Pessoas negras, adquirir consciência negra é uma tarefa diária e árdua. Não adianta saber-se negro, é preciso entender que existe um pacto narcísico da branquitude em que as pessoas brancas em liderança continuam a reforçar um sistema no qual elas vão estar sempre no topo, e nós, sempre subalternizados.
20 de Novembro é uma data simbólica que nos convida a lembrar da importância do aquilombamento. Foi assim que Zumbi dos Palmares, junto de sua companheira Dandara, conseguiu resistir em um dos maiores Quilombos do mundo. Foi assim também que, o Movimento Negro Unificado conseguiu lutar por políticas públicas de reparação para a negritude.
E, mesmo sabendo da dificuldade, parafraseio Carolina Maria de Jesus “se é que existem reencarnações, eu quero voltar sempre preta”. Mesmo sabendo que o racismo perpassa a nossa vida em todas as instâncias possíveis, nas instituições, nas estruturas, na nossa psique. Ainda assim, sobrevivemos em meio a estatísticas que só nos entristecem, mas ainda estamos aqui e compomos a maior parte deste país. Muito embora os dados sobre negritude sejam sempre pessimistas. Ser negro é uma dualidade, pois ainda resistimos, ainda somos bravos, mesmo quando não queremos ser. Mesmo quando só queremos existir, não conseguimos. Porque o ideal de ego e de existência na sociedade é branco. As roupas, os comportamentos, os espaços, e as oportunidades são todas brancas e para os brancos.
Por isso, é tão importante adquirir essa consciência racial e perceber que essa é uma luta coletiva e contínua. É preciso continuar o trabalho do MNU, o trabalho de Zumbi e Dandara. Pois não me interessa representar ninguém nos espaços, não me interessa ser a única pessoa negra conquistando algo. Me interessa romper com a farsa da democracia racial, me interessa expor que o racismo no Brasil é descarado. Me interessa, um dia, superar tudo isso e alcançar uma equidade racial. Uma equidade que possibilite que não tenhamos mais que nos preocupar se vamos conseguir voltar com vida quando saímos de casa. Me interessa uma realidade em que o Estado não nos veja como inimigo a ser aniquilado. Me interessa um mundo em que as relações sejam mais leves e que os traumas raciais não nos sabotem mais.
Me interessa viver celebrando a existência, não mais me entristecendo porque os índices socioeconômicos todos apontam que as pessoas negras são as menos escolarizadas. Se não estamos nas escolas, os dados apontam que somos a maior parte do sistema carcerário, o maior índice de homicídios em conflitos policiais. Eu perdi meu pai aos 13 anos, e perdi minha mãe aos 23 anos. Tudo isso, também, por conta de uma necropolítica que negligência a saúde das pessoas negras e busca nos eliminar.
Por isso, desde já, pensemos em estratégias de fuga às violências que atingem nossos corpos e o nosso psicológico, pensemos em estratégias não só de sobrevivência, mas de fortalecimento da nossa autoestima. Eu não quero mais existir em um mundo em que não sei até quando vou viver, ou sobreviver. Quero uma vida plena para pessoas negras e por isso é tão importante lutarmos juntos, em aquilombamento, assim como nossos ancestrais. Que possamos pensar, então, a importância de agrupar-se em negritude para lembrar o passado, refletir o presente, e construir um futuro possível no qual crianças negras poderão ser apenas crianças, sem perder sua infância por começar a trabalhar tão cedo. Que possamos sonhar em construir um mundo no qual jovens negros tenham perspectivas de futuro para sonharem em serem o que quiserem, sem precisar faltar a escola porque necessitam ajudar a família, ou porque não há incentivo ou amparo.
Me pergunto quantos sonhos mais serão destruídos por esse sistema narcísico e branco? É preciso sapiência, estratégia e força coletiva para driblar, para ir contracorrente desse padrão hegemônico que nos coloca sempre para baixo. E é preciso ter em mente que a ascensão individual nunca será uma ascensão de fato. Do que me adianta ser sozinha, a única negra nos espaços?
Eu sonho com um mundo em que as nossas potências serão reverenciadas ao máximo, e sonho também que os nossos sonhos se tornarão, de fato, realidade. É assim que damos sentido à nossa existência, sonhando coletivamente os caminhos possíveis. Emancipar o povo negro, reinventar o Brasil. Essa é a nossa luta coletiva.
“O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. É também o recuo quando a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias de destruição” – Beatriz Nascimento (2018)