A FEMINILIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO EM DESCOMPASSO COM A VIDA DAS MULHERES

“Precisamos encorajar mais mulheres a se atreverem a mudar o mundo”.
(Chimamanda Adichie Ngozi)
Recebi com muita honra o convite pela Revista Matracas, para contribuir com o debate, político e teórico a partir de nossas experiências e reflexões sobre o tema da educação, analisadas em contexto das diversas interseções que cruzam nosso papel político e pedagógico, em nosso fazer docente. Questões, que são atravessadas por decisões políticas e conjunturais, que de conjunto invisibilizam e excluem a participação das mulheres, suas lutas e conquistas das tomadas de decisões. E dentre tantos temas que circundam minha militância profissional e política, iniciei minha escrita, falando justamente desse lugar que as mulheres ocupam no magistério, sua importância, e representatividade na profissão, além de ressaltar o descompasso dessa maioria representada com sua realidade. Espero que nos acompanhem neste diálogo e que nos enviem, sugestões e contribuições sobre os temas propostos, para estabelecermos essa troca dialética entre os textos aqui apresentados.
Pois, bem, início o texto destacando a citação da escritora Nigeriana
Chimamanda Ngozi, onde ela destaca a importância de incentivarmos mulheres a mudar o mundo, o que precisamos estabelecer diariamente como princípio de nossas ações em todos os espaços que ocupamos, para que mais mulheres estejam presentes e representadas. e que assim, contribuam para transformar esta realidade tão adversa e desigual que as mulheres se encontram, apesar das significativas mudanças, políticas e estruturais já conquistadas.
As mulheres são maioria no magistério brasileiro, todos nós sabemos disso, pois, representam mais de 83% das professoras no magistério na Educação Básica, segundo os dados do Censo Escolar de 2019. O que precisamos saber é se, sendo a maioria no magistério, elas possuem alguma atenção e valorização referente as questões que envolvem sua vida cotidiana na profissão, como o tema do trabalho doméstico e a vida profissional, relacionados à saúde e ainda quanto a valorização profissional. Estas questões permeiam seu cotidiano escolar e ficam na
invisibilidade dos órgãos públicos quanto a atenção e prioridade que deveriam ter por serem maioria na profissão.
O documento “Perfil do Professor da Educação Básica”, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), em 2018, que teve como base o Censo Escolar de 2017, afirma que as mulheres representam 81% do segmento profissional, configurando- se como maioria, desde a Educação infantil até as etapas finais do Ensino Fundamental. Sendo que no ensino Médio este percentual vai se modificando com a presença masculina neste nível de ensino, onde, elas representam 59% deste contingente profissional nesta etapa escolar. O que nos cabe refletir sobre este contexto, e o que gera esse fenômeno da feminização do magistério? Como se forma esta maioria e por que o magistério se torna uma profissão prioritária para estas mulheres? E como este fenômeno se articula com a vida das mulheres? E o que vamos buscar dialogar sobre o tema em questão.
Começo destacando que a feminização do magistério, tem bases históricas e políticas, e se acentuou no Brasil, a partir da década de 90, quando da entrada das mulheres na profissão. Louro (2009), afirma que nas décadas finais do século XIX, apontam, pois: para a necessidade da “educação da mulher”, vinculando-a a modernização da sociedade, a higienização da família, e a construção da cidadania e dos jovens. É neste contexto, que surge a “educação da mulher”, associada aos “cuidados da família”, como responsável pela educação dos filhos e filhas, providas de valores morais e cristão, se configurando como pilar e sustentáculo da família, cabendo a ela a harmonia neste ambiente.
É muito interessante que as mulheres foram “permitidas” ao ingresso na carreira do magistério na época, desde que cumprissem com estes requisitos, definidos como essenciais para ela ingressar na profissão, o que não era exigido na mesma proporção aos homens professores que assumiam o magistério à época. Além do que, as escolas femininas, as chamadas “Escolas Normais”, apresentavam disciplinas nos seus currículos que reforçaram ainda mais este papel e concepção
do magistério, vinculada ao cuidado doméstico e da família. As disciplinas como psicologia, puericultura e economia doméstica, dentre outras, estabelecendo o diferencial na formação profissional entre homens e mulheres, ratificando o magistério como uma extensão da maternidade, (Louro, 2019), sendo compreendido como uma aptidão natural e quase vocacional do cuidado das mulheres com as crianças. E a partir daí iniciamos o processo de feminilização do magistério com a
predominância feminina em todas as áreas de ensino, especialmente na educação infantil.
O que podemos comprovar atualmente, através dos dados apresentado pelo INEP, em 2018, onde destaca que 96% do magistério na educação infantil é do sexo feminino. Por que será que a maioria são mulheres, neste nível de ensino? Será que ainda hoje estes valores e características, estão vinculados às “aptidões femininas”, que tem este requisito para acesso a este nível de ensino? Ou as aptidões como os cuidados com as crianças e adolescentes, ainda estão vinculados a figura materna que as mulheres expressam na educação? O que pode vir a responder pelo número expressivos de mulheres na profissão.
Neste sentido, de acordo com LOURO (2019), o magistério passou a ser uma profissão tipicamente feminina, onde as mulheres, “apresentavam” as características necessárias para o exercício da docência como “ paciência, amorosidade, bondade e afetividade.ao exercício da profissão, fundamento este que levou muito dos homens a justificarem sua saída da profissão e buscar outras profissões que fossem mais rentosas, abrindo o campo para a feminilização do magistério e consequentemente a desvalorização da profissão, com a pouca atratividade e interesse pela mesma, inclusive nos dias de hoje! O que apesar de se tornar um reduto majoritariamente feminino, não está isenta das desigualdades e discriminações que ocorrem nas outras profissões, relacionadas a pirâmide ocupacional, como aponta, Bruschini e Amado (2018).
Exemplificamos, para isso, a consequente redução das mulheres professoras no magistério superior, segundo dados do INEP de 2019, justamente onde os salários são maiores, inclusive contrariando os dados referentes à formação superior, onde as mulheres representam 46%8 dos formados, tanto nos cursos de Graduação e Pós-graduação. Por isso, nos questionamos, por que as mulheres, que têm o maior nível de escolaridade e formação, não são maioria nesses níveis de ensino?
Pois bem, precisamos avançar neste debate e incidir efetivamente em defesa e apoio das políticas públicas junto a estes segmentos, pois quando problematizamos no que se refere, a feminização do magistério, e o descompasso com a vidas das mulheres, nos referimos a essas desigualdades estabelecidas no campo social, político e cultural, fato estes que afetam sobremaneira a vida das mulheres professoras, principalmente as professoras negras, que ainda vem o peso do racismo estrutural, hierarquizando e pautando as opressões e discriminações de
gênero, que vivenciam em seu dia a dia e que bem conhecemos. Neste sentido, destacaremos alguns dos fatores, responsáveis por estas desigualdades e que impulsionam esta realidade; como as desigualdades salariais, a sobrecarga do trabalho doméstico vinculado à jornada de trabalho; a falta de representatividade política nos cargos de gestão, todos estes associados às desigualdades de gênero e raça.
O Censo Escolar de 2020, publicado pelo INEP, mostra claramente as
desigualdades, salariais entre homens e mulheres na educação, o que destoa frontalmente, da realidade apresentada, quanto ao percentual feminino, maioria na Educação Básica, onde os salários são mais baixos em relação aos pagos no ensino médio e no magistério superior, onde a maioria é composta por professores homens. Sendo que na educação básica os salários são mais baixos e dependendo da região, isso pode ser bem pior, onde muitas vezes nem o Piso Salarial do Magistério hoje no valor pago é de 2.886,24. Onde muitas prefeituras não pagam o salário-mínimo devido as justificativas de “receitas”. E quem vai sair em desvantagem são as professoras que atuam neste nível de ensino.
Outro descompasso com a vida das mulheres professoras, é a sobrecarga de trabalho doméstico, onde mulheres já trabalhavam mais de 8,1 horas semanais do que os homens, conforme informe da ONU Mulheres de 2019, conciliando o trabalho remunerado, exercido fora do lar com os afazeres domésticos e os cuidados pessoais com a família e outros dependentes, a chamada “dupla/ tripla jornada”, situação esta, que nesta pandemia chegou a duplicar essas horas de trabalho, em que a jornada média das mulheres passou a ser de 24 horas semanais em relação a 12 horas em média ocupada pelos homens, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019.
A pesquisa denominada “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia realizada pela organização Gênero e Número e SOF- Sempreviva Organizaçao Feminista, publicada em 2020, destaca o quanto a vida das mulheres seguiu impactada pela crise sanitária e o isolamento social, que segundo os resultados apresentados, ressalta que “50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém nesta pandemia; 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco; 41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia com manutenção de salários afirmaram trabalhar mais na quarentena e que 58% das desempregadas são negras”. Estes dados revelam o quanto a vida das mulheres sofre com o peso das desigualdades, que estruturam esta realidade, contribuindo para a precarização e a informalidade das mulheres negras, sem contar que o tema do trabalho doméstico precisa ser inserido nas dinâmicas reais de políticas públicas destinadas às mulheres, em especial as mulheres negras.
Em relação ao magistério, as mulheres professoras chegaram a ser impactadas profundamente em até 82,4%, de sua jornada de trabalho, demonstrando como esta sobrecarga afetou sobremaneira o trabalho docente no ensino remoto. A Revista Mátria de 2020, publicada pela Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE), destaca no artigo denominado “A pandemia impacta a vida das professoras em todo o país”, em que a matéria relata que, “A complexidade mostrada diz respeito não apenas ao ensino remoto, mas a pontos relacionados à falta de formação adequada para o novo contexto, à sobrecarga de trabalho e ao próprio sentimento em relação ao momento vivido”. Importante ressaltar que a maioria destes profissionais da educação, são mulheres que atuam na educação básica e que notadamente, a sobrecarga de trabalho, acompanhada do aumento do trabalho doméstico, como já vimos acima, recairá sobre elas.
Entendendo que a sobrecarga de trabalho, no magistério, refere.se neste caso, segundo a reportagem, a falta de limitações para o exercício do trabalho docente que passou a não ter limitação de horários, em decorrência das demandas de atendimento dos alunos(as), durante o dia, a noite, se estendendo pelos finais de semana, conforme relatou a professora entrevistada na matéria, “Para nós, professoras mulheres, a jornada de trabalho triplicou. O cansaço físico e mental foi desgastante e sinalizou várias vezes, de forma negativa, na saúde mental e na relação com as pessoas que compartilham a vida debaixo do mesmo teto”. Esse relato exemplifica como a vida das professoras sofreram profundas mudanças nesta pandemia, que desestruturaram sua rotina e sua vida pessoal, além de evidenciar a falta de compromisso dos governos locais com esta categoria, pois não planejaram suporte algum, em apoio político, pedagógico, psicológico e financeiro, para atender as demandas provenientes desta pandemia. E muito menos conseguem compreender esta realidade, onde as mulheres são maioria no magistério e onde não são maioria deveriam ter um tratamento diferenciado devido às especificidades que vivenciam por serem mulheres.
Outro fator que destacamos como parte do descompasso neste processo e a baixa representatividade das mulheres nos cargos de gestão da educação brasileira, que ainda apresenta resultados não satisfatórios, comparados com a representação das mulheres na sociedade. Pois, representamos mais de 52% da população brasileira, 52% do eleitorado, 68,3% de docentes na educação básica, maior nível de formação superior do que os homens. Porém, no cômputo geral, em relação a ocupação dos cargos na administração pública, somos minoria, conforme aponta o documento denominado “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, publicado pelo IBGE em 2019, onde representamos, 39,1 % dos cargos ocupados contra 60,9% dos ocupados pelos homens. Na área da educação as mulheres são maioria ocupando cargos de gestão da rede municipal, como diretoras, porém no que concerne a esta representação na Rede Estadual, Educação Profissional e na Educação Superior, não chegamos a ocupar 3% nos cargos na gestão, pública, e quanto mais altos os cargos, mais reduzida fica nossa  presença neste setor.
Embora percebamos um crescimento gradativo nestes percentuais ao longo dos anos, o que se deve, às mulheres estarem mais presentes na vida pública, com maior engajamento e participação nas decisões de cunho administrativo, acadêmico e político em suas instituições. E O que louro (2018), destaca “que a escola é atravessada pelos gêneros; é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino”, associando a estes temas o racismo, machismo e sexismo, fatores que são estruturantes nestes espaços escolares, que cuidam de invisibilizar as mulheres e limitam sua capacidade para ocupar estes espaços como deveriam.
Como podemos acompanhar durante estes apontamentos, é que o magistério na educação básica é uma profissão, ainda de predominância de mulheres, brancas e com formação superior completa como a maioria dos professores na educação brasileira, sendo que as professoras negras e indígenas, ainda são sub-representação nesta categoria, apesar de apresentarem formação superior adequada. Destacamos ainda que no magistério brasileiro, em outros níveis de ensino, como a educação superior e na educação profissional, sendo essencialmente composto em sua maioria por homens, brancos, que ocupam o topo da pirâmide na gestão pública e dos mais altos salários na profissão. Observando que o gênero e a cor/raça, são determinantes para ocupação e hierarquia nas estruturas de poder na educação brasileira.
Estas reflexões nos remetem a pensar urgentemente, em ampliar e garantir nossas vozes e mobilizações para modificar este quadro na educação. Ampliando as lutas das mulheres na sua pluralidade e diversidade, neste status social educacional na qual estamos ainda invisibilizadas, silenciadas e excluídas dos processos de poder e decisão não só na educação, mas em todos os outros espaços da vida pública. Superar as desigualdades ainda existentes entre homens e mulheres, principalmente no que se refere à cor, raça, sexualidade, classe social e etnia é um dos compromissos prioritários na construção da igualdade e equidade em nossa sociedade.

 

Obs: imagem disponível em https://www.geledes.org.br/estudo-analisa-mulheres-e-negras-na-educacao-brasileira/

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