Não é novidade alguma que os Estados modernos adotam em sua lógica de funcionamento, o uso da força e até mesmo da violência como modo de promover políticas de segurança para a sociedade. No entanto, tais políticas que tem em seu discurso a promessa pela manutenção da paz por vezes acabam contribuindo para a segregação de determinados grupos sociais, ao passo em que favorecem e reforçam estereótipos e até mesmo o extermínio destes grupos.
Nesse contexto, um dos principais questionamentos que surge é se o Estado, por meio das suas instituições, possui ou não o direito de matar? É, pois, a partir desta problemática que a questão da Necropolítica se estabelece.
O termo Necropolítica, cada vez mais popular nos debates públicos e nas mídias digitais, trata-se de um conceito desenvolvido pelo filósofo Achile Mbembe – intelectual, teórico político, historiador e professor universitário camaronês -, o qual designa a produção e inserção de políticas de morte voltadas para uma determinada parcela da população.
O filósofo considera como necropolíticas as “formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte que reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror” (MBEMBE, 2017, p. 151). O que no caso do Brasil estaria diretamente ligado a questão do racismo de Estado, uma vez que é sobre os sujeitos pretos e pardos que as políticas de desvalorização da vida recaem de modo mais contundente. Fato rotineiro que pode ser visualizado a todo instante nos portais de notícias: “74% das pessoas que tiveram amigo ou parente morto pela polícia são negras” (Portal Mundo Negro); “Kathlen Romeu: negros são 3 vezes mais vitimados por homicídios do que brancos” (G1); “Negros correspondem a 63% das pessoas abordadas por policiais no Rio de Janeiro” (CNN Brasil); “Vendedor de balas negro é morto por PM…” (SBT News); “Mulheres negras sofrem mais com a violência obstétrica” (Folha de São Paulo);“Crianças da periferia de SP morrem 23 vezes mais que as do centro, diz estudo…” (Carta Capital).
Tais políticas se constituem e operam promovendo a destruição de determinadas populações por meio de uma desumanização dos sujeitos, para os quais se destinam condições de vida muito próximas ao estatuto de mortos-vivos. O que pode ser observado facilmente se determos nosso olhar sobre as “zonas de morte” contemporâneas, entre as quais tem destaque as periferias do país, nelas o derramamento de sangue (de criminosos ou inocentes) acontece diariamente à luz do sol sob a égide de um combate ao crime que nunca dá resultados ou cessa. Porém, se os criminosos moram em bairros nobres e são brancos a abordagem é diferente ou nem existe.
O Estado Brasileiro, na figura da polícia e do poder judiciário, legitima a morte e a aniquilação dos sujeitos negros cotidianamente de diferentes formas, sendo a dita “guerra às drogas” um dos instrumentos mais eficazes dessa necropolítica, que além de matar sob o amparo do Estado também leva a um crescente encarceramento em massa. Os dados comprovam. O Brasil figura hoje entre as cinco maiores populações carcerárias do mundo, estando em terceiro lugar com mais de 773.000 encarcerados, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DPN). Desse número, cerca de 65% é composto por pretos e pardos.
Entender o que são e como operam é o primeiro passo para se combater as necropolíticas nacionais, que em sua maioria destinam-se aos sujeitos negros, embora também afetem outras minorias. Essas políticas de morte que determinam quais vidas são passíveis de preocupação e quais podem ser descartadas são uma realidade brutal que assola nosso país, sobretudo, em tempos sombrios de um governo que flerta com diferentes formas de autoritarismo e violência. É preciso conhecer a realidade que nos cerca para assim questioná-la e combatê-la.
Somos todos humanos, mas nem todos são tratados assim.
UBUNTO.
Referências
Mbembe, A. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. Rio de Janeiro: n-1 ediçoes.
Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa (Portugal): Antígona editores refractários.