O DESEJO DE TORNAR-SE MULHER

“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” (Simone de Beauvoir)

 

Falar sobre o conceito de “ser mulher” parece algo simples, se for feita uma comparação, dentro do padrão binário, entre macho e fêmea. Mas não é. Vai muito mais além. O lugar de fala de uma pessoa que se autodenomina como “mulher” pode ser visto de vários ângulos, sob várias camadas, através de várias interfaces. Ao nascer, somos caracterizadas simplesmente por uma vulva, a qual, por sinal, é chamada de vagina, pois a maioria das pessoas não tiveram educação sexual o suficiente para saber que há diferença entre vagina e vulva (mas isso é assunto que irei explorar em outro momento). Olhar para um ser humano que nasce e dizer que o mesmo será condenado, por toda uma vida, a ser tratado como mulher por causa de um órgão genital ― sem perceber que o corpo é um sistema complexo, que se transforma através do tempo e que sofre modificações biosocioculturais ― é algo muito minimalista e, porque não dizer, cruel.

Diante da multiplicidade de identidades de gênero que existe, reduzir os sujeitos em apenas dois modelos de seres é querer o mesmo que um camelo entre por um buraco de uma agulha, como foi escrito na Bíblia e muita gente acreditou que Jesus disse isso. E sabiamente Simone de Beauvoir proferiu que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Essa frase é bastante conhecida no meio da diversidade de mulheres feministas, mas para quem está iniciando nesse “mundo do feminismo”, é bem impactante. Pelo menos foi para mim, quando a ouvi pela primeira vez. 

Me causou uma enorme repercussão, pois cresci com aquela ideia que mencionei inicialmente, de que nascemos e percorremos uma existência inteira, até a morte, como mulheres, em razão de um “buraco” que está entre nossas pernas; percorri a minha infância e adolescência achando que ser mulher era obra divina e que eu teria a obrigatoriedade de reproduzir outro ser, pois Deus me criou para fecundar a Terra; me foi incutida a ideia de que, nós, as mulheres, só poderíamos nos relacionar com uma pessoa do “sexo” masculino, porque Deus retirou uma costela de Adão para criar uma mulher e ser sua companheira e que toda a Humanidade deveria seguir o mesmo caminho; observava que nós, mulheres, deveríamos ser silenciosas, aceitar ordens de homens e deixar que eles sentassem à mesa e comessem primeiro. Não poderíamos discutir com eles; enquanto eles iam à rua, na hora que quisessem, para onde quisessem e com quem quisessem, deveríamos ficar em casa, aguardando-os docilmente e quando eles chegassem, era para tratar muito bem, sem nada questionar. Minha criação ― de mulher branca, hétero, cis, classe média ― foi assim e eu me debatia muito por dentro, sem entender o real motivo dessa diferenciação, dessa liberdade e poder que os homens ―brancos, hétero, cis, classe média ― tinham na sociedade e nós, mulheres (brancas, hétero, cis, classe média), não.

Percebi, portanto, que “tornar-se mulher” era ir de encontro com todos esses ensinamentos e romper com esse padrão simplista que separa os corpos em razão dos órgãos reprodutores “pênis” e “vagina”. “Tornar-se mulher” é assumir as próprias conquistas e não dar crédito aos homens por seus próprios feitos; é poder falar alto, debater, criar vínculos afetivos com quem bem entender; é ser muito mais do que um corpo reprodutor e submisso; é viver com autonomia e dignidade, mesmo que digam que não podemos. 

Dessa forma, “tornar-se mulher” tem sido um caminho, um processo, um porvir constante, uma construção e não uma sentença, uma condenação, um veredicto, uma decisão arbitrária advinda daqueles que se autodeclaram seres masculinos (hétero-cis-brancos-classe média/alta). Graças ao feminismo, tenho me tornado mulher, dia após dia, livrando-me, aos poucos, dos ditames do machismo, o qual prende e condena tantas mulheres, há tanto tempo. Não é um caminho fácil, mas se faz necessário. E esse trajeto se faz através da educação, da leitura, dos debates, das discussões em redes sociais e de revistas como a Matracas, que abre a oportunidade para que possamos expressar as nossas vivências e, quem sabe, inspirar outras a entrarem nessa jornada de “tornar-se mulher”. É o meu desejo, é o nosso desejo. E como bem diz o Provérbio Chinês: “os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhes cedemos, mais exigentes se tornam”. Sendo assim, que as meninas que habitam em nós cresçam como os nossos desejos e tornem-se exigentes também!

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