Repentistas no Centro Cultural Grajaú - SP / Foto: Damariz Galvez

Mesa de Glosas e o protagonismo das mulheres do Pajeú na poesia improvisada

A cantoria de viola, a mesa de glosas, a arte do repente, tem um improviso que canta e encanta sobre os fatos e o dia a dia do nosso povo. Ora como expressão de felicidade, ora como lamento, ora como registro histórico, ora como diversão. Todavia, ao longo do tempo, esse segmento cultural da cantoria de viola, do repente, da literatura de cordel foi dominado pela figura masculina. Poetas, repentistas e escritores de cordel sempre existiram em grande quantidade. Mulheres, nesse ambiente, sempre foram algo raro de se encontrar, não porque não existia, mas por serem invisibilizadas.

É do Pajeú, território sertanejo localizado no Estado de Pernambuco que conta com dezessete municípios (todos referência quando estamos falando de poesia), que sai parte das vozes femininas do repente e que vêm se destacando pelo Brasil afora. Não à toa, o território é identificado por sua efervescência poética como “pajeúnica”. Trata-se de uma identidade histórica, tendo em vista que do Pajeú saíram outros nomes na arte de improvisar, tais como Severina Branca, Isabelly Moreira, Luzia Batista, Mocinha de Passira, que inclusive são nomes que as glosadoras da nova geração também levam junto para os espaços que ocupam atualmente. Nomes que são apresentados por meio de declamações de seus versos, para mostrar que as glosadoras mulheres sempre ocuparam esse espaço, mas que foram ofuscadas.

Luna Vitrolira, idealizadora do “Mulheres de Repente” / Foto: Damariz Galvez

Representatividade, existência, empoderamento, escrevivência, é tudo o que representa o projeto “Mulheres de Repente”, idealizado pela multiartista Luna Vitrolira, que já se revela como um dos instrumentos que vem dando um novo contexto a este cenário poético e mostrando a potência das glosadoras do sertão pernambucano na arte do improviso. As poetisas Francisca Araújo, Dayane Rocha, Elenilda Amaral e Erivoneide Amaral, com a mediação de Luna Vitrolira, já participaram do espetáculo “Mulheres de Repente”, no Centro Cultural do Grajaú, em São Paulo (SP); já estiveram em Salvador, no Museu de Arte; em Teresina (PI); na Festa Literária das Periferias e no Rio de Janeiro. Essas são oportunidades que marcam não só a carreira dessas mulheres como também a construção de um novo cenário dentro da poesia improvisada.

“A gente, hoje, marca muito forte a nossa existência. Somos nós contando a nossa própria história a partir das nossas próprias narrativas. Então, quando a gente amplia os espaços das mulheres na literatura, a gente está falando de uma voz que entra no espaço de disputa de narrativa para contar a sua versão da história, a sua perspectiva de mundo, a sua escrevivência, a partir do seu corpo, de suas marcas, de suas experiências, de seu lugar de fala”, destaca Luna.

O “Mulheres de Repente” surge para marcar o protagonismo feminino na arte do improviso. Ele nasce da vontade de difundir a poesia feita de improviso no sertão do Pajeú, no momento em que, segundo Luna, houve uma grande explosão da poesia falada, vinda das diversas periferias de todo o Brasil. A partir desse contexto, a multiartista começou a questionar sobre o porquê da literatura oral, da literatura de cordel, da cantoria de viola, da mesa de glosas, toda essa arte produzida no Pajeú, não poderia se projetar no meio dessas oportunidades e chegar aos vários estados brasileiros, considerando que o sertão é uma grande periferia também, um território que tem um contexto histórico difícil, e que é um território de povos originários, povos negros.

“A nossa cultura e nossa poética são totalmente fundamentadas nessa ancestralidade. Então eu comecei a perceber que, mesmo com toda a projeção da poesia falada, da poesia oral, da poética das vozes em vários territórios pelo Brasil, a partir desse lugar da periferia, o sertão, ele continuava sendo marginalizado, invisibilizado, como um território periférico, que realmente não é visto, não e considerado. A gente sabe que o Nordeste, e o sertão, sobretudo, ele ainda sofre o peso de muitas caricaturas a partir dessa imagem de seca, de miséria que foi criada. Então, pouco se olha pra nossa poética, para nossa cultura, para o que a gente tem de vida, de poesia, de vitalidade e de ebulição”, explica. Foram esses questionamentos que inspiraram Luna a fazer o “De Repente Uma Glosa”, projeto de circulação nacional, da mesa de glosas, mas que eram mesas mistas, com homens e mulheres.

Glosadoras do Pajeú durante espetáculo em São Paulo / Foto: Damariz Galvez

Quando começaram a circular, em 2016, existiam poucas mulheres nesses espaços, poucas mulheres glosadoras ocupando a mesa. “Então a gente começou em mesas mistas com Elenilda Amaral e Dayane Rocha, e aí foram surgindo outras poetisas improvisadoras e glosadoras, como Francisca Araújo, Erivoneide Amaral, Milene Augusto, Thaynnara Queiroz, e foi aí que a gente começou a sentir a necessidade de fazer mesas de glosas onde o protagonismo fosse feminino”, destaca.

Das modalidades poéticas, sobretudo a literatura que é feita no sertão, e mais ainda quando se fala da arte de improvisar, os homens são maioria, e por ser um espaço ocupado majoritariamente por homens, são poucas as mulheres que se sentem à vontade e que conseguem exercer a sua arte em meio a tantas opressões. A partir dessa realidade várias questões foram sendo observadas. “A gente foi percebendo que quando as pessoas construíam os motes (que são os assuntos, estrutura de dois versos a partir do qual as poetisas glosam), não se pensava a questão de gênero. Eram criados motes masculinos para as meninas glosarem no masculino. E a gente sabe que se o mote vem no masculino existe uma questão muito forte que é a limitação da rima. Se o adjetivo ou substantivo vem no masculino, para a mulher glosar ela vai usar uma voz masculina que não é a voz dela, não é a voz feminina. Então, começou a se questionar muitas coisas, na própria sistemática da mesa de glosa, a partir da questão de gênero”, detalha.

Percebendo o machismo durante as apresentações, segundo Luna, em alguns momentos foi necessário chamar a atenção dos improvisadores homens. Foi necessário pedir que atentassem para a representação das mulheres, alertando-os para o cuidado com os assuntos, o cuidado com os temas, para que não sejam temas misóginos, machistas, que vão desvalorizar a mulher, que não sejam motes apenas que tragam a voz masculina. “O que acontecia muitas vezes era a subversão do mote. Dayane Rocha muitas vezes encarou um mote que vinha num gênero masculino, ela transgredia, transformava o mote no gênero feminino e mudava todo o esquema de rima. Então ela fazia um improviso que se diferenciava na estrutura métrica dos outros, dos homens. Porque ela adaptava para a voz feminina, para a voz dela”, explicou.

Ainda sobre a importância do projeto, a idealizadora frisa a relevância de incentivar outras mulheres que queiram ecoar suas vozes, amplificar seus discursos. “Na mesa de glosas ampliamos esse debate de gênero pensando nas pessoas não binárias, que querem participar e que ainda se sentem limitadas e oprimidas como se aqueles espaços não lhe pertencessem. A gente vem buscando cada vez mais esse debate para trazer mais mulheres para dentro desse processo. Inclusive, temos feito projetos de formação pensando nisso”, relata.

Desafios enfrentados pelas improvisadoras quando a mesa de glosas é mista

Luna constata que existe um diferencial na questão do respeito e da cumplicidade que existe quando é uma mesa feminina, o que acaba não existindo quando a mesa é mista. “Mesmo que alguns poetas homens se esforcem, não consegue se ter uma cumplicidade de fato, real. Entre eles tem uma dinâmica e quando tem mulheres na mesa é como se eles não conseguissem lidar com a dinâmica diferente da deles. Então são muitos os conflitos, são muitas as barreiras que muitas vezes só sente a potência dessas barreiras quem está sentado à mesa. Ou seja, as mulheres glosadoras é que sentem na prática essas barreiras”, diz. Um exemplo vivenciado pelas meninas tem relação com o tempo de criação e elaboração de cada uma. Segundo ela, existe uma postura muito desrespeitosa com algumas glosadoras com relação ao tempo que elas levam para elaborar suas estrofes e isso gera um discurso de que os homens são mais ágeis, mas não avaliam o fato de que os homens estão há décadas glosando em atividade e com uma bagagem de tempo de experiência muito maior quando comparado com as mulheres que começaram a glosar há pouco tempo. “São dois pesos e duas medidas para a gente poder ter mais cuidado ao pensar nesse protagonismo feminino na mesa de glosas”, reconhece.

O diferencial de quando a mesa de glosas é composta só por mulheres existe também no que diz respeito aos temas abordados. Temas que nunca foram pautas nesse espaço como a maternidade, o machismo, liberdade da mulher, agora estão sendo trazidos para as mesas. “Muita coisa muda, mexe na estrutura, e se impede, inclusive, que motes, que são chamados de motes de gracejos, se utilizem da imagem da mulher para ‘tirar uma onda’, uma piada. É muito importante marcar esse lugar e honrar as várias mulheres repentistas que tiveram que passar por tantos desafios, para conseguir conquistar o direito de exercer sua sensibilidade artística, ser poeta, cantadora de viola, ser improvisadora e ser glosadora”, frisa.

Luna faz uma referência às repentistas que tiveram que enfrentar maiores desafios para se firmar nesses espaços, como Mocinha de Passira, uma renomada cantadora de viola de Pernambuco, que teve que fugir de casa para ser cantadora; e Luzia Batista, também uma repentista reconhecida, que teve sua viola de cantoria quebrada pelo marido e foi proibida de cantar. “Quando a gente vê hoje mulheres fazendo improviso na mesa de glosa e viajando por vários Estados do Brasil, isso é muito revolucionário”, festeja Luna.

A presença das mulheres na mesa de glosa ainda é considerada tímida. “Não somos poucas escritoras, escritoras somos várias, mas na mesa de glosa, hoje, somos apenas seis mulheres. Estamos com muita força, enfrentando desafios, enfrentando, às vezes, muito desrespeito, mas sempre com muito profissionalismo, marcando nossa presença com muita dignidade, com nossa integridade e sem permitir que sejamos subalternizadas nesse processo. A gente não se submete a absolutamente nada, a gente se posiciona. Quando a gente faz isso a gente se torna referência para outras mulheres que vão desejar estar e ocupar esses espaços e isso vai provocar essa ampliação, que é o que a gente busca”, fala a multiartista.

Sobre a circulação do projeto e a receptividade nos Estados brasileiros

O projeto já circulou em vários Estados brasileiros. Para a idealizadora as oportunidades de fazer o “Mulheres de Repente” são experiências gratificantes. “Em muitos lugares fora e até mesmo em Pernambuco muitas pessoas nunca ouviram falar e nunca assistiram uma mesa de glosas. Nunca testemunharam esse rebento do sagrado que é o improviso, então quando as pessoas se deparam com a mesa de glosas existe um encantamento muito forte. As pessoas ficam impressionadas. Existe uma contemplação muito bonita de perceber no público que fica esperando e observando as poetas pensando, elaborando, esperando que a poesia nasça e torcem muito por isso e sempre que o improviso é declamado existe uma vibração muito forte da plateia. Ficam impactadas”, discorre.

Em alguns espaços por onde passaram o projeto não houve, inicialmente, uma receptividade positiva, como no Sudeste, por exemplo. Segundo ela, em alguns lugares foi possível sentir um tratamento que veio junto com um certo preconceito, com uma visão pejorativa do popular. No entanto, apesar da primeira impressão vir de forma negativa, quando assistiam, tudo mudava, ficavam impressionados. Luna comenta que: “Já aconteceu de a gente chegar a espaços e ser muito bem recebidas, muito bem acolhidas, das pessoas amarem, vibrarem, comprarem os livros, seguirem as redes sociais e manterem contato com a gente, pesquisarem sobre outras poetas e sobre a região; e já aconteceu de a gente impressionar as pessoas dessa forma: não darem valor aquilo ali, e depois acham incrível.

Os desafios são muitos, porém, cientes da importância que tem o projeto as improvisadoras não tem baixado a cabeça. “É muito difícil às vezes lidar com essas oscilações. A gente entende demais como é que os nordestinos, pernambucanos, sertanejos, são vistos nesses lugares, porque existe uma ignorância muito grande sobre quem somos e ao mesmo tempo existe uma marginalização da nossa literatura, porque existe uma questão chamada epistemicídio mesmo e uma subalternização de toda literatura que é pautada na oralidade. Quando isso se soma a região, a raça, gênero, classe social, território, geografia, sotaque, a gente acaba tendo que enfrentar muitas barreira, mas a gente nunca abaixa a cabeça porque sabemos de nossa missão, sabemos o que estamos indo fazer e sabemos da importância desse projeto, importância de nossa resistência nossa voz”.

Origem da mesa de glosas e sua formação e sistematização

A mesa de glosa – glosar significa improvisar – surgiu das rodas de glosa. Essas rodas aconteciam depois que terminavam as apresentações de cantoria de viola. “Os poetas guardavam as violas, se juntavam em rodas na mesa do bar, alguém dava um mote, e eles faziam rodadas de improviso sem a viola; apenas como uma brincadeira de improvisar”, explica Luna.

Tabira foi a cidade que formalizou e sistematizou a mesa de glosa como um espetáculo de poesia improvisada com regras de funcionamento, em 1997. O fato aconteceu na missa do poeta. “A missa do poeta era feita em homenagem a Zé Marcolino em Serra Talhada, e quando a missa migra para Tabira, vira uma semana de celebração, uma semana de festividade em que a mesa de glosa se torna uma das atividades em homenagem a Zé Marcolino, que também era improvisador”, conta.

A estrutura é uma mesa retangular, onde as poetizas se sentam uma ao lado da outra. Além das poetas glosadoras, existe também uma mediadora coordenadora da mesa, que vai ser responsável por elaborar e dar os motes e conduzir a mesa durante toda a apresentação. Nessa estrutura, Luna explica que a quantidade de poetas é igual à quantidade de motes, que é igual à quantidade de rodadas. “Hoje existem seis mulheres glosadoras no Pajeú. Uma mesa com seis, serão seis motes e seis rodadas. Na mesa de glosas fazemos na estrutura de décimas, ou seja, estrofe de dez versos, com sete silabas poéticas na estrutura de rima. Aí, dessa estrutura de rima, os dois últimos versos fecham a décima: é justamente o mote. Então as poetas escrevem oito versos, e fecham a décima com o mote que são os dois versos restantes”, detalha.

Mulheres de Repente preparam livro, documentário e site

Além do espetáculo da mesa de glosas que corre pelo País, as poetisas estão para produzir um livro sobre a mesa de glosa que vai abordar a sua origem, funcionamento, as mulheres de repente e, junto com o livro, a criação de um “site” onde será disponibilizado material de acesso para as pessoas que queiram conhecer mais sobre as poetisas, sobre o repente, sobre a glosa, o improviso, sobre o Pajeú. A ideia é tornar acessível a arte que é produzida no Pajeú. Também será produzido um documentário sobre o “Mulheres de Repente” e a sua atuação. Fora tudo isso, existe o projeto de formação destinado às mulheres que queiram aprender a glosar, que tenham interesse em escrever, que queiram aprender mais sobre a técnica do improviso ou apenas conhecer a modalidade.

O sucesso do projeto Mulheres de Repente segue caminho e já tem as próximas paradas para o ano de 2022: participarão na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) e na Festa Literária das Periferias (FLUP).

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram