Categorias
Colunistas Destaque Shemilla Paiva

A mãe, esta inadequada

Não há lugar onde a mãe não seja uma presença que melhor seria se alí não estivesse 

A mulher com náusea, vomitando ou tendo um episódio de desmaio. É assim que a novela avisa que a personagem engravidou. Na concretude dos fatos quase sempre é diferente, o alerta vem depois que a mulher chega de um dia de trabalho e sente as pernas doerem em dobro, a enxaqueca persistindo mesmo depois de tomar o analgésico encontrado no fundo da bolsa entre as notas fiscais amassadas e os seios mais sensíveis do que o habitual da ovulação. Um beta confirmado é uma sentença, e é claro que a sentenciada ainda nem faz ideia do caminho de profundas rupturas, disforias e cisões. 

O arquétipo da mãe é posto como lugar de chegada natural para a mulher. Essa naturalização da maternidade, ou seja, esse movimento compulsório que nos lança para o gerar, o parir e o cuidar tem uma força proporcionalmente inversa ao suporte, acolhimento e investimentos políticos voltados para o maternar. Dizemos, então, numa tentativa de sermos validadas, que nós criamos os cidadãos do amanhã. Não adianta.  

É preciso entender que ser mãe numa racionalidade neoliberal envolve nutrir e fazer vingar aqueles que serão a força de trabalho do futuro. Talvez seja esse o único argumento com alguma chance de convencer que isso que fazemos é trabalho. Trabalho que não exclui o amor retumbante. E é uma lástima ainda ter que fazer esse adendo para evitar o risco de receber o título de menos mãe.

A mãe que está inserida no ambiente da academia se vê receosa de sequer citar o filho sob o fantasma de poder parecer estar usando a criança como desculpa ou – sic – vantagem. A mãe que está no setor privado se desespera com a possibilidade de ser descartada após voltar da licença. A mãe que deixa de trabalhar no mercado formal parece de cada olhar que a julga feito chicote. A mãe é esta inadequada e não há lugar onde a mãe não seja uma presença que melhor seria se alí não estivesse.

Maternar é um ato político. É preciso chover nesse molhado em looping infinito até que as mães sejam ouvidas, respeitadas, valorizadas. Nós não somos mãezinhas. A produção de sentidos sobre a maternidade reveste a mulher mãe de uma aura de candura e benevolência que em nada agrega, ao contrário, só nos afasta dos direitos e  acessos. Nós não queremos estudar, trabalhar e ocupar espaços como se nós não tivéssemos filhos. Nós queremos que o fato de sermos mães não soe como um motivo para duvidarem de nossa capacidade, disponibilidade e potência. E nós queremos devolver essa desconfiança que a sociedade tem para conosco em forma de indagações: por que desconfiam de nossa capacidade de entrega se apenas ocupamos um papel que sempre nos foi vendido como dádiva? Parece que vocês sabem muito bem a solidão e sobrecarga às quais somos lançadas assim que o útero cumpre seu trabalho, não é mesmo?

Esses são os aspectos políticos, mas, há também os quesitos humanos neste solo da maternidade. Há, pasmem, mães que detestam seus filhos. Há mães que amam seus filhos e detestam serem mães. Há mães que amam seus filhos e a maternidade. A mulher mãe é um sujeito que se compõe em atravessamentos muitos. Escapulimos do já posto presente nas tão difundidas narrativas religiosas, publicitárias ou psicanalíticas. 

Uma mãe sempre irá se sentir inadequada. A mãe sempre irá sentir que você já não confia que ela possa entregar o trabalho no prazo. A mãe sabe muito bem que você acha que agora ela está mais propensa a se deixar levar pelo emocional. Afinal, a mãe, essa instável. Sugiro que assistam Maid, A Filha Perdida e Mães Paralelas na próxima busca audiovisual. Sugiro que vejam nossos filhos como responsabilidade de uma sociedade inteira. Sugiro que não descartem nossa existência depois que nosso corpo reproduz. Sugiro que não coloquem a maternidade como realização ou irrealização feminina. A maternidade escapa. 

A mãe quer estudar, quer trabalhar, quer fazer dinheiro, quer ser e estar em completude. A mãe embala a cria e sente seu coração bater em uníssono com aquele ser que, na maioria das vezes, ela ama perdidamente. A mãe pode querer se contorcer numa siririca num domingo de neblina. A mãe escreve teorias. A mãe compõe. A mãe cozinha. A mãe sente os coágulos de sangue escorrendo entre as pernas no pós parto a cada vez que o bebê suga sua mama. A mãe possibilita o trabalho masculino. A mãe lida com a filha que foi e com a mãe que teve. A mãe toca o barco. A mãe salta no bote. Agora, veja bem, se tudo continua é porque a mãe faz continuar. E a mãe, ainda que vocês pensem que estão fingindo bem, sabe que vocês melhor achariam se alí ela não estivesse.