Casamento às cegas, machismo à vista

Não é de hoje que namoro e casamento são ingredientes do espetáculo televisivo. Quando, no início do século XX, as estrelas de cinema começaram a se tornar celebridades, tendo suas vidas documentadas e invejadas, casamentos e relacionamentos se tornaram objeto de cobertura da mídia.

O casamento como final exemplar de alguns célebres contos de fada data do século XII. Mas a experiência da mística do casamento como clímax foi incorporada pelas narrativas midiáticas com intensidade ainda maior. Deste modo, Branca de Neve, da Disney, se tornou o desenho animado que proporcionalmente mais arrecadou bilheteria na história do cinema. Inaugurando uma série de roteiros com o mesmo ponto alto: a subida da monarquia ao altar.

Mesmo passadas muitas décadas, com debates sociais sobre desigualdade de gênero e monogamia cada vez mais sofisticados, o casamento como sinônimo de final feliz é uma fórmula que, surpreendentemente, mantém o seu fascínio. Basta ter mais de trinta e cinco anos para lembrar do volumoso e interminável véu da princesa Diana Spencer subindo as escadarias da Catedral de São Paulo, em Londres, na sua internacionalmente transmitida boda com o príncipe Charles, herdeiro da coroa britânica.

Romances impulsionaram a venda de publicações e filmes há mais de um século. E o casamento é o episódio de consagração social que renova a aspiração em torno dos contos de fadas, uma espécie de elo perdido do amor romântico que a cultura da mídia insiste em perseguir.

Mesmo que, após o final apoteótico, os casamentos midiáticos não preservem sua premissa de idílio entre um casal – basta ver o trágico desfecho da história de Charles e Diana –, a narrativa em torno de dois seres supostamente predestinados a serem “felizes para sempre” segue um elemento extremamente mobilizador da audiência.

Um exemplo disso é o reality Casamento às cegas Brasil, versão nacional de mais uma franquia da Endemol (mesma do Big Brother), armazenada no serviço de streaming da Netflix, desde o início de outubro.

O programa mistura os rituais de confinamento próprios a outros de seu gênero, que estimulam a competição entre pessoas colocadas em situações restritivas, à semi-infalível estética dos contos de fadas, para promover um “namoro na TV” extremo. Os e as participantes apostam todas as suas fichas numa conquista afetiva que consiste em experimentar as emoções de tentar se apaixonar por um indivíduo com o qual terão contato apenas através da voz, separados pela parede de uma cabine. E decidir, em poucos dias, se querem ou não casar com o tal ou a tal escolhida.

Dentro das cabines, não podem falar de política, nem dar pistas de suas características físicas. E tem o prazo de pouco mais de uma semana para dar match ou descartar as vozes em campo. Num processo de gamificação do amor, usam blocos de anotações para identificar as vantagens dos e das pretendentes, e tentam conquistar pontos buscando afinidade com seus parceiros e parceiras. Como num jogo de tabuleiro, ganha quem tem mais pontos.  Um riso mais alto, uma voz mais estridente, gostar de vinho, de cavalos ou ter morado no exterior se convertem em um cheque mate. Diante de opções pouco diversas e pouco tempo para reconhecer alguma intimidade, é normal que alguns participantes entrem em disputas.

Nas ante salas, mulheres e homens separam-se pelo gênero e interagem entre si. O programa é abertamente heteronormativo, não há casais homo e lesboafetivos ou não binários. No processo de reconhecimento, tornam-se competidores. As mulheres saem de cena magoadas quando dividem o interesse amoroso, os homens se apaixonam perdidamente por aquelas que atraíram a atenção de outro companheiro de jornada.

A atração física suceder o contato restrito, quando se encontram pessoalmente, não chega a surpreender. O aceite do casamento é feito às cegas, a escolha de elenco, não. Todos e todas ali parecem ter saído de um editorial de moda, com algumas raras pinceladas de diversidade. Há participantes negros e um imigrante persa. Mas todos com corpos P, no máximo um M. E visuais bastante instagramáveis.

Entretanto, o que já começa estranho e suspeito torna-se um verdadeiro show de horrores quando os casais, após se conhecerem pessoalmente, passam a dividir intimidade física e experimentar a convivência. As desigualdades começam a se acentuar e o programa assenta numa estrutura machista que é dolorosa de assistir.

A moça espontânea de riso solto que não conhecia muitos países e gastronomia judaica se torna, de repente, “chucra e pegajosa”, além de ter seus hábitos de arrumação enquadrados pelo eventual companheiro. A modelo bonitona e mãe solo que diz que precisa de alguém que goste de crianças é ridicularizada com as câmeras desligadas e assiste sua filha ser quase completamente ignorada pelo pretendente.

A gaúcha que achava ter encontrado um amor de outras vidas porque conheceu um rapaz que também havia morado no exterior, escuta do mesmo cara que dizia ser sua alma gêmea que ela seria “seu eu masculino piorado”, entre outros desaforos sobre seu trabalho, sua autonomia e seu passado, que parecem saídos de um manual de comportamento machista do século XIX.

A espera pelo famigerado dia do casamento é antecedida por ofensas e abuso psicológico. A violência sutil de proibir que a mulher beba ou fume. O aparentemente defasado gesto de se gabar do que fez na cama. Uma cartilha de ressalvas que coloca os personagens masculinos num lugar de controle, depois de exercerem suas conquistas.

A socióloga israelense Eva Illouz diz que o capitalismo colonizou o amor. Para ela, vivemos relações hiperssexualizadas, nas quais a autonomia sexual e financeira das mulheres é repreendida por uma indiferença afetiva masculina, num modo de adequar as desigualdades de gênero a este novo cenário.

Em casamento às cegas, tal revide, como instrumento de dominação e controle dos corpos das mulheres, é evidente. Uma das participantes, possivelmente a mais romântica e idealizadora do grupo de cinco finalistas, lamenta que, enquanto ela tem planos para o futuro, o parceiro age como se estivesse em final de campeonato. Mas, ele está, e seja qual for o desfecho, dificilmente será perdedor.

Perdemos, todas as mulheres, ao perceber que o elo perdido do amor romântico é tão facilmente fabricado e manipulado por figurinos e cenários que se constroem em torno de situações absolutamente desprezíveis para nós. As participantes choram ao se verem cobertas com a indumentária dos vestidos de noiva. Sobretudo aquelas que decidem, no altar, dizer um sonoro não – para uma grande parte do público este, sim, o ponto alto do reality.

No “felizes para sempre” do reality brasileiro, 3 casais disseram “sim” na cerimônia roteirizada. Destes, dizem os fofoqueiros de plantão, dois teriam terminado em seguida, um deles por telefone. O reality ganhou fãs e está virando um cult nacional. Ainda que muitos dos participantes polêmicos estejam sendo xingados na internet (não vou mentir que é uma delicinha ler pelo menos os comentários de “chernoboy”, “boy lixo” e “macho escroto” depois de presenciar tanta violência impune), a grande maioria está comemorando as centenas de milhares de seguidores que ganharam com a exposição.

Em muitos perfis nas redes sociais, observamos que eles e elas estão creditados como “ator”, “modelo” ou até mesmo “apresentador de TV”. O que passa a ideia de que o programa, como tantos outros do tipo, foi apenas um trampolim.

Para todos e todas nós, simples mortais, que ainda tentamos (cof, cof) acreditar no amor e sobreviver à decadência dos aplicativos de paquera, Casamento às cegas é uma sacudida. Nos convoca a não construirmos nossa realidade sobre contos de fadas.

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