Como diria Alceu Valença, “A solidão é fera, a solidão devora”, e foi em meio ao isolamento pandêmico, que me vi acolhida na escrita simples e lírica de Valter Hugo Mãe, premiado escritor português e declaradamente apaixonado pelo Brasil. O filho de mil homens é o quinto romance do escritor, e nele somos devorados pelo vazio e angústia de seus personagens que, cada um a seu modo, buscam uma forma de preencher o que lhes falta.
Crisóstomo é um humilde pescador que, aos 40 anos, sentia-se pela metade – faltava-lhe um filho. E, reconhecendo-se infeliz, partiu em buscar de encontrar uma criança que pudesse adotar. Crisóstomo “acreditou que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família”. A sua busca chegou ao fim quando, em seu trabalho, apareceu Camilo, um jovem órfão de 14 anos, “um rapaz carregado de ausências e silêncios”. Imediatamente o pescador percebeu que era ele. Camilo é o filho que tanto esperou e não hesitou em pedir ao rapaz que o aceitasse como seu pai. Camilo, emocionado, logo correspondeu às expectativas do pescador e aceitou ser seu filho. Agora, Crisóstomo sentia-se inteiro.
Isaura é filha única, que muito cedo foi arranjada para o filho dos vizinhos. O que seus pais não esperavam era que a moça fosse se entregar ao rapaz antes do casamento, ainda menor de idade. Desvirtuada, Isaura passou a ser enjeitada; “envergonhava-se de ter um dia oferecido tudo ao amor”. Com a decepção de ver-se abandonada, Isaura não comia e passou os anos a definhar. Ela “não queria ser ninguém. Queria diminuir até ser nada”.Chegou aos trinta anos muito magra e por dentro era como estava por fora: a definhar.
Antonino é “um homem dos que não gostavam de raparigas e precisavam de fazer de conta”. Educado pela mãe, cresceu confuso com seus próprios sentimentos. E, entre seguir sua orientação sexual e corresponder às expectativas de sua mãe que não aceitava o filho como era, viu-se perdido.
O livro nos apresenta personagens que, inicialmente, nos parecem histórias avulsas, mas que ao longo do enredo vão se encontrando e se complementando. O homem pela metade, o órfão, a mulher enjeitada, o maricas, assim como os demais personagens que são demasiadamente humanos. O filho de mil homens é um verdadeiro mergulho em nós mesmos: é um livro que nos atravessa, não saímos ilesos dele, pois nos mostra que o acolhimento salva, estreita relações e, a partir delas, nos sentimos pertencentes no mundo.