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Descolonizar pensamento e linguagem: o que podemos aprender com bell hooks

 

“Temos de desenvolver estratégias para obter uma
avaliação crítica de nosso mérito e valor que não nos
obrigue a buscar avaliação e endosso críticos das próprias
estruturas, instituições e indivíduos que não acreditam em
nossa capacidade de aprender” (HOOKS, 2005, p. 474).

Por que o trabalho intelectual é raramente considerado revolucionário e como uma forma de ativismo?

São questões colocadas e que podem parecer inquietantes para muitas pessoas comprometidas socialmente com a transformação do mundo, mas trata-se de uma “pedagogia insurgente” ensinada por bell hooks (Gloria Jean Watkins), escritora, intelectual negra norte-americana, que neste mês nos deixou. Recentemente meditávamos no seu texto “Intelectuais negras” para essa escrita e, quando recebemos a notícia, estávamos numa reunião acadêmica com professores.

bell hooks parte deixando um imensurável legado, sobretudo para nós mulheres negras. Ela nos mostra que trilhar o caminho intelectual foi sempre uma opção “excepcional” e “difícil”, sendo para muitas, mais um chamado do que vocação, em que muitas mulheres negras não escolhem esse trabalho em razão do racismo e do sexismo.

Num país anti-intelectual, ser mulher negra e intelectual, conforme bell hooks é enfrentar a descolonização e libertação de mentes por que o trabalho intelectual é extremamente necessário nas lutas cotidianas e de esforços de grupos oprimidos e marginalizados. Ou até mesmo professoras negras, mulheres negras acadêmicas que superam as desconfianças em razão do racismo institucional. Nesse mundo de dominação colonial, o que podemos aprender com bell hooks a esse respeito?

Eis algumas “estratégias” que podemos desenvolver e que podem nos ajudar a acreditar mais na nossa capacidade. Destaco quatro pontos, como ela nos ensina (HOOKS, 2005, p.464-478):

a) afirmar sempre que o trabalho que fazemos tem impacto significativo na luta;
b) valorizar o trabalho intelectual advindo de grupos marginalizados como atividades úteis;
c) compreender que o trabalho intelectual é necessário para libertação de mentes;
d) ler, escrever, citar pensadoras, escritoras, mulheres negras e intelectuais contemporâneas.

Nesse sentido, conforme a teórica feminista negra: “Para contrabalançar a baixa estima constante e ativamente imposta às negras numa cultura racista/sexista e anti-intelectual, aquelas entre nós que se tornam intelectuais devem estar sempre vigilantes. Temos de desenvolver estratégias para obter uma avaliação crítica de nosso mérito e valor que não nos obrigue a buscar avaliação e endosso críticos das próprias estruturas, instituições e indivíduos que não acreditam em nossa capacidade de aprender” (HOOKS, 2005, p. 474).

Por fim, vale a pena ler o texto de bell hooks “Intelectuais negras”, Revista de Estudos Feministas, vol. 3, nº2, Florianópolis, UFSC, 1995, pp.464-478. Fica a dica o e link https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16465

Acreditemos na nossa capacidade de aprender.

Grata, bell. Gratidão.

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Ady Canário Colunistas Destaque

Sementes da memória e linguagem social inclusiva: “Glossário Antirracista”

 “[…] no varal de um novo tempo/escorrem as nossas lágrimas/fertilizando toda a terra/onde negras sementes resistem/reamanhecendo esperanças em nós” (Conceição Evaristo). 

 

O verso acima sintetiza parte do nosso sentimento e nos inspira, pois dessa forma nos sentimos ao ler o “Glossário Antirracista” (SESC/SP). Ficamos na esperança, sonhos e conquistas das ondas negras de resistência, em cada palavra no caminhar da geração negra. Uma obra importante para a construção da linguagem antirracista e o enfrentamento à discriminação linguística. O glossário nasce a partir do Projeto Do 13 ao 20 (Re)Existência do Povo Negro”, do Sesc São Paulo, cuja ação visa ao fortalecimento da identidade cultural e diversidade das pessoas negras, além do enfrentamento ao racismo e todas as formas de dominação.   

No contexto da discussão sobre racismo, discriminação, preconceito e desigualdades raciais em nosso país, o “Glossário Antirracista” é um marco histórico e colabora para a ampliação da linguagem social, inclusiva e antirracista que enaltece o povo negro, seu legado extremamente importante na sociedade brasileira, incluindo todos os grupos. Sabemos que, um dos modos de produção de racismo no Brasil se dá por meio do vocabulário, uso de expressões e discurso odiosos racistas, termos usados no cotidiano, sobretudo contra mulheres negras e a juventude negra, principais alvos de opressões combinadas. Ademais, são esses grupos que estão no alto do número da violência racista em suas dimensões de classe, raça e gênero.

O “Glossário Antirracista”, em síntese, analisa a linguagem e verbetes com um rico referencial bibliográfico, conceitual e histórico, tais como: “antirracismo”, “branquitude”, “consciência negra”, “diáspora africana”, “estética negra”, “genocídio”, “movimento negro”, entre outros termos de forma objetiva e didática. Entendendo, então, que essa produção antirracista reconhece as pessoas negras no campo da linguagem e no viés inclusivo, sendo um gênero relevante para a arena discursiva, pois em cada enunciado pronunciado vemos um espaço singular para a existência negra e resistência ao longo da história na cultura brasileira. Isso representa a valorização humana e cidadã.

Assim, compreendemos que a linguagem antirracista também é inclusão. Esta acontece associada a diversas formas de relações de poder e de ações humanas, de modo subjetivo, objetivo e dinâmico nas interações verbais. Consideramos o “Glossário Antirracista” a grande possibilidade de empoderar, diariamente, as pessoas que desejam contribuir com o enriquecimento de práticas antirracistas, na esperança de ampliar as formas de superação ao racismo. É importante destacarmos que outras pesquisas existem sobre o tema na perspectiva de práticas antirracistas e antipatriarcais e igualmente importantes, além da afirmação positiva das identidades negras. 

Nesse sentido, compartilhamos o link, a quem interessar ler a obra, nos desafios de estimular a leitura reafirmando o antirracismo na memória do passado, presente e futuro. Parabéns aos que fazem o “Glossário Antirracista” e pela disponibilização em ambiente digital a fim do alcance público, bem como a ampliação da linguagem antirracista e inclusiva no que diz respeito ao protagonismo negro.

https://www.sescsp.org.br/online/artigo/15462_GLOSSARIO+ANTIRRACISTA

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Ady Canário Colunistas Destaque

Linguagem inclusiva, consciência negra e racismo à brasileira: mulheres negras reexistem

“Assim, ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, racistas são os outros’  (Kabengele Munanga).

 

Entre adolescência e juventude, estava entrando numa escola de informática em Mossoró e no mural da recepção desse lugar nos deparamos com um cartaz no mural contendo mais de vinte frases pejorativas com as pessoas negras: “negro não é gente”, “negro só é gente quando bate na porta e pergunta tem gente” e, ao final, dizia: “se cuide negão que a lei áurea foi assinada a lápis”. Chamada a atenção do proprietário para o sentido de tal linguagem, foi evidenciado que se tratava de uma brincadeira. Essas são apenas algumas frases de cunho racista e de constrangimento causado pelo preconceito racial e discriminação racial. É um dos modos do racismo brasileiro, que tende a naturalizar a negação do racismo no dizer que: foi apenas uma “piada” e uma “brincadeira”. Isso se chama racismo recreativo, usar da linguagem como piadinha para ofender o negro.

 

No Brasil é celebrada a luta e resistência negra desde o regime escravista, assim, o Dia da Consciência Negra faz reverência a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, símbolo maior da história, e localizado na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas um dos maiores e movimento de reexistência. Nesse novembro de 2021, o Dia da Consciência Negra completa meio século. Idealizado pelo movimento negro em 1970 em Porto Alegre-RS do Grupo Palmares, no legado de Oliveira Silveira, visando enaltecer a luta de Zumbi dos Palmares. Em 1978, na Bahia, o Movimento Negro Unificado (MNU) propôs esse dia pela memória da resistência negra e ressignificação do 13 de maio. Em 2003, com a Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, o Dia da Consciência Negra entrou para o calendário escolar.  Em 2011, foi instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra pela Lei 12.519, sendo feriado por leis específicas. 

 

Ao longo desses anos, os desafios continuam na luta contra o racismo à brasileira, a discriminação racial e a desigualdade racial.  Nossa reflexão é compreender o potencial desse marco para uma linguagem inclusiva com consciência negra, sobretudo para as mulheres que resistem nessa luta por visibilidade e representatividade. No Brasil, o racismo se assenta na sua própria negação. Segundo dados “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil” (2019), mulheres negras (pretas ou pardas) estão em situação desvantajosa. Por exemplo, no Brasil, a diferença salaria onde recebem menos da metade do que os homens brancos. Tendo sobre elas a maior carga de atividades em trabalhos domésticos, dentre outros não remunerados, embora apresentem melhores indicadores educacionais que os homens. Na representação nos espaços de poder, em 2018, as mulheres negras (pretas ou pardas) “constituíram 2,5% dos deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores. Consideradas apenas as mulheres eleitas, foram 16,9%, 31,1% e 36,8%, respectivamente”. 

 

De tudo isso, vemos o quão é necessária uma consciência negra como prática de luta e resistência, pois “Numa sociedade racista não basta não ser racista é preciso ser antirracista”, como nos diz a filósofa Ãngela Davis. A desconstrução do racismo é um tema que em todo tempo precisamos afirmar e em toda transversalidade que nos impõe. Assim, mulheres negras resistem e as brancas também, lutando por uma sociedade mais justa e igualitária. Ressaltamos todo um processo que se constitui na linguagem, memória e história, em reconhecer a nossa história e as contribuições para a construção da cidade/país. Precisamos sobremaneira de uma consciência antirracista e inclusiva para que tenhamos uma sociedade livre, sem preconceito e sem discriminação. Esperamos por mais políticas públicas de promoção da igualdade racial na sociedade brasileira.

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Mulheres negras nas cidades e a esperança de uma política afirmativa

Feliz por participar desse projeto da revista Matracas voltada para abordagem jornalística com foco nos direitos humanos das mulheres! Inicialmente, destacamos as mulheres negras nas cidades e os desafios de uma política para construção das ações afirmativas no contexto da violência do racismo no Brasil. O que fazer para promover a igualdade racial das mulheres negras no contexto de desigualdades estruturais?

Ressaltamos as políticas afirmativas interseccionais que são voltadas para grupos sociais vulneráveis e estão historicamente em situações desfavoráveis na sociedade por diferentes fatores, sejam históricos, culturais e econômicos. Negros, indígenas, populações ribeirinhas, de periferias, entre outras formas de existência são alvo dessa política como imperativa de justiça e equidade social. Essas ações são medidas reparatórias focais em prol de grupos discriminados vítimas de racismo e preconceito visando à valorização e reconhecimento de suas histórias no passado, no presente e construção de seu futuro.

Evidentemente, dada sua importância no combate às desigualdades sociais e raciais, as políticas de ações afirmativas, como exemplo, a política de cotas para negros (autodeclarados pretos e pardos) na universidade e concursos públicos, provocam diversas demandas no enfrentamento às problemáticas em relação às condições humanas nas dimensões de classe, raça e gênero, especialmente para as mulheres negras, feministas, com deficiências e LGBTTQIA+ numa sociedade racista e sexista, dentre outros tipos de práticas. Nesse sentido, as ações afirmativas são oportunidades de refletirmos sobre o racismo, seu fenômeno e metodologias relacionais que perpetuam nas instituições para com as mulheres negras e sua baixa representatividade.

As estruturas sociais do racismo, sexismo e outras formas de discriminações estão presentes e produzem efeitos negativos sobre a vida. Afetam sobremaneira os grupos étnico-raciais que sofrem violências por conta do preconceito racial. Produzem a baixa remuneração, os postos de trabalho de menor prestígio e a baixa autoestima das mulheres negras. Assim, indagamos: por que mulheres negras? Porque sempre estivemos nas lutas e ainda somos parte de uma comunidade negra que sofre a falta de acesso à representação em razão do racismo institucional e no cotidiano.

Nesse contexto, nós mulheres negras temos vozes e coragem nos caminhos abertos, apesar de silenciadas pelo sistema opressor, que nos desqualifica, tornando nossos conhecimentos inválidos na cultura. Temos um papel fundamental por compreendermos as nossas opressões e a de outros grupos, sem hierarquização. É nas cidades que há de se reconhecer a importância das mulheres negras como “sujeitos” de direitos humanos. São relações desiguais de classe, gênero e raça no processo legado pela escravidão, até os dias atuais, e a suposta abolição da escravatura, bem como a ausência de políticas de inclusão e emancipação social.

Contudo, mulheres negras (re)existem contra os dispositivos de exclusão e dominação. A implementação de ações afirmativas são necessárias e dizem respeito a variados temas, principalmente no acesso ao trabalho e educação, como estratégias urgentes visando à inclusão social, o combate à discriminação racial e práticas descolonizadoras da atual ordem eurocêntrica do bem viver nas cidades. É no âmbito da (re)existência que as vidas das mulheres negras importam. (Re)existiremos!