Márcia Eurico fala sobre sua pesquisa e livro “Racismo na Infância”

 

Os danos psicológicos decorrentes da violência racista vivida na primeira infância são invisibilizados, mas o fato é que essa violência marca a história das crianças e adolescentes negras para toda a vida. O racismo, desde as expressões mais explícitas às mais sutis, chega nas crianças negras logo na primeira infância e, apesar da gravidade social que essa realidade sustenta, o debate ainda é tímido.  

Para falar sobre o racismo na infância, recorremos à pesquisadora e assistente social Márcia Campos Eurico, autora do livro “Racismo na Infância”, publicado pela Editora Cortez e lançado em 2020 (link da live de lançamento – https://www.youtube.com/watch?v=e3f_-taoshQ), que debate a intersecção entre racismo e infância. Uma obra essencial, fruto de sua tese de doutorado, e que já é referência quando precisamos dialogar sobre essa questão e os impactos dela na vida das crianças e adolescentes negras. Um livro que chegou dando voz às crianças negras que são silenciadas em suas vivências, focando no racismo estrutural e institucional.  

O racismo na primeira infância e juventude ainda é pouco discutido. Essa é uma constatação de Márcia que é professora, mestre e doutora em Serviço Social pela PUC-SP e pós-doutoranda pela PUC-RJ. Segundo ela, a obra tem uma proposta de ser um instrumento de trabalho que possa levar a sociedade a pensar em como estamos vendo as crianças negras, com uma proposta de ampliar o debate sobre essa realidade, considerando que há um silêncio que permeia a violência racial na primeira infância e que isso tem consequências graves.  

O livro nos chama a atenção para o fato de que as crianças e adolescentes negras institucionalizadas precisam muito mais do que os cuidados práticos e objetivos. Ela enfatiza que “é preciso que essas crianças sejam vistas como sujeitos em totalidades, que precisam de afeto, de atenção, que tem deveres, mas também vontades”. Essa observação da pesquisadora baseia-se, entre outras constatações em relação ao sistema da política de assistência, nas constantes declarações que ouviu durante o processo de pesquisa: a de que as crianças nesses espaços estão seguras porque  têm comida, têm um teto, têm uma cama para dormir, o que para a pesquisadora é importante, porém “é o mínimo que essas crianças precisam ter”.

Foram várias inquietações que motivaram a pesquisadora. Questionamentos como: “por que crianças e adolescentes negras são as mais institucionalizadas no Brasil? Por que elas têm menos possibilidades de adoção?” Umas das questões recorrentes é que as famílias não querem crianças negras. Segundo Márcia “uma parcela expressiva de famílias ou de candidatos e candidatas à adoção, no momento de preencher o formulário, o cadastro de adoção, elas referem que não querem uma criança negra, mas que muitas vezes aceitam uma criança parda, como se a criança parda não portasse essas mesma negritude”, frisa. 

A partir dessa realidade, a professora começou a questionar “como é que essas essas crianças se sentem vendo outras crianças chegarem e partirem, ou de volta pros seus lares ou pra uma família adotiva, e essas crianças estão ali de alguma maneira e silenciosamente, percebem que elas estão ali por conta da cor da pele, por conta da sua origem  racial. esse foi o disparador”, conta.  

A pesquisa foi feita em duas instituições de acolhimento em São Paulo, com quatro equipes, durante oito meses. A metodologia utilizada foi a Grupo Focal, com o grupo operacional dessas instituições, profissionais dos serviços que são executados diretos com as crianças, tendo em vista que estes eram os que tinham maior vivência e relação de proximidade com essas crianças e adolescentes. Foram ouvidos profissionais de todos os níveis de atendimento e, a partir do conhecimento do cotidiano dessas instituições, dos relatos dos entrevistados, a pesquisa conclui que, entre outras falhas na política de assistência, falta debate racial, falta formação dos profissionais no sentido de que, nem todos os profissionais que chegam as instituições de acolhimento estão preparados para cuidar de uma criança e de um adolescente que tiveram situações de violência, de abandono, de negligência ou que foram invisibilizadas pelo racismo e caíram no serviço de acolhimento institucional. “Falta verba para pensar o cotidiano e estrutura mínima, falta espaço para ser escutado enquanto profissional”, acrescenta. 

Para Márcia foram realidades duras de ouvir e constatar. Com o cuidado de deixar claro que o livro não tem a intenção de desqualificar o trabalho exercido pelas instituições de acolhimento, ela reforça que a ideia é contribuir com o debate em torno do cuidado na infância e adolescência, ampliando a dimensão racial e de gênero. 

“A violência racial atinge todas as faixas etárias, mas a criança e o adolescente são pessoas em desenvolvimento, que precisam de afeto, que exigem o cuidado do adulto. Quando o cuidado vem recheado de preconceito, de discriminação, de descaso, em relação a esse corpo, por ser um corpo negro, a gente não faz ideia das dores que vão sendo produzidas na trajetória dessa criança e desse adolescente”, destaca. 

Márcia afirma ainda que, a importância de se discutir a violência racial na infância está relacionada ao fato de que todas as outras discussões como, encarceramento na juventude, ato infracional, medida socioeducativa, medidas de internação são debates que precisam considerar o racismo na infância.  

O título vem mostrar o quanto a sociedade está errando no cuidado com uma criança negra, quando se percebe, conforme explica a pesquisadora, que o mesmo direito que uma criança branca tem de permanecer pouco tempo na institucionalização, a criança negra também tem. Márcia enxerga essa realidade, a partir de seus estudos, que a estrutura racista continua vendo os corpos da criança e adolescente negros como são corpos que suportam a dor. 

A obra também aborda a questão de que as famílias mais punidas pelo sistema de garantias de direitos são as famílias negras e, conforme ressaltou, os sujeitos mais punidos são as crianças e os adolescentes negros. 

A pesquisadora finaliza dizendo que a análise do racismo é fundamental para que se entenda que racismo não é bullying. “As duas formas de violência precisam ser coibidas, rechaçadas, mas o racismo tem mecanismo de letalidade, de destruição, da vida, não só da morte, porque produz marcas”, diz.  

 Sobre a autora e o movimento #MarciaFica

Márcia Eurico, mulher preta e periférica, é referência no debate sobre a questão racial pela sua trajetória de pesquisa. Atualmente é professora na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus da Baixada Santista, e recentemente recebeu o prêmio Benedicto Galvão, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-São Paulo), que dá destaque à obra o “Racismo na Infância”.  

Em 2018 a PUC-SP ficou ocupada pelos alunos por quase uma semana, no movimento intitulado #MarciaFica! A mobilização reivindicava a permanência da professora no Curso de Graduação em Serviço Social, ao denunciar como o racismo institucional está impregnado nas universidades. 

O movimento trazia à tona a dura realidade de que o Curso de Serviço Social nunca teve em seu corpo docente uma professora (o/e) efetiva (o/e) negra (o/e) em seus mais de 70 anos de existência.

 

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