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Colunistas Destaque Diana Duarte

O olhar e o rastro

Ontem à noite, sobre a longa calçada das praças iluminadas por luzes artificiais a mitigar a  escuridão do céu noturno, caminhava um pouco apressadamente a fugir dos dissabores urdidos pela  fatalidade do destino. 

A longa e irregular estrutura do asfalto me cansava o corpo e o susto de pouco antes me  entorpecia os sentidos. Ainda embriagada pelas ocasiões violentas acometidas contra mim, a rapidez de minhas pernas se comparava a velocidade dos heróis caídos em desgraça, minha casa,  transformar-se-ia em esconderijo à revolta do aliciamento. 

A vista turva e embaçada pelos olhos lacrimejantes, pude observar um homem vir em minha  direção. A distância de nossos corpos, ainda bastante significativa, e o isolamento de nós dois  provocados pelo instante do segundo, me alimentaram a neurose.  

Rapidamente furtei meu próprio caminho, me pus entre os carros ordenadamente  estacionados e segui a contramão de meu indesejado companheiro, até que nos cruzarmos e,  finalmente, nos distanciarmos. 

Olhei para trás, tratava-se de um jovem negro, caminhando e esguicheirando-se dos olhares  da depredação e desumanização racistas, tais como o meu. 

A culpa que eu sentia em ser algoz no campo do intolerável compete somente a quem a  sente. A humilhação em reconhecer à própria violência desperta a dura consciência da realidade  narcísica a qual buscamos esconder, evitando a todo custo, seu surgimento fatalmente silencioso. Segui meu percurso enevoada não mais pelo medo e revolta, mas agora acrescido pela penitência,  balbuciando justificativas atenuantes a meu crime simbólico. 

O destino final do meu curto e torturante trajeto estava ao alcance de minha mão, mas antes  de conquistá-lo, ouço passos rápidos a pesar por detrás de minhas costas, meu coração encheu-se de adrenalina, contorci o corpo instintivamente a direção contrária e, quem diria, era o jovem rapaz.  Trocamos olhares comunitários onde não cabem sorrisos. 

Ele continuou a suar e correr 

E eu, nem tanto.

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Diana Duarte

Massacre nas escolas e a performance da masculinidade: O que uma coisa tem a ver com a outra?

Muito tem sido falado a respeito da situação de insegurança nas escolas e o clima de carnificina, terror e indignação pelas famílias e comunidades com relação aos massacres das últimas semanas. As notícias não param de chegar e, ao terminar de escrever essa linha, imagino tristemente não se, mas quando e onde ocorrerá novamente. 

Por meio de um levantamento digital, a pesquisadora Michele Prado identificou 22 ataques às escolas entre outubro de 2002 e março de 2023. Dentre eles, 12 foram realizados com uso de armas de fogo. A maioria das vítimas foram mulheres e crianças. 

Aqui deixaremos em evidência os casos: em 2002, Salvador/BA, um jovem de 17 anos atirou contra duas colegas de classe. Em 2011, Realengo/RJ, um homem deixou 12 pessoas mortas, dentre elas, 11 foram meninas. Em 2011, São Catano/ SP, um menino de 10 anos atirou contra uma professora. Em 2022, Barreiras/BA, um estudante de 14 anos atira contra uma estudante cadeirante. Em 2022, Aracruz/ES, um adolescente deixou 4 mulheres mortas e 12 pessoas feridas entre meninos e meninas. Em 2023, São Paulo/SP um aluno de 13 anos esfaqueou 4 professoras, uma morreu. 

É importante olhar para esse quadro e tecer perguntas indigestas: Por que são adolescentes e homens (geralmente alunos ou ex alunos) os protagonistas dos ataques e por que são as minorias, dentre elas mulheres e crianças a serem feridas e mortas, em sua maioria? O que motiva um adolescente de 13 anos desejar matar suas colegas e professoras? Ou um homem invadir uma creche e iniciar disparo contra crianças e funcionárias? Quais políticas foram desenvolvidas pelas secretarias de educação para mitigar a violências nas escolas? A saúde mental do jovem adolescente está sendo devidamente atendida? Em que medida a reforma do ensino médio impacta na produção da identidade desses jovens? 

As diferentes perguntas são importantes porque buscar uma explicação monolítica da violência torna insuficiente a compreensão da dimensão do problema.  

Em 2019, o líder da extrema direita, Jair Bolsonaro, por meio de eleições atípicas, conseguiu ocupar o maior cargo do executivo no Brasil, a presidência da república. Por meio de sua política armamentista, houve um aumento de 187% do acesso as armas entre 2018 e 2023. A facilitação da posse e do porte de armas de fogo, o consumo facilitado a conteúdos misóginos, racistas e homofóbicos e falta de políticas pedagógicas de gênero no contexto escolar podem ser pensados como facilitadores não só da violência, mas como a possibilidade de realização do desejo do extermínio, da eliminação do outro. Afinal, a existência enquanto sujeito numa sociedade profundamente desigual permite, sem maiores dificuldades, capitalizar os jovens através do discurso da intolerância e do machismo que coloca mulheres e meninas como personagens a serem subjugados não é motivo de vergonha, mas é sinal de honestidade, virilidade, uma distinção valorosa. Por que, no caso do morticínio nas escolas, são sempre homens ou jovens adolescentes a cometê-los? 

Antes de tecer uma explicação sobre a questão levantada, na abordagem utilizada aqui, “homem” não se enquadra numa categoria social única e individual. Dentro da análise do gênero, homens e mulheres podem performar diversos tipos de feminilidade e de masculinidade. Portanto, a utilização

do conceito de masculinidade hegemônica é uma das formas de buscar distinguir esses múltiplos modos de ser dentro das relações de poder. Afinal, a diversidade existe e é antipedagógico ignorá-la. 

Assim compreendido, de um modo geral e até controverso, o conceito de masculinidade hegemônica afirma-se pelo que não é: um homem não é uma mulher, homem não chora, um homem não recusa sexo. A hegemonia masculina caracteriza-se, sobretudo, pela ridicularização do feminino. A agressividade é um ingrediente fundamental para distanciar-se daquilo que não pode jamais ser. Para garantir esses objetivos, a performance desse tipo de masculinidade precisa ser diária, mas também há custos que podem ser identificados no próprio ambiente escolar. Esse autocontrole emocional, gera dificuldade nos meninos de manifestarem suas emoções e dificuldades o que pode acarretar sérios riscos para a saúde mental. 

Evidentemente, escolas não produzem a masculinidade de forma determinista, a construção das identidades masculinas dentro desse ambiente, passam por um processo de negociação, rejeição, aceitação, contradição. Mas a falta de políticas e práticas pedagógicas que ajudem a perceber a multiplicidade no processo de construção de identidade, torna a convivência escolar pouco saudável para os jovens. Os dados do Ministério da saúde comprovam com os homens têm mais probabilidade de cometer suicídio (79%) do que as mulheres (21%), têm maiores chances de desenvolver depressão, ansiedade, recebem mais diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista, Transtornos de Deficit de Atenção e Hiperatividade, Transtornos Específicos de Aprendizagem (TEAp), como dislexia, disgrafia. 

Mesmo a reforma do ensino médio comprometendo-se a tornar o currículo e a escola mais atrativa ao estudante, não permitiu fazer o mínimo, que é garantir o acesso à educação de gênero por meio dos temas transversais ou aplicar a Lei 10.639, que versa sobre a determinação do ensino da História Afro Brasileira. Pior, além de não propor nenhuma linha sobre como abordar os temas supracitados em sala de aula, a reforma ainda retirou substancialmente a carga horária de disciplinas como história, geografia, filosofia e sociologia. 

Reconhecer o processo de difusão do gênero é fundamental para compreender o corpo como sendo a possibilidade de multiplicação de ser quem é, mas isso não será possível se não houver combate à cultura do ódio, sem política pública, sem democratização nos espaços de ensino, sem discutir gênero, sem tratar da saúde mental, sem tratar do racismo, sem garantir espaços inclusão. Não é possível tratar a escola como território neutro ou colocar nas mãos do direito penal (um instrumento problemático, pois que patriarcal) a resolução de uma questão que reverbera dentro das escolas, pois estas não são território neutro. 

E, por fim, devemos nos perguntar: Quantos dedos se fazem necessários para puxar um gatilho?