A Constituição consagra em seu texto o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Contudo, mesmo após deixar evidente que não existe distinção entre gêneros, outras leis precisaram ser colocadas no ordenamento jurídico, para que, de fato, o princípio fosse respeitado. Um exemplo recente foi à criação da Lei da Igualdade Salarial, que apresenta bases para o estabelecimento de igualdade salarial/remuneração entre homens e mulheres que exercem a mesma função e que se equiparam em jornada de trabalho e exercício de função. A Lei introduziu mecanismo como multa, além do estabelecimento de medidas de transparência para verificação e fiscalização do cumprimento da norma.
Seguindo uma tendência nacional e internacional de mudança, no que diz respeito à questão de gênero, documentos como o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e outras medidas afirmativas, têm sido criadas para romper com anos de condutas machistas que violam o acesso de meninas e mulheres aos direitos sociais básicos. Condutas estas que podem ser exemplificadas nas relações de trabalho, na distribuição das atividades domésticas dentro do lar, onde é comum cargas excessivas de responsabilidades serem repassadas as mulheres, assim como a participação das mulheres na vida pública, visto que, só houve um aumento da quantidade de mulheres em pleitos eleitorais devido a aprovação de leis que obrigam partidos e coligação a destinarem um percentual mínimo a candidatura de mulheres.
O fato é que, um país fortemente marcado pelas desigualdades de gênero, dentro e fora do lar, construiu um judiciário dentro de um viés também machista, que por muitas vezes olhou para as condutas masculinas com complacência e criminalizou ou não deu a devida atenção quando partia de mulheres. Se socialmente estamos cercadas de práticas que privilegiam os homens de algum modo, essas ações serão levadas para dentro de qualquer instituição. Inclusive para dentro do judiciário.
O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero mostra-se como um documento necessário para uma mudança na postura dos julgadores. Com ele, exige-se dos tribunais brasileiros que levem em conta, nos julgamentos, determinadas especificidades. Ou seja, que tenha um olhar diferenciado sobre as demandas daquelas que, por anos, foram cerceadas da obtenção de direitos. Esse documento se mostra como emancipatório quando utilizado por magistrados e magistradas no sentido de promover a igualdade entre grupos que socialmente permaneceram em desequilíbrio.
O documento dispõe de conceitos indispensáveis como definição de sexo, gênero, identidade de gênero, sexualidade e como o poder se manifesta nas questões assim relacionadas. Todos esses conceitos são apresentados na primeira parte do documento. Na segunda, podemos encontrar um direcionamento através de ferramentas e instruções que vão orientar os magistrados e magistradas no cotidiano forense. É importante frisar que os advogados e advogadas podem em suas peças (iniciais) recorrer ou mencionar o protocolo para alcançar um olhar diferenciado dentro de determinada demanda.
Outro aspecto de suma importância é que o protocolo apresenta orientações que são aplicadas ao direito do trabalho, direito de família, direito penal, eleitoral e militar. Diferentes esferas do judiciário são contempladas por essa visão nova, por uma perspectiva que alcance a emancipação de mulheres.
É simples pensar na importância do protocolo com exemplos: imagina uma mulher, mãe, lactante que foi intimada para participar de uma audiência em que ela será ouvida como testemunha. Imagina também que essa mulher será ouvida no mesmo dia em que outras 2, 3 ou 4 testemunhas também serão ouvidas. Poderia ser dado a essa mulher a ordem de preferência na realização do trabalho nesta vara? O magistrado (a) e o advogado (a) que atuam com um olhar atento ao que menciona o protocolo indicariam preferência no testemunho dessa mãe. São práticas simples e complexas que podem aproximar o judiciário da perspectiva de gênero e trazer um olhar mais humanizado.
Um caso recente em que se é possível visualizar a aplicação da perspectiva de gênero, tratou-se de uma mãe, que vivia com filhos pequenos, sendo, portanto, a única responsável por cuidar e sustentar as crianças através do trabalho de catadora. Ao ser processada pelo crime de tráfico, a prisão domiciliar, prevista para os casos em que a mulher é a responsável por cuidar dos filhos, na situação específica, não permitiria a essa mãe levar os filhos para escola e buscar o sustento da família. A partir dessa situação, foi aplicada a prisão domiciliar com condições especiais. Ou seja, um olhar do julgador sobre as questões relacionadas à vida dessa mulher e mãe, foi possível apresentar uma solução entre a aplicação de uma pena e a realidade de uma mãe solo.
De modo objetivo, o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero mostra-se necessário na busca entre o equilíbrio de gênero nas decisões judiciais. Mulheres, em muitas ocasiões buscam no judiciário soluções para os mais variados conflitos e em muitos casos são silenciadas em audiências, se deparam com o sofrimento desnecessário através da revitimização e não encontram soluções que atendam suas perspectivas.