“Como ela conseguiu passar no doutorado?”: Racismo genderizado e as (in)visibilidades históricas das mulheres

Em 8 de março é comemorado o Dia Internacional das Mulheres, data instituída a partir das Organizações Internacionais. Ao longo desse processo, são muitos os desafios e conquistas na luta do movimento de mulheres. Assim, aproveitamos para trazer as “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano” (2019), da escritora Grada Kilomba. Uma importante obra para refletirmos individual e coletivamente as variadas questões que ainda nos inquietam, ontem e hoje. Com escrita reveladora, trata-se de uma abordagem interdisciplinar na perspectiva de novos conhecimentos, reunindo relatos reais de racismo por meio de narrativas contundentes. Uma excelente leitura, a quem se interessar pelo tema. São muitos ensinamentos e novos conhecimentos.

     Destacamos alguns pontos e trechos extraídos do capítulo 4. Nos chamou a atenção a discussão acerca do conceito de racismo genderizado. Lemos atentamente a narrativa de um acontecimento quando ela tinha entre 12 e 13 anos. Durante uma consulta foi interpelada por um médico, homem branco em Portugal: “Você gostaria de limpar nossa casa?”. A filósofa indaga se ela fosse uma paciente branca ele teria perguntado? Diante disso, conta que: “O homem transformou nossa relação médico/paciente em uma relação senhor/servente: de paciente me tornei a servente negra, assim como ele passou de médico a um senhor branco simbólico, […]”, descreve Kilomba (p. 93). Sem sombra de dúvida, são episódios que nos marcam.

           Tal episódio, dentre outros contados no livro são  recorrentes na realidade das mulheres negras. Nesse contexto, partilhamos semelhantes histórias em nosso percurso. Quando assumimos um cargo institucional, um homem entrou na nossa sala e falou: – “Já está aí?”. Essa foi a “saudação de boas vindas”. Outra ocorrência, fui a um espaço para entregar o meu  currículo e os comprovantes. Uma melhor perguntou: “Esse  currículo é dessa daí”? Será se eu fosse uma mulher branca, teriam pronunciado tais enunciados? Por que essas falas e não outras em seu lugar? São as formas do racismo genderizado nos espaços de poder?  Outro ocorrido, quando fomos aprovada no curso de doutorado,  uma mulher perguntou a minha mãe,  “como ela conseguiu passar?”

     Dessa forma, o racismo genderizado pontua as relações entre raça, gênero e racismo no cenário da violência às mulheres negras. A filósofa aborda que: “Mulheres negras têm sido, portanto, incluídas em diversos discursos que mal interpretam nossa própria realidade: um debate sobre racismo no qual o sujeito é o homem negro; um discurso genderizado no qual o sujeito é a mulher branca; e um discurso de classe no qual “raça” não tem nem lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico dentro da teoria”, destaca (p. 97).

        Isso revela  […] “um sério dilema teórico, em que os conceitos de raça e gênero se fundem estreitamente em um só. Tais narrativas separadas mantém a invisibilidade das mulheres negras nos debates acadêmicos e políticos” (p. 98), argumenta. Realmente, ainda há muito a estudar e discutir acerca das relações raciais como parte da nossa tarefa cotidiana. Para a escritora: “Um fenômeno que atravessa várias concepções de “raça” e de gênero, nossa realidade só pode ser abordada de forma adequada quando esses conceitos são levados em conta” (p. 98).

     Nesse sentido, afirma as intersecções como não singulares, pois se entrecruzam na constituição da subjetividade e experiências das mulheres negras. Isso em razão do racismo que estrutura visões racistas de gênero nos espaços e debates. Há lugar para raça? A autora afirma que mulheres negras também são genderizadas, isto é, tornadas invisíveis e ignoradas, contudo não podem ser invisibilizadas na hierarquia de poder.

      Portanto, o conceito de racismo genderizado, em estudo, se reveste de suma importância na produção de novos modos de subjetividade à luz de feministas negras, bem como no enfrentamento às invisibilidades históricas das mulheres negras e demais grupos étnico-raciais. Devemos considerar, conforme Grada: “O movimento e a teoria de mulheres negras têm tido, nesse sentido, um papel central no desenvolvimento de uma crítica pós-moderna, oferecendo uma nova perspectiva a debates contemporâneos sobre gênero e pós-colonialismo” (p. 108). Continuamos empreendendo.

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