Em março de 2023 o Conselho Nacional de Justiça aprovou a criação de uma resolução que estabelece a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em todos os ramos de Justiça e regiões do país. O documento norteia os magistrados no julgamento de casos concretos sob a ótica de gênero, dessa forma, buscando a efetivação da igualdade e equidade nas múltiplas ações que envolvem homens e mulheres.
O dispositivo, entre outras questões importantes, é considerado uma vitória no enfrentamento da violência contra mulher, visto que, apenas a criação de leis não é suficiente se a justiça não considerar a estrutura machista e patriarcal na qual as mulheres estão inseridas. Além disso, é possível esperar um judiciário que possa enxergar as mulheres dentro de suas realidades específicas.
De acordo com a advogada Suziany Araújo, na prática, o protocolo pode ser utilizado em diversas áreas do direito. Nas questões de família, trabalho, e até mesmo na orientação em processos criminais que envolvam a violência sexual. Trazendo orientações para que a vítima no processo receba o devido acolhimento. Ainda nesse tipo de violência, estereótipos e as expectativas sociais colorem com a distorção na apuração dos fatos.
O documento discorre sobre a abordagem dos magistrados em casos de violência doméstica, patrimonial, institucional, obstétrica, psicológica, entre outras. A advogada ressalta a importância da lei, tendo em vista que, segundo ela, o direito tende a reproduzir desigualdades ainda que não seja a intenção, devido a uma estrutura existente. “Em um país onde a desigualdade social é marcada, as instituições acabam colaborando com práticas que fortalecem essa desigualdade, mesmo quando não intencional”, destacou. Acrescentando que, o protocolo aborda especificamente questões de gêneros que podem estar vinculado ao direito penal, trabalhista, familiar, previdenciários entre outras áreas. Suziany afirma que existem orientações para o uso do documento no dia a dia forense.
“Os advogados podem utilizar em suas peças, trechos do protocolo e solicitar que este seja utilizado no caso concreto. Em minhas atuações que envolvem mulheres, tenho recorrido ao protocolo com frequência. É uma maneira prática de lembrar a existência desse documento para orientação do magistrado/a naquele caso específico trabalhado”, frisa.
Sobre o Protocolo, ela ressalta que, incialmente apresenta conceitos importantes sobre sexo, gênero, identificação de gênero, sexualidade, tanto de âmbito biológico quanto social. Depois vem abordar questões históricas de desigualdade entre homens e mulheres, os papéis socialmente assumidos por cada um. “Revelando que o sistema capitalista atribuiu ao homem o trabalho produtivo, fora do lar, e remunerado. E a mulher ficou ligada a trabalhos de cuidado e, muitas vezes, sem remuneração e reconhecimento”.
É comum essa relação de funções sociais assumidas por homens e mulheres chegarem ao judiciário nos divórcios, segundo ela. No momento da partilha dos bens adquiridos na constância da união. “Alguns homens tiveram todo o suporte emocional, estrutural para seguir uma carreira, proporcionado muitas vezes por suas companheiras que ficaram em casa cuidando de tudo, e no momento da divisão de bens no processo de divórcio, na cabeça desse homem, apenas ele construiu o patrimônio. Nesses casos, o Protocolo aborda critérios em cada área de atuação no direito. Mas de modo geral, existe uma seção dentro do documento conhecido como passo a passo, que apresenta medidas especiais de proteção, instrução processual, valoração da prova, identificação do marco normativo, interpretação e aplicação do direito e outros”, enfatiza.
Suziany destaca ainda exemplos em que protocolo foi utilizado. “Um pai, funcionário público, solicitou redução da sua carga horária de trabalho para acompanhar o filho nas terapias. A empresa apresentou na contestação que não existia a necessidade dessa redução, pois tinha a mãe para cumprir essa função. A magistrada concedeu a redução e usou o Protocolo com Perspectiva de Gênero para fundamentar sua decisão. Segundo ela, a função de cuidado com os filhos não é exclusiva da mãe, como historicamente vem sendo definida socialmente, mas sim, de ambos os genitores. Outra aplicação, essa em outro estado, tratava-se de uma mulher que exercia apenas funções domésticas, mas contribuía com a Previdência Social e se acidentou em casa. O magistrado desse processo também fez uso do Protocolo de Gênero para reconhecer o direito ao benefício por acidente, ou seja, reconhecendo que a segurada faz jus ao benefício mesmo que o acidente tenha acontecido dentro do ambiente doméstico”.