Quando fui convidada a escrever para uma revista fiquei um pouco assustada e automaticamente pensei: “o que tenho a dizer de tão importante?”. Em seguida, o medo de ser lida pelo olhar do outro me atravessou. Nós, mulheres, somos constantemente questionadas quanto à nossa capacidade intelectual e isso deixa marcas profundas em nossa existência, não é à toa que muitas escritoras e/ou pesquisadoras se sentem tolhidas ou com a síndrome do impostor. Como bem disse Simone de Beauvoir: “a história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos”, dentre eles o de universalizar a sua própria história, de forma que nós, mulheres, temos como tarefa prioritária tomar parte da elaboração do mundo, já que somos cotidianamente exploradas, oprimidas e apropriadas por uma lógica de mundo patriarcal, racista e capitalista.
Depois da hesitação, enfrentei a folha em branco para escrever e escrever é um ato de exposição pública. É como se você estivesse desnuda e nesta sociedade uma mulher despida nunca será bem lida, interpretada ou aclamada. A escrita continua sendo um ato performático masculino e quando homens leem mulheres elegem suas escritas como perfumarias, não como algo bonito, profundo ou artístico. Quem tem medo das escritas femininas? E por que eu tenho tanto medo de que leiam minhas escritas? Talvez essa pergunta-constatação tenha me feito aceitar o convite para escrever, aqui, minhas narrativas mais íntimas, criando um canal de diálogo com outras mulheres que, assim como eu, são transpassadas pelo silenciamento e apagamento de suas memórias.
Memória é resistência. Uma revista de mulheres e direcionada a mulheres é uma perturbação ao poder dos homens e também uma fagulha de entusiasmo diante de dias tão sombrios. Enquanto escrevo isso o Presidente do Brasil vetou uma proposta, já aprovada na Câmara e no Senado, de distribuição de absorventes em escolas públicas, para pessoas de baixa renda e em situação de rua; e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve sentença de 1ª instância que inocentou um homem acusado de estuprar a influenciadora digital Mari Ferrer, mesmo depois da perícia apontar sêmen do acusado no corpo da vítima. Vivemos num mundo que insiste em nos silenciar e temos muito a lamentar e com o que nos revoltar!!!
Rebelar-se contra as imposições do patriarcado, elaborando estratégias de enfrentamento ou de conciliação, tem sido uma questão de sobrevivência histórica para as mulheres de forma individual ou enquanto sujeitos coletivos. E é sobre isso que quero falar. Sobre o momento em que as mulheres tomam para si a bússola de suas próprias vidas e constroem fissuras no projeto machista e patriarcal de apagamento das mulheres. Nas palavras da feminista e pesquisadora Verônica Ferreira: “roubar a bússola de si das mãos dos outros não é fácil. Fazer uso dela é também um desafio de todos os instantes à nossa consciência, em função de tudo o que ainda é o mundo para nós, e contra nós”.
A tomada de consciência acerca das violências que nos são direcionadas, o reconhecimento que esse problema não é individual, mas coletivo, e a organização de ações concretas no campo dos direitos e da ocupação da esfera pública têm produzido fissuras na condição de subordinação das mulheres. Nosso protagonismo político e o ecoar de nossas vozes apresentaram (e apresentam) ganhos significativos na ampliação de nossa participação política, na entrada no mercado de trabalho, nos processos educativos, no enfrentamento às violências, no exercício da sexualidade e dos direitos sexuais e reprodutivos. Mas ainda há muito a conquistar.
A simples presença das mulheres no espaço público já subverte a lógica machista da nossa sociedade. Quando Simone de Beauvoir, Nísia Floresta, Angela Davis, Margarida Alves, Carolina Maria de Jesus, Laudelina de Campos Melo e tantas outras romperam com o confinamento doméstico a que foram condenadas, elas mudaram o mundo ao seu redor e possibilitaram que, mesmo com todas as angústias de ser mulher no Brasil de Bolsonaro, a gente possa sonhar com um mundo mais justo para nossas filhas, irmãs, amigas e também para os homens que carregam em si toda a toxidade dessa sociedade que os transformam em homens pela metade. bell hooks já nos ensina: “o feminismo é para todo mundo”. E ninguém que pense num mundo mais justo precisa ter medo do feminismo ou das feministas.
Também por isso o feminismo é a força mais urgente de nossa sociedade. Ao denunciar um mundo que se impõe sobre as mulheres, abre caminho para construirmos uma sociedade emancipada. Eu acredito nisso. Acredito que podemos mudar esse mundo machista, racista e elitista, porque as mulheres são constantes inundações e quando se juntam não há como contê-las. A verdadeira mudança é que eu, como muitas outras de nós, mulheres, nunca vou parar de buscar e provocar mudanças e isso é um bom motivo para expor minhas escritas aqui.