Mulheres com deficiência relatam dificuldades na acessibilidade quando precisam dos serviços básicos de saúde

Os serviços de atenção básica a saúde, a maioria, são utilizados pelas mulheres. Nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), por exemplo, o público feminino prevalece entre os usuários desses equipamentos. No entanto, muitos desses serviços oferecidos não foram pensados para todas as mulheres. Uma realidade que, infelizmente, existe em todo o país e afeta, também, quando estamos falando de saúde privada e não somente do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A revista Matracas conversou com três mulheres com deficiência, cada uma com necessidades específicas. São vários os dramas enfrentados por elas para realizar um simples exame de prevenção. Situações de constrangimento, dificuldades de acesso a determinados aparelhos, acesso a portas de entradas são problemas comuns na vida das mulheres com deficiência quando estas precisam dos serviços básicos de saúde. Situação que, para essas mulheres, significa enfrentar uma dupla vulnerabilidade.

Yascara Samara, filósofa, tem mobilidade reduzida. Ela disse que o problema começa pelo despreparo dos profissionais de saúde que não sabem lidar com as diferenças. Em seguida vem a decadência da estrutura. “Se um deficiente auditivo precisar se dirigir a uma UBS, vai ter que ir acompanhado, pois ninguém sabe a linguagem de sinais (libras). Além disso, a sinalização é falha. Para as pessoas com deficiência visual não é diferente, não existe acesso por meio de pisos táteis, sinalização em relevo nas portas. Eles acabam necessitando de um acompanhante”, disse. 

Com base nos relatos dessas mulheres, as pessoas com deficiência são as que têm que se adaptar às estruturas que são oferecidas nos equipamentos de saúde, ainda que estejamos falando de serviços de atenção básica. “A acessibilidade é o problema mais crítico, pois os cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida como eu, e idosos se aventuram ao tentar subir numa maca. Se levarmos acompanhantes, eles nos ajudam a subir, nos colocam nos braços como criança.  Os equipamentos são velhos, não regulam a altura e o problema existe nas cadeiras de dentista e na maca ginecológica. Eu ainda consigo subir um pequeno degrau, para ter acesso à maca, mas muitas vezes tive que chamar uma pessoa para ajudar a subir”, conta. 

A realidade não é única das UBSs, mas em clínicas e hospitais, sejam públicos ou privados. “Na sala de raios-x, por exemplo, os mamógrafos não se ajustam ao tamanho da cadeira. É uma situação de total falta de empatia e invisibilidade de nós pessoas com deficiências. Apesar de existirem muitos profissionais com deficiência ainda não somos consultados para uma melhoria nos serviços de atenção básica e saúde”, desabafa. 

Situações constrangedoras são comuns. “Outro dia fui fazer um exame ginecológico e a cama era muito alta, o aparelho da médica não conseguia me alcançar. Foi muito constrangedor, tiveram que chamar a atendente para ajudar a me colocar numa posição que desse certo acontecer o exame”, conta.  

Como se não bastasse uma realidade que já é difícil de encarar, Yascara fala dos retrocesso em lei da acessibilidade, referindo-se ao projeto de lei 2505\2021, que revoga um artigo da lei brasileira de inclusão que obrigava os gestores públicos a cumprirem a exigência de requisitos de acessibilidade. 

Sobre mudanças necessárias, Yascara elenca que “falta informação em suas formações, fazer pesquisas de campo, entrevistas, conhecer nossa realidade e trazer melhorias no atendimento, não só para nós mulheres com deficiência, mas também fazer os alunos que vão trabalhar na área aprenderem mais sobre a vivência das pessoas com deficiência. Colocá-los em uma cadeira de rodas, tapar seus ouvidos, vedar seus olhos e fazer de conta que são deficientes para que se tenha mais respeito, sensibilidade e um atendimento mais humanizado. A maioria considera a deficiência como algo distante, mas todos são suscetíveis a se tornar uma pessoa com deficiência, devido a acidentes ou doenças”, diz. 

Yascara acrescenta que em quase todos os espaços em que precisou passar foi necessário essa adaptação e mesmo que possam contar com algumas mudanças, existe omissão por parte dos poderes públicos de todas as esferas, e concorda que muitas coisas ainda precisam ser modificadas. 

“Aos poucos algumas mudanças foram sendo construídas. Na faculdade por exemplo, as rampas de acesso só foram colocadas depois que cadeirantes conseguiram entrar na faculdade, cotas de acesso para entrada, cotas no mercado de trabalho, lei de inclusão nas escolas, mas tudo muito deficitário e suado para conseguir. Por esses motivos, considero sim, muita omissão por parte dos representantes. Ninguém facilita não. Até para carteirinha de transporte público, estacionamentos, provas de concurso a gente precisa provar que tem sua deficiência. A cada seis meses tem que renovar, como se um dia você fosse amanhecer sem ela. É desumano você ficar correndo em busca de um laudo para provar o que não precisa ser provado. Os médicos chegam a se irritar com as idas e vindas aos consultórios para pedir estes atestados e laudos, e muitos nem dão, quando são dá área pública. Penso que seria muito importante um cadastro único para quem tem deficiências permanentes para que não necessite esse sofrimento de provar todas as vezes que tem uma deficiência. Ninguém nos ouve”, explica. 

Lília Campêlo tem sequelas de paralisia cerebral. Ela reconhece que não sofre dos mesmos problemas de um cadeirante, por exemplo. Mas como alguém que é integrada às discussões relacionadas à acessibilidade, ela também se indigna com a forma como as necessidades das pessoas com deficiências são enxergadas. “Nada é pensado em relação a nos atender de maneira adequada, fazendo com que a minha condição enquanto mulher com deficiência seja vista como alguém que esteja sempre precisando da ajuda do outro”, relata. 

Uma mulher com deficiência precisar de um serviço de atenção básica nas Unidades de Mossoró é enfrentar desafios e constrangimentos. “Deitar em uma maca para exames de qualquer espécie é algo simples para quem não tem deficiência. No entanto para mim é algo que necessito sempre de ajuda, em razão da altura da maca ser de um tamanho padrão de forma que não me dá autonomia de subir e descer por conta própria, por ser uma mulher com deficiência nos membros inferiores”, destaca. 

 Ela reforça que tanto o sistema público quanto o privado não dispõe dos serviços adequados para elas. “Os dois sistemas não distinguem o atendimento de uma pessoa com deficiência de outra que não a tenha. Nesse sentido, somos nós, pessoas com deficiência, que temos que nos adequar ao que nos é oferecido”, frisa. 

Lília também reconhece a omissão dos gestores.  “Certamente, de modo até generalista, digo que nunca conseguimos ocupar nossos lugares de maneira natural, sempre nos fizeram acreditar que, por sermos “minorias”, não há a necessidade de adequação dos espaços comum a todos enquanto indivíduo social’, relata.

As situações expostas por essas mulheres apontam para uma necessidade urgente de transformação, tanto nas práticas profissionais quanto na estrutura física dos equipamentos. “Acredito que, em primeiro lugar, precisamos ser vistas como mulheres que estão dentro da mesma sociedade, assim como as demais, que usufruem dos mesmos direitos de atendimento médico que têm as outras pessoa. Inclusive, esse é um dos princípios da dignidade da pessoa humana, que não é levada em conta se essa é ou não uma pessoa com deficiência”. 

Ela acrescenta que a omissão dos gestores é uma revolta que carrega todos que precisam de um serviço de saúde diferenciado. “A gestão pública tem a sua parcela de culpa, principalmente no que diz respeito à acessibilidade da mulher com deficiência aos serviços básicos de atendimento médico. Embora seja usado pela maioria da população, não vejo qualquer projeto que nos acolha de modo especial, dando a devida importância às nossas diferentes necessidades, muitas vezes nos tornando incapacitadas de receber um atendimento de qualidade.  Não visualizo avanço que nos faça acreditar que existe igualdade no atendimento a saúde da mulher com deficiência”, expressa.

Camila Morais, assistente social e palestrante educacional, também tem mobilidade reduzida. Para ela a ausência da visita do agente comunitário de saúde é um problema. Sempre que busca por um agente, recebe a orientação para ir até a UBS. Apesar dos diferentes tipos de deficiência, alguns problemas elas sofrem em comum: a questão da maca para exame ginecológico e quando precisam fazer serviços odontológicos.  

“O meu primeiro exame ginecológico não teve como ser feito na UBS, foi feito na minha casa. Outra vez, precisei ir ao dentista, o profissional fez o atendimento no meu próprio equipamento de locomoção, precisando ficar em uma posição desconfortável, mas efetuou o serviço pois viu que eu não poderia acessar a cadeira convencional que a UBS tem”, afirma. 

Sobre a sexualidade das mulheres com deficiência, a saúde sexual e reprodutiva, ela afirma que é preciso lidar com o despreparo dos profissionais, começa pela forma de abordagem. “Alguns profissionais, durante a consulta, não fazem referência ao atendimento a mim e sim ao meu/minha acompanhante, isso já mostrando uma percepção diante deles que não posso responder aqueles questionamentos e noto receio quando vão fazer perguntas em relação à atividade sexual, traduzindo uma ideia, ainda bem compartilhada, que nós, pessoas com deficiência, não podemos ter relações sexuais”, aborda. 

Lília, Yáscara e Camila concordam que existe um desinteresse em demandas consideradas específicas das pessoas com deficiência. Camila diz que já deixou de realizar exames por dificuldade no acesso aos equipamentos, isso tanto no SUS quanto na rede privada. “Quando vou fazer exames oftalmológicos, preciso de adequações durante todo o exame. Sempre preciso sentar no colo de alguém ou levar de casa algo que possa me deixar em uma altura maior para a realização desse exame”, explica. 

A visão correta de quem elas são seria um passo de mudança social, considera Camila.  Elas lutam para que sejam vista antes de pessoas com deficiência, como pessoas, principalmente, como mulheres. “Como qualquer outra cidadã, temos direitos e deveres. Devemos fazer esse trabalho de conscientização, ou seja, de que nossas deficiências são uma condição e não devem nos resumir somente a elas”, frisa.

Todas discutem e se indignam por serem invisibilizadas. “Há avanços, mas precisamos sempre estar reivindicando, alertando e mostrando que estamos aqui e somos usuárias de todos os espaços. Não é um favor e sim, um direito. Precisamos nos conscientizar e conscientizar as demais pessoas que somos cidadãs legítimas de direitos, como todas as outras”, finaliza Camila. 

 

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