A ideia do “instinto materno” e da plenitude da maternidade ainda estão impregnadas na nossa sociedade. Mas, nem toda mulher deseja ser mãe e “tá tudo bem”, ou pelo menos deveria estar. O problema é que ser mulher e fugir da expectativa social é ter que lidar com julgamentos, e no caso da maternidade não é diferente.
As mulheres que não querem ter filhos e até mesmo as que querem, mas ainda não planejaram estão cansadas de ouvir o “quem vai cuidar de você na velhice?”, “a mulher só conhece o amor verdadeiro depois que é mãe”, “você só vai se realizar como mulher depois que for mãe”. Isso, além de serem referenciadas como egoístas, frias, que não gostam de criança. As cobranças em torno das mulheres para que elas tenham filhos são muitas. No entanto, sobre gerar, criar, educar e até mesmo sobre a exaustão da maternidade, muitas vezes sem uma rede de apoio, pouco se fala.
A pedagoga Mariana Brilhante, 44 anos, não tem dúvida de que a maternidade não faz parte dos seus planos. Ela afirma não sentir o famoso “instinto materno”. Não há uma razão específica que justifique essa decisão de não ter filhos, a não ser o fato de simplesmente não sentir vontade.
“Não sou contra a maternidade e nem questiono mulheres que querem ter filhos, é um direito delas essa opção. Mas acho que quem não tem esse mesmo desejo precisa e deve ser respeitada. Acredito que maternidade foi imposta por uma sociedade que propaga a ideia de que a mulher só é mais mulher quando é mãe, e quem não tem filhos tem uma vida ruim, pois acreditam que a felicidade da mulher está ligada a um filho”, diz.
Mariana conta que as críticas e opiniões, inclusive invasivas, chegam tanto de pessoas com quem ela não tem intimidade quanto de pessoas próximas. “Eu já ouvi de alguém que eu amo muito que eu sou infeliz e seca porque não tenho filho. Isso machuca muito, e não é verdade que somos menos sensíveis só por não querermos ser mãe. Eu já ouvi muitas mulheres que são mães dizerem que se pudessem voltar atrás nunca teriam tido filhos. Mas acredito que a sociedade trata dessa questão com muita complexidade e tabu”, frisa.
As discussões sobre essa temática geram estresse para as mulheres, que não raro são expostas a situações constrangedoras. Ainda de acordo com Mariana, um comentário comum que sempre chega é que ela vai se arrepender de não ter tido filhos quando se deparar com a solidão na velhice. “Como se filhos fossem garantia de que não seremos sozinhas na finitude da vida. Se isso fosse regra, as casas de acolhimento para idosos não estariam cheias de pais órfãos de filhos”, destaca.
Ela desconstrói a ideia de que não querer ser mãe significa não gostar de criança. “Eu gosto muito de criança, amo minhas sobrinhas, meus alunos, fico com eles algumas horas, me apego, mas não sinto desejo de ser mãe e me angustia muito a forma como as crianças de hoje vivem. Eu não gostaria de ter tido filho na situação em que vivemos nessa última década. Tenho visto muitas crianças nascendo com transtornos, pais que precisam dedicar suas vidas exclusivamente aos filhos. Me conforta saber que não fiz essa escolha e quero ser respeitada por ela”, relata.
A assistente social Irys Cardoso Dantas, 34 anos, disse que ser mãe ainda não está nos planos, embora não descarte a ideia de um dia vir a ser. Porém, as cobranças e questionamentos chegaram desde que Irys pôs os pés “na casa dos 30”. “Já tá na idade de ter filho” é o que ela mais escuta.
Os questionamentos não chegam acompanhados de uma avaliação sobre o contexto de vida da mulher, é como se ser mãe só dependesse da idade e do desejo. Comentários semelhantes aos que são direcionados à Mariana, Irys e a tantas mulheres que tomam a mesma decisão mostram o quanto a maternidade é vista quase como uma obrigação quando se é mulher. Inclusive, uma pressão social que não atinge os homens.
Irys defende que ser mãe não depende só de desejar ou cumprir com uma obrigação imposta, existem inúmeros fatores pelos quais ela ainda não pensa e nem deseja ter filhos. “Me perguntam muito quem vai cuidar de mim quando eu envelhecer. Ter filho não garante que teremos quem cuide da gente. Eu vejo no meu trabalho na área da assistência social muitos casos de abandono de idosos, mesmo os que têm vários filhos”, relata.
A assistente social acrescenta que “a maternidade é uma responsabilidade muito grande e eu não me sinto preparada para criar e educar outra pessoa. Eu falo sempre: não sei cuidar de mim, imagina de uma criança. Mas muitas falam que a agente aprende com o tempo, que é um amor incondicional. Quero sentir um dia, mas não sem ter como dar subsídios a ela. Enfim, são muitos questionamentos que se passam na minha cabeça, não quero ter filho só por ter ou porque a sociedade diz que eu tenho que ter. Quero estar preparada, me sentir preparada para que eu possa ser a melhor mãe que eu puder”, diz.
Pesquisadora fala sobre a pressão em torno da maternidade
A Revista Matracas conversou com a pesquisadora Ana Luíza de Figueiredo Souza (analuiza.dfigsouza) autora do livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais”, sobre a maternidade compulsória. Ela explica de que maneira essa pressão foi estruturada na nossa sociedade e como ela atinge de uma forma ou de outra a todas as mulheres.
Revista Matracas: O que significa maternidade compulsória?
Ana Luiza de Figueiredo Souza: O mais importante é entender que a maternidade compulsória não se resume a um fator específico. Ela é um somatório de elementos (socioculturais, políticos, econômicos, médicos, religiosos, afetivos) que criam conjunturas que fazem com que a maternidade pareça — e, muitas vezes, se torne — a única opção possível para as mulheres. Essa compulsoriedade envolve desde macroestruturas (aquilo que se relaciona ao poder público, às políticas públicas, às esferas legislativa e jurídica, à maneira como nos organizamos enquanto sociedade civil, à cultura hegemônica, às representações midiáticas, ao imaginário coletivo) até microestruturas (aquilo que se relaciona à família, aos círculos sociais, aos relacionamentos afetivos, à construção subjetiva, ao planejamento de vida dos indivíduos), sendo que essas estruturas se perpassam. Por exemplo, um médico que, por crenças pessoais, se recusa a realizar a laqueadura de uma paciente ou a colocar um DIU em outra paciente. Uma família que, por estar inserida em um contexto maternalista, estimula a filha de oito anos a brincar de mamãe, desencorajando o interesse por algo além da maternidade.
Revista Matracas: Como ela afeta as mulheres na nossa sociedade. Não só as que não desejam ter filhos, mas também aquelas que apenas não consideram que seja o momento de ter, porém também sofrem a pressão social?
Ana Luiza de Figueiredo Souza: A maternidade compulsória afeta a todas nós, de forma mais ou menos intensa. Tecnicamente, uma mulher que deseja filhos no futuro, mas acha que ainda não seja o momento para os ter, se mantém dentro da normatividade materna. Ela quer virar mãe, cumpre a expectativa normativa. Pode sentir uma cobrança mais interna, no sentido de querer algo que ainda não consegue realizar. Por sua vez, expressar a falta de desejo de se tornar mãe configura uma transgressão a essa normatividade. Apesar de a não maternidade ser mais aceita em determinados círculos sociais, não vem sem pressões ou agressões. Em geral, se entende que a falta de filhos precisa ser “compensada” de alguma maneira. Isso vale tanto para aquelas que não desejam ser mães quanto para as que ainda estão indecisas ou que esperam o melhor momento para isso. Já que elas não têm filhos, então “devem” estar disponíveis para atender às necessidades de pais/mães/responsáveis, ser maternais, saber lidar bem com crianças e adolescentes, entre outras demandas. O que não raramente se converte em fonte de novas insistências para que tenham filhos logo ou que mudem de ideia sobre permanecer sem eles.
Revista Matracas: Como a pressão social em torno dessa ideia de que a mulher tem que parir chega às mulheres lésbicas?
Ana Luiza de Figueiredo Souza: Com mulheres lésbicas (e de outros grupos minoritários), se faz presente a necessidade de mostrar que podem ser mães tão valorosas quanto as mães preconizadas pelos modelos maternos hegemônicos. A imagem familiar tradicional — embora distinta do que sempre existiu ao longo da nossa história enquanto país —, consiste em um pai, uma mãe e seus filhos biológicos. Fugir disso, ainda que não seja incomum, gera preconceitos, violências, dificuldades. Percebo três tentativas vindas de mulheres que pertencem a grupos divergentes da norma, entre elas, as lésbicas. Uma é a de se aproximar, conscientemente ou não, o máximo possível daquilo que foi estabelecido como “ideal”, de comportamentos normativos. Outra é a de se distanciar desses modelos e seguir apenas aquilo que faz sentido para si mesmas (suas concepções do que seria uma mulher, uma mãe, uma família, criação dos filhos etc.), já que tais modelos não as acolhem. A terceira é a de negociar entre a normatividade materna e as preferências/possibilidades pessoais. Esta última acaba sendo a via percorrida por número expressivo de mulheres, sejam lésbicas ou não. Fato é que uma mulher lésbica pode ser mãe biológica (muitas, inclusive, investem altos valores para isso), ter os filhos por meio do parto, adotar e/ou exercer a maternidade solo. Uma experiência não impede a outra.
Revista Matracas: Como desconstruir essa ideia de que a maternidade é o meio de alcançar o ápice da vida das mulheres? Podemos relacionar essa cultura ao sistema patriarcal, capitalista?
Ana Luiza de Figueiredo Souza: O capitalismo nasceu no patriarcado, mais especificamente o patriarcado branco. Portanto, é um sistema intrinsecamente misógino, racista, sexista. Além de predatório no que se refere ao impacto socioambiental que ocasiona. Verdade seja dita, o número de pessoas que se beneficiam da soma dessas mazelas é muito restrito. Se queremos combater a ideologia maternalista, a maternidade compulsória, temos que entender que esse empenho também precisa enfrentar as estruturas que as sustentam. Entre elas, a misoginia, o racismo, o sexismo e esse modelo socioeconômico que, além de utilizar e reforçar preconceitos e violências há muito enraizados, está levando o planeta ao colapso. Acredito que a luta perde muito quando a restringimos a uma só esfera de enfrentamento. Ou contra a maternidade compulsória. Ou contra a misoginia. Ou contra o racismo. Ou contra a degradação ambiental. Ou pelos direitos das pessoas com filhos ou pelos direitos das pessoas sem filhos. Não se trata de “ou”, mas de “e”. São demandas que caminham juntas. Se contempladas, construiriam uma coletividade mais justa, para todos os seres vivos.
Revista Matracas: Sobre a romantização do que é ser mãe.
Ana Luiza de Figueiredo Souza: Nas nossas culturas e sociedades hegemônicas, que são patriarcais, ser mãe é colocado como aquilo que todas as mulheres deveriam ser, algo que nasceram para se tornar. Mesmo em culturas e sociedades fora desses modelos hegemônicos, a figura da mãe é valorizada, até reverenciada. A mãe é mais importante. É mais forte. É mais realizada. É digna de ser exemplo. Tem mais companhia. É mais sábia. Existe a crença generalizada de que ter filhos marca o amadurecimento da mulher, o que a transforma em uma adulta “de verdade”. Então muito da romantização do que é ser mãe vem da reprovação da vida enquanto mulher sem filhos, como se fosse menor. No entanto, essa romantização da maternidade guarda armadilhas. Em contextos patriarcais e misóginos, o valor feminino se dá na medida em que a mulher se torna útil a terceiros. Desempenha função servil. Não à toa aquelas que não viram ou não querem virar mães são o tempo inteiro interpeladas para que maternem. Então o que é valorizado é essa função servil, mais do que a mulher-mãe em si. Aí mora o perigo. Primeiro porque, mesmo sem filhos, se torna difícil escapar dessa lógica maternalista. Ela também engloba as não mães, existe a expectativa de que estejam à disposição de pais/mães e seus filhos. Segundo porque, se a maternidade é algo que todas as mulheres nasceram para desempenhar, “não precisam” de assistência do poder público nem da sociedade civil na maternagem, pois “já sabem o que fazer”. Se não sabem, “deveriam saber”, isso é um “problema só delas”. A maternidade acaba sendo tratada majoritariamente no campo individual, em vez de enquanto questão coletiva, que necessita de amparo do Estado. Também é tratada como uma espécie de bênção, pela qual as mães deveriam ser eternamente gratas, suprimindo críticas, reclamações, dores. E muito disso vem da romantização que a rodeia.
Sobre Ana Luiza
Ana Luiza de Figueiredo Souza é mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM UFF), sendo graduada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela UFRJ. Gestora de Produção de Conteúdo e Editoração do GP Tecnologias e Culturas Digitais da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Coordenadora da equipe de revisão da revista Contracampo. Integrante do grupo de pesquisa MiDICom. Consultora acadêmica e literária. Autora do livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais. O livro apresenta e expande os principais resultados de sua pesquisa de mestrado, vencedora do Prêmio Compós. Seus trabalhos e reflexões podem ser acessados no site www.analuizadefigueiredosouza.com.br , bem como em suas contas nas mídias sociais.