bronze em  dia), a maioria dos garçons, vendedores, atendentes, ambulantes e quituteiros é formada por  sujeitos pretos e pardos. Diante desse cenário é impossível negar como a dimensão política  perpassa e estrutura a presença e ausência de corpos negros em espaços de lazer. 

Estar nesses espaços usufruindo e se fazer ver neles, para nós, sujeitos/as negros/as, é  desafiar a lógica racista da branquitude que nos delega apenas subespaços de servidão, mais que  isso, é demarcar nossa existência e de todo um povo que foi escamoteado para longe dos grandes  centros. É gritar, ainda que em silêncio, que nós existimos tanto quanto os demais, reafirmando que nos faremos resistência até que a justiça social seja estabelecida. 

Se o verão tem uma cor ela é preta, no entanto, infelizmente, não pelos motivos certos.  Que um dia o verão possa ser de todas as cores!

Categorias
Colunistas Destaque Pâmela Rochelle

NECROPOLÍTICA – A MÃO NADA INVISÍVEL DO ESTADO

Não é novidade alguma que os Estados modernos adotam em sua lógica de funcionamento, o uso da força e até mesmo da violência como modo de promover políticas de segurança para a sociedade. No entanto, tais políticas que tem em seu discurso a promessa pela manutenção da paz por vezes acabam contribuindo para a segregação de determinados grupos sociais, ao passo em que favorecem e reforçam estereótipos e até mesmo o extermínio destes grupos.

Nesse contexto, um dos principais questionamentos que surge é se o Estado, por meio das suas instituições, possui ou não o direito de matar? É, pois, a partir desta problemática que a questão da Necropolítica se estabelece.

O termo Necropolítica, cada vez mais popular nos debates públicos e nas mídias digitais, trata-se de um conceito desenvolvido pelo filósofo Achile Mbembe – intelectual, teórico político, historiador e professor universitário camaronês -, o qual designa a produção e inserção de políticas de morte voltadas para uma determinada parcela da população. 

O filósofo considera como necropolíticas as “formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte que reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror” (MBEMBE, 2017, p. 151). O que no caso do Brasil estaria diretamente ligado a questão do racismo de Estado, uma vez que é sobre os sujeitos pretos e pardos que as políticas de desvalorização da vida recaem de modo mais contundente. Fato rotineiro que pode ser visualizado a todo instante nos portais de notícias: “74% das pessoas que tiveram amigo ou parente morto pela polícia são negras” (Portal Mundo Negro); “Kathlen Romeu: negros são 3 vezes mais vitimados por homicídios do que brancos” (G1); “Negros correspondem a 63% das pessoas abordadas por policiais no Rio de Janeiro” (CNN Brasil); “Vendedor de balas negro é morto por PM…” (SBT News); “Mulheres negras sofrem mais com a violência obstétrica” (Folha de São Paulo);“Crianças da periferia de SP morrem 23 vezes mais que as do centro, diz estudo…” (Carta Capital).

Tais políticas se constituem e operam promovendo a destruição de determinadas populações por meio de uma desumanização dos sujeitos, para os quais se destinam condições de vida muito próximas ao estatuto de mortos-vivos. O que pode ser observado facilmente se determos nosso olhar sobre as “zonas de morte” contemporâneas, entre as quais tem destaque as periferias do país, nelas o derramamento de sangue (de criminosos ou inocentes) acontece diariamente à luz do sol sob a égide de um combate ao crime que nunca dá resultados ou cessa. Porém, se os criminosos moram em bairros nobres e são brancos a abordagem é diferente ou nem existe.

O Estado Brasileiro, na figura da polícia e do poder judiciário, legitima a morte e a aniquilação dos sujeitos negros cotidianamente de diferentes formas, sendo a dita “guerra às drogas” um dos instrumentos mais eficazes dessa necropolítica, que além de matar sob o amparo do Estado também leva a um crescente encarceramento em massa. Os dados comprovam. O Brasil figura hoje entre as cinco maiores populações carcerárias do mundo, estando em terceiro lugar com mais de 773.000 encarcerados, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DPN). Desse número, cerca de 65% é composto por pretos e pardos.

Entender o que são e como operam é o primeiro passo para se combater as necropolíticas nacionais, que em sua maioria destinam-se aos sujeitos negros, embora também afetem outras minorias. Essas políticas de morte que determinam quais vidas são passíveis de preocupação e quais podem ser descartadas são uma realidade brutal que assola nosso país, sobretudo, em tempos sombrios de um governo que flerta com diferentes formas de autoritarismo e violência. É preciso conhecer a realidade que nos cerca para assim questioná-la e combatê-la. 

Somos todos humanos, mas nem todos são tratados assim.

 

UBUNTO.

Referências

Mbembe, A. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. Rio de Janeiro: n-1 ediçoes. 

Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa (Portugal): Antígona editores refractários.

Categorias
Colunistas Destaque Pâmela Rochelle

“EU SINTO TANTA RAIVA…” – Moïse e a passividade brasileira diante da dor preta

“Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano” (IVANA LAY – mãe de Moïse, assassinado no RJ).

Parafraseando James Baldwin, pergunto: como ser negra, politicamente consciente, viver no Brasil, e não sentir raiva o tempo todo? O relato da mãe de Moïse Kabamgabe, 25, espancado até a morte em seu local de trabalho por cobrar o mínimo (seu salário atrasado), me toca em lugares perturbadores. Sou atravessada pela raiva em sua forma mais pura, mais brutal. Raiva fruto da revolta. Raiva que me faz por um segundo perder minha humanidade ao desejar que a mesma violência (ou pior) recaia sobre quem a praticou. Raiva que por fim, se torna força e combustível para a luta.

Para além da raiva, como seu alicerce, outro sentimento que me alcança é a dor. Me dói como se eu fosse a própria mãe de Moïse (falo isso sem nenhum exagero ou pretensão), embora nem tenha idade. No entanto, como mulher negra que vive nesse país e se depara com atrocidades como essa sendo expostas todos os dias nas redes sociais e nas esquinas, me ligo a sua dor como se fosse minha, porque pode ser minha, porque na verdade é nossa. É a dor preta. A dor de ser massacrada(o), torturada(o), perseguida(o), humilhada(o), espancada(o) e morta(o), de diferentes formas, todos os dias em praça pública, no meio da praia ou do shopping, na rua ou em casa, no bairro chique ou na periferia. É a dor que só o racismo pode causar. É a dor que só quem é negro em um país que odeia os negros pode sentir.

Em meio a dor, raiva e revolta, me choca a inércia de uma sociedade que assiste passivamente um jovem ser agredido e morto. Qual o valor da vida? Ou melhor, que vidas tem valor? Quais corpos são considerados dignos de choro e atenção?

No ensaio “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, Butler (2020) afirma que as intersecções de gênero, raça e classe incidem sobre nossos julgamentos acerca de quais vidas têm direito de serem vividas e, consequentemente, quais são passíveis de morte. Nos termos da autora, se uma vida é carente de valor, podendo ser facilmente destruída sem consequências ou revolta, significa que ela nunca foi plenamente considerada como vida, portanto, não se fez chorável. Em nosso país é possível afirmar que os corpos pretos, quanto mais pretos e pobres, sentem o peso de não serem choráveis aos olhos do outro, mais que isso, carregam em sua carne o selo de matáveis.

Moïse é só mais jovem preto, pobre e imigrante ASSASSINADO a troco de nada, ao tentar sobreviver nesse país que vende o mito da democracia racial e da cordialidade, mas na prática coloca um alvo constante em nosso peito. As estatísticas estão aí para provar: A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil (ONU BRASIL, 2017); Em 2018 os negros representavam 75,7% das vítimas de homicídio; A taxa de assassinatos de negros aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto que a de não negros diminuiu 12,9% nesse mesmo período (IPEA, 2020).

 “ELES MATARAM MEU FILHO PORQUE ELE ERA NEGRO…”, essa fala ecoa alto em mim, me corta, mas deveria ecoar e cortar todos os brasileiros. Se uma sociedade consegue ver um homem ser torturado, espancado e morto sem fazer nada, ela não está fadada ao fracasso, ela já fracassou.  

Dessa vez foi Moïse, mas amanhã pode ser sua irmã, seu pai, seu/sua companheiro(a), você ou eu. Todos os dias o ódio mata (simbolicamente e fisicamente) negros, pessoas lgbtqia+, mulheres, crianças e estrangeiros. Ódio e raiva são diferentes. Se o ódio tenta nos eliminar, que a raiva (tida aqui enquanto revolta) nos aproxime e impulsione a lutar contra tais atrocidades, a enfrentar quem tenta nos aniquilar.

 

UBUNTU

 #justiçapormoise

Categorias
Destaque Pâmela Rochelle

SOBRE SER NEGRA

“Minha luta diária é para ser reconhecida como sujeito, impor minha existência numa sociedade que insiste em negá-la” (Djamila Ribeiro).

Quando fui convidada para ter uma coluna na revista, fiquei feliz por poder dar voz às questões que pesquiso no Doutorado de uma maneira mais leve e acessível, mas, sobretudo, fiquei feliz por poder tratar de questões que também me atravessam e constituem enquanto mulher negra, pós-graduanda, jornalista e professora (além de tantas outras, afinal somos vários), vivendo em um país estruturalmente racista, sexista e elitista, que segue boicotando a educação pública. 

Para além das mazelas que nos perpassam nos dias atuais enquanto brasileiros (e especialmente enquanto negras e negros – já que é deste lugar que falo), repouso meu olhar hoje sobre um tema especifico, que para além de um assunto se coloca como uma autoapresentação: O que é ser negra?

Partindo de uma percepção semelhante à de Neusa Souza Santos (1990), pesquisadora e psiquiatra brasileira, acredito que ser negra no Brasil é um processo longo e contínuo de vir a ser, de tornar-se. Digo isso pensando na questão da construção de uma consciência étnico-racial, que para além da cor da pele e dos traços tidos como característicos nos convoca a nos percebermos como sujeitos imersos numa cultura que tende a negar nossa estética, história e identidade. 

Muito embora não exista um “ser mulher negra”, mas mulheres negras no plural, cheias de potencialidades e multiplicidades, as quais são constantemente encapsuladas em estereótipos rasos (“mulata sensação”, barraqueira, mãe preta, macumbeira, entre outros…), é fato que existem questões que unem todas nós, que nos irmanam, entre elas está a mais cruel de todas: o racismo.

É pelo racismo que nossa intelectualidade é desacreditada, nosso valor e palavra são postos a prova e somos obrigadas a reafirmar constantemente nossas capacidades, correndo o risco de sermos “canceladas” ao mínimo deslize. Ser negra é entender o conceito de dororidade (PIEDADE, 2019) antes mesmo de ser apresentada a ele, é ocupar a base da pirâmide social, sofrendo duplamente: pelo machismo por ser mulher e pelo racismo por ser negra.

Se o racismo tende a nos aprisionar socialmente e subjetivamente, é a tomada de consciência racial e a percepção deste racismo enquanto tal que nos coloca num movimento de libertação das amarras colonialistas. A partir disso, ser negra (e saber-se negra) é ter a possibilidade de criar novas narrativas sobre si mesma e sobre os seus, libertando-se dos estereótipos à medida em que se criam novas formas de ser e existir, transgredindo até mesmo os alarmantes índices sociais que nos colocam entre as mais afetadas pela pobreza e violência.

É nesse sentido que o ato de “erguer a voz” pontuado por bell hooks (2019); que recentemente deixou o plano terreno e se uniu aos nossos ancestrais; representa o primeiro passo para que nós mulheres negras (e homens também) sejamos autoras de nossas histórias e líderes na busca por um país/mundo mais igualitário e justo. Ser negra é, pois, uma potência. 

Espero continuar encontrando vocês por aqui, até o próximo texto. Ubuntu.

Categorias
Matracas Sugere

Indicação de leitura – Livro DORORIDADE

(PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017)

“Eu falo de um lugar marcado pela ausência. Pelo silêncio histórico. Pelo não lugar. Pela invisibilidade de Não Ser, sendo” (PIEDADE, 2017, p. 17).

É a partir de uma tomada de consciência histórica, assinalada por aspectos interseccionais que perpassam e transmutam os corpos e as vivências das mulheres negras, em um país estruturalmente racista e patriarcal como o Brasil, que a intelectual e ativista antirracista, Vilma Piedade, desenvolve um novo conceito-vocábulo: Dororidade. O termo, que intitula sua obra, nasce numa tarde de sábado em meio a discussões sobre o protagonismo das mulheres no campo da política, o que evidencia, desde o parto, seu caráter reivindicatório e de resistência.

Dororidade discorre sobre um movimento de empatia entre as mulheres, sobretudo, mulheres negras, as quais se unem através de suas dores em comum. Carrega em seu significado a dor que é provocada em todas as mulheres pelo machismo e, mais que isso, a dor causada pelo racismo, a dor que possui uma cor: preta.

Surge com a obra um novo conceito feminista, que já se fazia essencial desde antes de seu nascimento. Reside nisso, também, sua relevância, uma vez que poucos conceitos são criados por mulheres, quando se trata de mulheres negras o percentual é ainda menor. Somos assim, presenteados com um conceito (livro) cunhado por uma Mulher, Preta e Brasileira. Dororidade não se contrapõe a ideia de sororidade, pelo contrário, se propõe a avançar no sentido de englobar as questões relativas à pretitude, como bem expõe a autora.

Mais que um livro, um conceito e um vocábulo, Dororidade parece nos propor um novo caminho de união, reflexão, autoconhecimento, luta, e, especialmente, mudança nos debates feministas. Com uma escrita agradável e fluida, a obra que não é extensa pode ser lida em uma tarde, embora mereça ser revisitada e problematizada diversas vezes.